Ou: A
precoce vocação “política”
MILTON MACIEL
Título estranho, não é? Muita gente
reclamou: Por que você não escreve por extenso: o Trezentos? Bem, se você tiver
um pouco de paciência, vai ver que só usando o numeral é que eu posso contar a
história direito.
O 300 é meu cunhado. É, mas não é culpa
minha! Cunhado a gente não escolhe, vem junto com o pacote de casamento.
Inteiramente grátis. Quer dizer, isso para os cunhados dos outros. O meu não
veio de graça coisíssima nenhuma. O que ele me custou de cara, virou o apelido
dele. Vou contar.
A irmã dele e eu – a gente na casa dos 20
anos – estávamos no maior corpo a corpo no sofá da sala da casa dela. Todo
mundo tinha saído, disso a gente tinha certeza. Pois então de onde é que surgiu
aquele molequinho de nove anos apenas, com uma câmera fotográfica na mão? Ela curvada
de joelhos, eu por trás dela, como que ajudando ajudando numa reza
tipo muçulmana, o tipo da coisa que se faz usualmente sem roupa, e aí
ouvimos um clic! Claro, era o capeta!
Ele estava vendo tudo há não sei quanto tempo e tinha ido pegar a câmera do
pai, que ele, precoce em tudo, já sabia usar.
A Neide deu o maior grito de pavor e correu
com as roupas pro banheiro. Eu comecei a correr atrás do moleque, mas não
rendia, tinha que ir me vestindo no caminho. Quando acabei de botar tudo, menos
os tênis, ele já tinha corrido pra casa vizinha. E ali, da calçada, olhando
triunfalmente pra mim, ele gritou:
– Manhêeee!
Puxa, a mãe estava ali do lado! Eu estava
ferrado, tinha que impedir que aquele desgraçado contasse tudo e, pior,
mostrasse o que tinha fotografado. Felizmente, naquele tempo era preciso
esperar a revelação do filme, se fosse hoje, com máquina digital, eu tinha
dançado na mesma hora.
O pai da Neide era um desembargador
aposentado e o sujeito mais careta que eu já conheci. Ele tinha certeza que a
filhinha dele era virgem. Vivia alardeando isso. Bem, ele estava absolutamente certo,
mas só até que a sua inocente Neidinha fez quatorze anos. Depois disso, ela se
divertia escondida, que remédio. Sabe como é, porteira que passa um boi, passa
uma boiada. Mas, para o pai, ela mantinha a farsa da virgindade. Velho cretino!
Bom, a gente estava namorando há uns seis
meses, éramos ambos jovens e liberais, acabamos nos gostando de verdade. Assim
quando analisamos a tempestade que ia rolar assim que o capetinha contasse o
que viu e entregasse a câmera ao pai, eu não tive dúvida:
– A gente casa!
A Neidinha não esperava essa minha atitude,
caiu no maior chororô, levou mais de meia hora derramando lágrimas comovidas e
me beijando apaixonada. Decidimos a estratégia a utilizar: eu ia pra casa, ela
saía pro shopping e eu convocava meu velho para vir conversar com o velho dela,
fazer o pedido. Aí a gente, se não anulava, pelo menos minimizava os efeitos
devastadores de uma revelação bombástica do tipo: Sua filhinha não é mais virgem, estava dando de quatro...
Mas sabe o que aconteceu? Antes que eu
saísse da sala, o diabo do moleque reapareceu. Sem a câmera, é claro. A Neide tentou
aplicar o golpe da irmã boazinha, chorou, pediu, implorou. O moleque nem aí pra
ela. Só olhava pra mim. Aí eu entrei na jogada, tratei de comprar o silêncio
dele, perguntei se ele queria uma bola nova, um par de patins, um monte de
outras coisas de guri e ele... nada! Por fim o pestinha falou:
– Quero uma carteira como a sua. Posso ver?
Tirei a carteira de couro, cara pra burro,
e mostrei pra ele. Ele, sem cerimônia nenhuma, a tomou da minha mão e examinou
tudo o que tinha lá dentro. Só se interessou pelo dinheiro. Tinha três notas de
cem, que eu tinha acabado de retirar do caixa automático. Ele pegou as notas.
Trezentos (300)!!! Aí sacudiu a carteira
invertida, fazendo cair o restante do conteúdo, retirou os documentos e colocou
as três notas de volta. Fechou a carteira e se mandou com ela.
Da porta ele me disse:
– Fica frio, não vou mostrar pra ninguém,
não vou falar nada. Quer dizer, só vou falar que você me deu a sua carteira de
presente. Sem dinheiro, é claro. Vocês confirmem. Eu já sei botar e tirar o
filme da câmera, já tirei e guardei bem escondido aquele lá. Sabe como é, garantia
pro meu futuro, não é?
Nós ficamos ali bestificados. Nove anos!
Que prodígio de mau caráter temporão!
Recordista mundial de precocidade em chantagem e extorsão! A Neidinha voltou a
chorar, desconsolada. Eu, depois de pensar um pouco, tratei de acalmá-la.
– Meu amor, não precisa ficar com medo.
Esse bandidinho vai ficar me achacando enquanto puder. Então a gente dá uma
volta nele antes: Vamos manter o nosso plano. Eu vou em casa, conto tudo lá, meu
velho é meu grande amigo, tenho certeza que ele vem hoje mesmo acertar os
ponteiros com o seu. Enquanto isso, você trabalha a sua mãe. Quando o seu velho
souber do estouro da boiada, ela ajuda e segurar e o meu pai, também. Aí eu
apareço, junto com você, a gente dá uma de pecador, de Madalena arrependida, e
trata de marcar logo a data do casamento.
Meu pai é um gênio! Chegou todo feliz na
casa do desembargador, trouxe charutos (nenhum dos dois fumava!) e uma garrafa
de champanhe. Explicou que era para festejar o casamento dos filhos deles, o
desembargador ficou de queixo caído, mas gostou da idéia, nossa família é bem
conceituada na praça. Aí ele completou o tratamento, dizendo que a juventude de
hoje em dia não tem mais cabeça, não sabe resistir às tentações, os dois tinham
caído em pecado. Mas o filho dele era um homem de caráter, estava pronto para
reparar o mal que fizera à moça, sabe, esse papos ridículos do século XIX. O
velho dela primeiro quase enfartou. Depois, com a praticidade dos
desembargadores, viu que o barco já tinha mesmo afundado e aceitou marcar o
casamento para dali a quatro semanas. Melhor não facilitar, sabe como é.
Pois foi assim, graças àquele moleque
sardento, que eu casei com a Neidinha às carreiras. Não posso me queixar. Foi
bom e continua sendo, a gente se gosta e se entende bem demais. Sou até
obrigado a agradecer: Obrigado, 300!
Ah, sim, eu botei esse apelido nele, só o
Neidinha sabia por quê. Foram os trezentos que ele me afanou, na sua primeira extorsão.
Tive que aguentar outras, até o dia do casamento. Ele só aceitava dinheiro. E
só notas bem novinhas. Acho que ele me arrancou uns oitocentos nesse tempo todo,
incluindo aí o lance da compra final do filme não revelado.
Paguei achando que tinha sido tapeado, mas
quando fui buscar a revelação, pelas risadinhas das moças da loja de
fotografias, vi que era o filme autêntico. No fundo, o moleque foi até onde
podia me arrancar algum, mas tinha resolvido poupar a irmã. Sinal que devia ter
algum resíduo de ética naquele bandido temporão.
Ledo engano! Aquela foi a sua última ação
ética na vida. Com ela, ele esgotou o estoque permanentemente. Bem, de cara eu
saquei e falei pra irmã dele, já no dia seguinte ao flagra:
– Seu irmão tem uma grande vocação, pode
escrever o que eu digo. Ele é um político nato. Procede com se já fosse um
deputado federal, um DEPUFEDE, como dizia o Stanislaw Ponte preta. Eu tenho
certeza que vou ver esse moleque envolvido com política, com tudo que é
maracutaia do ramo, é só uma questão de tempo.
E não deu outra. Nestes trinta anos que se
passaram desde o primeiro golpe dele, aplicado em cima de mim, o cara já foi:
Tesoureiro encrencado da União Estadual de Estudantes. Depois, o mais jovem
síndico de prédio, exonerado pela Assembléia dos Condôminos por superfaturamento
das contas. Aí arranjou um misterioso patrocinador e foi se eleger o mais jovem
vereador da cidade Criciúma, em Santa Catarina, onde ele nunca tinha pisado. E
agora está em plena campanha para Deputado Federal pelo Estado do Amapá. Disse
que aprendeu a lição com a raposa que é o atual padrinho político dele, que
sempre se elege senador por lá, sem nunca ter feito política no local.
Eu fico satisfeito, por que cantei essa
pedra quando o ladrãzinho tinha só nove anos. Deputado Federal, não ia dar
outra coisa! E vou estender a minha profecia agora: nunca mais ele deixa de se
reeleger. E nunca vai querer ser outra
coisa, senador, governador, ministro. Não dá. A vocação dele é só uma:
DEPUFEDE. E com ele vai ser assim: “Uma
vez DEPUFEDE, sempre DEPUFEDE. DEPUFEDE sempre eu hei de ser...”
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