terça-feira, 28 de junho de 2016

ABANDONADO  
MILTON MACIEL

   Do outro lado nenhuma resposta. Mandou um sinal pela torre, aflito. Nenhuma resposta também. Então uma idéia passou-lhe rapida-mente à consciência e ele deitou a correr em direção à praia, gritando para o pessoal que estaria à espera. Foi uma corrida terrível na noite, errou o caminho na precipitação, perdeu-se da trilha, embrenhou-se em mato mais alto, caiu várias vezes no escuro, uma sensação de perigo e de pânico crescendo a cada metro, um suor frio a tomar conta do rosto e do corpo. Seria possível que...

- Não adianta!  Tarde demais.

   Tarde demais. O escaler era uma pequena sombra que as ondas mostravam e escondiam caprichosamente, delineada contra o halo de luz fantasmagórica da noite oceânica. Tarde demais.

   Estava irremediavelmente abandonado naquele lugar. Uma ilha deserta, confirmara-lhe um dos marinheiros na viagem de vinda, enquanto remavam e tentavam chegar com o escaler à praia. Ali instalariam dois sinalizadores, alimentados por energia solar. Seu trabalho seria justamente o de instalar as placas fotovoltaicas e os acumuladores. Depois, ao cair da noite, ligaria os transmissores e faria os contatos com o navio e com as sondas.

  Os homens passaram o dia fazendo escavações, erguendo os postes das torres, fixando os painéis solares e as caixarias de instrumentação. Os sinalizadores foram instalados a 500 metros um do outro. Ao final do dia, todo o trabalho estava concluído. Restava somente esperar a hora aprazada para começar os testes de contato. Vinte minutos antes ele havia feito os preparativos na primeira torre. Ligou todos os circuitos, fez as leituras de tensão e de forma de onda com os medidores portáteis. Tudo perfeito.

  Às 19 horas em ponto, como combinado, emitiu o primeiro sinal para o navio. A resposta veio imediata, com excelente qualidade de sinal. Pelo rádio portátil recebeu os cumprimentos do capitão. Agora era dirigir-se para a segunda torre, aquela que ficava numa pequena elevação já dentro da pequena capoeira de mata, afastada da praia. Dirigiu-se para lá sem problemas, a vegetação era rala e a lua complementava a luz de sua lanterna especial. Várias vezes percorrera a picada aberta pelos homens durante o dia, procurando memorizar cada detalhe do curto caminho de poucas centenas de metros entre as duas torres.

  O contato da segunda torre com o navio devia ser estabelecido às 20 horas. Por isso rumou calmamente para a torre dois, levando seu equipamento portátil e a grande lanterna. Bem antes das 20 horas já havia testado todos os circuitos e tudo funcionou a contento. Na hora exata, emitiu o sinal para o navio. De novo a resposta instantânea, o sinal límpido, a forma de onda perfeita. Ligou o rádio e se comunicou com o capitão. Enquanto aguardava, pareceu-lhe ouvir um estranho apito na praia. Logo ouviu o que lhe pareceu serem gritos excitados dos marinheiros, mas tratou de se concentrar no que lhe dizia o capitão. E que parecia a coisa mais sem sentido do mundo.

   - Olhe, ficou uma caixa grande aí na praia. É pra você. De minha parte é a garrafa de uísque. Tem água e comida pra um tempo, até você aprender a se virar sozinho. Mandei deixar todo o material das embalagens, vai ser útil, você vai ver. Você é um bom homem, Melles, acho uma sacanagem fazerem isso com você. Se eu pudesse, evitava. Mas... Sabe com é. Eu sou só o capitão, o dono do navio é o Bauermann, ele é que manda. Bom, então adeus. Boa sorte!

  - Capitão! Capitão! Alô, alô, capitão! Alô! Capitão, que quer dizer essa coisa? Que negócio é esse de uísque, de embalagens? Que adeus, capitão?!

   Do outro lado nenhuma resposta. Mandou um sinal pela torre, aflito. Nenhuma resposta também. Então uma idéia passou-lhe rapidamente à consciência e ele deitou a correr em direção à praia, gritando para o pessoal que estaria à sua espera. Foi uma corrida terrível, errou o caminho na precipitação, perdeu-se da trilha, embrenhou-se em mato mais alto, caiu várias vezes no escuro, uma sensação de perigo e de pânico crescendo a cada metro, um suor frio a tomar conta do rosto e do corpo. Seria possível que...

  Sim, seria possível, sim! A horrível verdade surgiu ante seus olhos quando chegou a 50 metros da praia, desembocando da capoeira em um ponto felizmente bem próximo da primeira torre. Não havia mais ninguém à sua espera e o escaler havia sumido. Com o coração aos pulos continuou correndo os últimos metros até tocar a água com os pés, enquanto firmava os olhos em direção ao mar. E aí lhe veio a confirmação monstruosa: oscilando a umas duas centenas de metros da orla, o escaler avançava firme na escuridão em direção ao navio. Abandonado!

-  Não adianta! Tarde demais...

   Deixou-se cair ao chão. A água ia e vinha molhando-lhe corpo e roupas, a cabeça girava-lhe latejando numa dor insuportável. Abandonado... Mas... por quê?!

Bauermann teria mandado que o deixassem ali? As palavras do capitão sugeriam isso. Bauermann. Bauermann...Por quê?

Quando a sensação de desespero começou a passar, Melles observou ao redor até encontrar a caixa. Era uma caixa grande de madeira, tinha vindo com eles no escaler, pensou que contivesse equipamentos. Experimentou a tampa e ele cedeu com toda a facilidade; não estava pregada! Quantos daqueles homens que remaram para a ilha, com ele a bordo do pequeno barco, sabiam que o estavam levando para o fim? Quantos seriam os traidores? Alem de capitão, além do alemão Bauermann....

Iluminou o interior da grande caixa com sua lanterna. Pegou um galão de água e um lata de biscoitos. Melhor deixar para ver o resto do conteúdo de manhã. Precisava poupar as pilhas ao máximo. A lata de biscoitos pareceu-lhe pesada demais. Sacudiu-a e algo lá dentro bateu nas bordas da lata. Sob a pálida luz do crescente, ele enfiou os dedos entre os biscoitos e encontrou outra caixa. Pesada, estranha. Retirou-a, acendeu a lanterna de novo.

Um revolver 38 carregado! Duas caixas de balas. E uma carta. A carta explicava tudo!

Melles, meu velho, descobri esta noite o que iam fazer com você, o cara do rádio me contou apavorado, ouviu escondido a conversa do capitão com o alemão. Eu não acreditei e fiz a idiotice de interpelar o Sertório. Ele mandou me prender na hora. Acho que minha vida não está valendo muita coisa agora. Ainda bem que eu menti pra ele que quem ouviu a conversa com o Bauermann fui eu. Livrei a cara do Lírio, o operador do rádio. E foi a minha sorte. E a sua sorte, cara. Porque o Lírio ficou agradecido e deu um jeito de chegar perto de mim o suficiente para eu falar com ele, numa distração dos guardas.

Como eu disse, acho que vão me apagar, eu agora sei demais. Então pensei que o que eu tenho não tem mais nenhum valor pra mim. Mas pode ter pra você, cara. O Lírio pegou o meu revolver e as balas na minha cabine, conseguiu esconder na lata de biscoitos pra você. Muito filhas da puta esse caras. Duvido que você possa entender o que aconteceu. Pois eu vou te dizer agora. Foi o Bauermann. E aquela vaca da tua mulher, a Laurita. Eles são amantes faz um tempo, agora resolveram se livrar de você. O alemão explicou que eles contam que você morra nessa ilha deserta. Aí inventaram esse papo de instalar umas coisas nesse fim de mundo. Só pra te abandonarem aí.

Olha, meu velho, espero que o revólver e as balas te ajudem a sobreviver. Se defender de animais, de outros homens bandidos como estes daqui, te ajudar a caçar comida. Mas vou te fazer um pedido, um só:

Não gasta todas as balas. Reserva quatro, por favor. Uma pra este filho da puta do Sertório, esse capitão de merda, que vai mandar me apagar. Outra pro alemão Bauermann, é lógico. A terceira, se eu fosse você, enfiava nos cornos daquela vaca da tua mulher, que enfiou eles em você pra valer. A quarta guarde pra você mesmo. Nunca se sabe quando a sorte termina de virar contra a gente sem mais remédio. Aí você estoura seus miolos, que é o melhor que se pode fazer, pra não perder a liberdade.

Um abraço, irmão de desgraça. E boa sorte.
Mendonça.”

Melles tirou quatro balas da caixa de forma automática. Então pensou melhor:

Mendonça, meu amigo, muito obrigado, Deus queira que você se salve. EU vou me salvar, pode ter certeza. Ainda mais com esta tua arma. Eu fiquei tão desnorteado que, quando li que a Laurita estava por trás dessa barbaridade, te juro, pensei em morrer, me matar com o teu revólver. Mas não, companheiro. Nada disso. Eu vou sobreviver. Eu tenho que viver. Para fazer exatamente o que você me pede, camarada, ainda que seja a última coisa que eu faça na vida, não importa quanto tempo demore. Mas vou guardar só três balas. A quarta eu não vou precisar. Mas as três primeiras eu juro pra você que vou entregar pra cada um desses três que desgraçaram a minha vida. De hoje em diante esse vai ser meu único propósito de vida. E, por isso, eu vou sobreviver!




                                                                                                                        

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