quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O  PIOR  CEGO  
MILTON MACIEL

Todos os bálsamos os enamorados inalam, em sua paixão. O mesmo não se pode dizer das luzes. Vêem poucas, quase nenhuma: o sol, raras vezes o farol do caminhão em frente, a luz vermelha do sinal. Mas, permanentemente, são capazes de ver a luz que vem de sua amada. É plena, ofuscante, perpassa-os com os fótons mágicos que criam os devaneios.

Com Luiz Felipe não haveria de ser diferente. Consumia-se em paixão por Ana Cláudia; desdobrava-se a seu redor, como um protoplaneta em estado nebuloso gira em torno de sua estrela.

Bom amigo, Alfredo tentou abrir um pouco aqueles olhos inebriados para a luz da razão:

– Mas a Ana Cláudia não deixou o Lucas pra viver como o Evandro?

– Ora, isso foi há mais de um ano. Que importância tem?

– Mas aí ela não traiu o Evandro com o Jonas, lá da Concessionária?

– E ela fez muito bem. Ela me contou que o cara era um sádico.

– Nossa, o Evandro?! Ele batia nela? Ou era sadomasoquista, daqueles de chicote na mão e algemas?

– Não, não era isso. O panaca era sádico com o cachorrinho dela, não comprava ração de qualidade, um mão-de-vaca maldito, ia acabar matando o bichinho de desnutrição. Eu, agora, só compro ração importada pra ele, 280 reais o saco de 25, me dá um puta orgulho.

– Huummm, um cachorrinho... Sim. Um poodle de madame, imagino, desses que comem um saco de ração por mês. É caro!

– Poodle? O Belzebu?! Não me faça rir, cara. Belzebu é um São Bernardo. Come um saco em 5 dias, você precisa ver o apetite do bichinho, é um colosso. Eu me amarro naquele cachorro.

– Deus do céu! Seis sacos por mês?!!

–  Fora a carne, é claro. O Buzinho adora uma alcatra, você precisa ver.

– Tá, tá, nem vou perguntar quantos quilos ele come por dia. Vamos falar de outra coisa. A Ana Cláudia não traiu o Jonas também?

– Traiu comigo, cara. Comigo. Como ela diz sempre: foi só então que Deus teve piedade dela, que ela encontrou o verdadeiro amor pela primeira vez na vida. Tá entendendo, cara: pela primeira vez na vida! Essa menina é supersensível, sofreu demais nas mãos de um monte de ordinários que só enganaram sua boa fé.

– Sim, sei. Boa fé... E ela trabalha em que?

– Não trabalha fora, os caras nunca deixaram. Também, uma gata daquelas, os caras morriam de ciúme dela, é lógico.

– E você?

– Ora, eu não sou ciumento, você sabe. Só acho que não é justo ela se expor a esse trânsito maluco e perigoso todo dia, a ter que ouvir as cantadas na rua, o assédio no trabalho. E trabalhar no quë? Ela não tem profissão. Nunca pôde trabalhar, a coitadinha.

–E agora, com você...

– Agora ela não precisa, é diferente. Eu ganho bem pra burro, você sabe. Muito mais do que aquele babaca do Jonas, lá da Concessionária.

– Tá certo – concordou Alfredo. E pensou: melhor não dizer mais nada, o pior cego é o que não quer ver. Ficou em silêncio o tempo suficiente para Luiz Felipe se lembrar do que estava indo fazer.

– Cara, no papo com você acabei esquecendo que tenho que buscar a Alzirinha agora.

– Uma amiga? Parente?

Luiz Felipe riu:

– Você não dá uma dentro hoje, cara. Não, a Alzirinha é um presente, uma puta surpresa que eu vou levar pro meu amor. Ela vai se derreter toda. E o Buzinho também.

– O Belzebu? Ora, por quê?

– A Alzirinha é uma fêmea de São Bernardo, Alfredo. Comprei hoje. Vou pegar a bichinha no Pet Shop, mandei dar banho, perfumar, dar um trato de luxo, sabe como é. A Aninha merece. Cara, ela vai chorar como criança pequena no meu colo. Depois dá um puta tesão nela e você não pode imaginar o que ela faz numa cama quando fica agradecida assim.

– Não posso... 

Alfredo imaginou.

– Bem, preciso ir, cara. Bye, bye. Vê se você desencalha e arranja uma gata assim como a minha. Pena que Ana Cláudia como essa só exista uma.

– Tchau – Alfredo acenou com a mão quando Luiz Felipe deu partida na Pajero.

Depois caminhou lentamente até o estacionamento, pagou a conta, entrou no Mercedes e tirou o bilhetinho do bolso. Aquela mulher estupidamente linda tinha encostado o peito no braço dele no clube e colocado o bilhete no seu bolso. Leu mais uma vez:

“Menino,
Que surra você deu nele no tênis hoje. Também, você é muito mais forte e mais musculoso que ele. Cada pernão! A mulherada deve ficar louca de tesão por você. Quem não fica, né? Me liga de tarde, quero te falar uma coisa. A propósito, você gosta de cachorro?  Euzinha”

Alfredo sacudiu a cabeça. A visão daquela gata era de enlouquecer qualquer um. O convite, então... De cachorro ele até gostava, mas de Husky siberiano. 

Mas ele gostava muito, muito mais da sua carteira e da sua conta bancária. Aquela vigarista era uma alpinista social, na certa estava considerando dar mais um salto quântico em sua carreira, afinal ele era o dono da Concessionária onde o corno do Jonas trabalhava como gerente. Trabalhava. Agora estava na maior depressão, licença médica... Deu a partida enfim, jogou o bilhete fora na lixeira da saída, lembrou do coitado do Luiz Felipe, bom amigo, ruim no tênis:

– É, o pior cego não é o que não quer ver... É o apaixonado!

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