quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

DUAS  AVES  E  UM  AMOR  
MILTON MACIEL

   Terminei de fechar a mala pequena:
   – Estou pronto. É hora de ir.
  Maria Amélia respondeu calmamente:
   – Isso era inevitável. Mais cedo ou mais tarde tinha que acontecer. Melhor que seja agora.
   – Você está certa. Não dava mais mesmo.
   – É, não dava mais... Acontece.
   – Pois é, aconteceu com tantos casais amigos da gente, não?
   – Sim: a Dorinha e o Aníbal; a Eunice e o Mário; o professor Hilbert e a Dra. Ingrid...
   – E o Vieirinha, que já saiu de casa duas vezes, dois casamentos desfeitos. E o meu irmão, então? Nem mesmo sendo casado com outro homem a coisa foi diferente, não aguentaram nem quatro anos. A gente pelo menos tentou muito mais tempo...
   – Quase quinze anos, Anselmo. Parece até mentira que tenha durado tanto.
   – Pois é, quem diria não? Do jeito que gente brigava no começo... Todos na turma diziam que a gente ia ser o primeiro casal a se separar.
   – Pois vamos ser quase que os últimos... Não é estranho?
   – É, Amelinha... Quem diria. Justo nós. Não é uma pena?
   – É, sim. Mas o que se pode fazer? Tudo na vida tem um fim, não é verdade?
   – Pois é. Mas, pelo menos, a gente não terminou mal, brigados como a maior parte dos casais que a gente citou. O Mário e a Eunice se odeiam!
   – E a segunda mulher do Vieirinha, a Ângela, não entrou com queixa-crime contra ele?
   – Pra você ver como a gente até que está bem na foto, Amelinha. Entre nós não tem essa coisa horrível, a gente só...
   – Cansou. Essa é a palavra certa, Anselmo. Você cansou de mim...
   – E você de mim, Maria Amélia. É a vida, acho que é coisa natural de tudo quanto é casamento. Aí tem os que se acomodam, vão ficando, ficando, enrolando, sofrendo, fazendo sofrer...
   – Se traindo...
   – Se agredindo, se magoando... É muito pior, não é mesmo?
   – Claro. Mas também a gente tem a facilidade de não ter tido filhos, não é?
   – Tem razão. Com filhos seria muito mais complicado, é possível que a gente tivesse que continuar por mais tempo, por causa das crianças. Melhor assim...
   – Muito melhor. Você vai para o hotel mesmo?
   –Apart-hotel. Mais prático. E vai me dar a impressão que eu ainda tenho uma casa. Sem ter os trabalhos e problemas que ela dá.
   – Tá. Se precisar de qualquer coisa, é só me ligar.
   – Eu sei, sempre pude contar com você, Amelinha. Você é muito legal.
   – Você também, Anselmo. Foi bom, bem bom enquanto durou, quer dizer, enquanto a gente.. Sabe como é...
   – Sim. Eu tenho muito menos queixas de você do que boas lembranças e muita gratidão. Que pena que acabou...
   – É, que pena... Mas, fazer o que? Pelo menos ficamos amigos, não é?

   – Puxa, com toda certeza. Isso a gente tem que lutar para preservar pelo resto das nossas vidas, Amelinha. Você também vai poder contar comigo sempre.
   – E eu não sei? Olha, Anselmo, tomara que você seja muito feliz na sua nova vida.
   – E você na sua, Maria Amélia. Muito feliz. Como você merece... Bom agora eu tenho que ir, acho que estou esticando demais a despedida.
   – É, é chato, não é? Por mais que a gente esteja preparada... Tá, é melhor você ir já, então. Tchau, a gente se fala por telefone, a gente se vê, se cruza por aí...
   Dei um passo em direção a ela, tomei sua mão, dei-lhe um beijo no rosto:
   – Tchau, Maria Amélia. Não é adeus, você sabe, amigos nunca dizem adeus.
   – Nunca, Anselmo. Nunca mesmo. Vá com Deus.

   Rolei a mala pela sala, abri a porta e saí do apartamento. Não tive coragem de olhar para trás. Foi no elevador que percebi que tudo tinha mudado mesmo. Agora era eu e mais eu. Não estava deixando Maria Amélia por causa de outra mulher. A nossa relação apenas... envelheceu mais do nós. Temos 39 anos os dois, estamos em boa forma, boa saúde, Amelinha ainda é uma mulher muito bonita. E eu não sou de se jogar fora. Mas nenhum de nós, ao menos neste momento, está a fim de complicação nova. Eu quero é ficar sozinho, ter meu próprio espaço, viver minha vida, deixar que Amelinha viva a vida dela. Ela vai ser feliz, vai achar um cara mais legal que eu, ela merece.

   Saí da garagem do prédio, me despedi mentalmente daquele edifício onde tinha vivido com Amelinha nos últimos 9 anos. Era muito bacana, acho que eu ia sentir falta dele e até dos funcionários, que eram todos gente fina. Mas paciência... Vida nova, casa nova, prédio novo.

   Dirigi o carro um tanto mecanicamente, sem pensar, sem pressa também. Resolvi dar umas voltas pela cidade, agora havia como que um tumulto crescendo em meu coração. Enquanto eu rolava pelas ruas e avenidas, não consegui tirar Maria Amélia do pensamento. Caramba, estava sendo mais complicado do que eu esperava. Não pensei que eu fosse assim tão sentimental, tão saudosista. Tão acomodado, em outras palavras. Sim, era isso: Eu estava acostumado demais com a Maria Amélia! E afinal, ela era uma mulher maravilhosa, o nosso casamento murchou, gastou, a gente perdeu o tesão... Mas nem por isso ela deixou de ser aquela criatura admirável de sempre. Nunca, em toda nossa vida em comum, eu perdi o respeito por ela. Que pena que a coisa tivesse acabado.

   O sinal fechou, demorou um pouco, acabei olhando para cima por causa dele e aí vi o céu pela primeira vez naquele dia. Puxa, eu estava tão mexido que nem tinha visto nada fora de mim mesmo e das lembranças de Maria Amélia.

   Agora, olhando a luz vermelha, vi que o céu estava todo absolutamente cinzento. Eram oito horas da manhã, as nuvens estavam baixas, mas havia sol que vinha de sobre o nascente, iluminando por baixo da camada de nuvens, um espetáculo raro e muito bonito. Fiquei encantado, por alguns momentos esqueci a nossa separação.

   Mas então aconteceu algo que mudou tudo, mas tudo mesmo!

   Quando o sinal abriu, eu vi duas aves brancas voando sobre os carros. Andamos e as duas aves de porte médio, como se fossem duas pombas muito grandes, parecendo que por capricho, seguiam o mesmo traçado da avenida. Eu olhava para a frente e olhava para cima. Mais rápidas que os carros, elas se distanciaram um pouco de nós, mas começaram a fazer uma espécie de suave zig-zag ao longo da avenida. Imaculadamente brancas, refletindo o brilho do sol em contraste com o fundo de nuvens escuras, elas eram um espetáculo à parte.

   Ora pendiam para esquerda e parecia que iam embora; mas voltavam de novo a cruzar sobre a avenida e pendiam para a direita. Andei uns três quilômetros assim, as duas aves brilhantes flutuando sempre à minha frente. Reparei então que elas batiam asas no mais perfeito sincronismo. Asa esquerda com asa esquerda, asa direita com asa direita, mesma inflexão para um lado, idêntica inflexão para o outro. Pareciam um casal de bailarinos que seguissem mesma coreografia, dançada anos a fio.

   Um casal, quis acreditar eu, que estava acostumadíssimo a fazer tudo juntos, a viver sempre em harmonia, no maior companheirismo. Não pude evitar que aquilo me comovesse e senti lágrimas subindo aos meus olhos. Como eu queria agora que Maria Amélia e eu tivéssemos sido um casal assim!...

   E de repente senti um angústia, uma dor inexplicável tomando conta de mim, manobrei o carro bruscamente, subi no canteiro central, que tinha mais de 10 metros de largura naquele ponto, e invadi a pista contrária da avenida, para susto e protesto dos outros motoristas. Danei a correr de volta feito um louco, fiz ultrapassagens perigosas, só parei na entrada do nosso prédio. Deixei motor ligado, porta aberta, joguei a chave na mão do porteiro assustado e corri, corri escada acima arrastando a mala, não dava pra esperar elevador!

   Então estaquei em frente à porta do nosso apartamento. O que é que eu ia dizer a Maria Amélia? Pois se nem eu mesmo sabia porque tinha voltado daquele jeito maluco. Na certa ela ia ficar abismada, ela com toda a sua calma, com todo o domínio dos nervos que sempre tinha, ela que tão bem aceitara a ideia da nossa separação.

   Enquanto esperava que minha respiração voltasse ao normal, pensei em apertar a campinha da porta. Caramba, cara, que coisa mais patética! Esse apartamento também é seu, você tem a chave, Maria Amélia vai compreender sua vacilada; logo, logo você está saindo de novo e indo para o hotel. Aí girei a chave na fechadura meio que com medo, entrei sem fazer barulho algum e deparei com uma mala ainda aberta no meio da sala. Dentro, roupas de Amelinha!

   Ouvi barulho de chuveiro na suíte, Maria Amélia estava no banho. Na mesa grande da sala, havia uma carta em um envelope enorme. Letra dela no dorso, dirigida a Elvira, sua mãe.

   Automaticamente eu abri o envelope e li a carta:

   “Mãe,

   Conforme eu lhe disse no telefone, preciso que a senhora tome conta deste apartamento por uns tempos. Vou deixar as chaves com o Silva da portaria, ele é de total confiança. O Anselmo saiu de casa hoje, como a gente tinha combinado. Na hora foi super-tranquilo. Mas depois que ele bateu a porta... Ah, mãe, me deu uma coisa, uma dor tão grande, um desespero. Mãe, a gente jogou fora quinze anos da nossa vida, mãe! A gente tinha tudo pra ser feliz, a gente se gosta, é amigo pra caramba, sempre fez tudo junto. Mas a gente foi se fechando um pro outro, foi ficando egoísta. Não soubemos preservar nosso amor, mãe.

   Eu estou acabada, mãe, acho que eu quero morrer, a coisa é muito mais difícil do que a gente imaginou. E eu não quero fazer nenhuma besteira, porque sei que não vou aguentar viver neste enorme apartamento sem ele. Então eu já resolvi, comprei passagem por Internet agora mesmo, eu vou pra casa da vó, estou indo daqui a pouco pra Ribeirão Preto, lá eu pego um taxi pra Sertãozinho. Vou chegar de surpresa, não vou avisar, preciso de um colo agora.

   Mas não quero ficar em São Paulo, mãe, me perdoe se eu vou buscar o colo da Vó Cândida e não o seu. Não quero ficar em São Paulo, eu tenho certeza que vou correr atrás do Anselmo, vou cair na choradeira, vou fazer fiasco, mãe. E a gente acertou tudo tão direitinho, no maior acordo, na maior tranquilidade, ele vai achar que eu sou uma louca. Ele tem a maior maturidade, mãe, encarou a nossa separação de uma maneira tão tranquila, como se fosse a coisa mais natural deste mundo. Eu também tentei fazer isso, mãe. E o pior é que eu consegui, eu acho que acabei mandando o Anselmo embora da minha vida, mãe. Eu sou uma idiota, uma débil mental!

   Ai, eu estou tão desesperada, mãe. Me perdoe, sua filha não é essa fortaleza que vocês dizem que eu sou. Tenha paciência comigo, tome conta do apê, quando eu estiver menos desmanchada eu volto.

   Beijos, te amo, perdão
   Amelinha

   Caí das nuvens! E à minha mente voltaram imediatamente as duas aves brancas, voando em perfeito sincronismo: Maria Amélia e Anselmo! Talvez Deus tivesse ficado com pena de nós e nos tivesse mandado aquelas mensageiras do céu para me fazer cair em mim e ver como eu tinha sido estúpido. Maria Amélia, minha Amelinha, estava sofrendo tanto por culpa minha, um arrematado egoísta, um perfeito imbecil moderninho! E ela dizendo pra mãe que eu tenho a maior maturidade! Justo eu, um pateta, um moleque, um imaturo total!...

   Entrei no quarto, joguei com raiva a mala sobre a cama e me aproximei da porta do banheiro. Lá dentro o barulho da água parou e deixou de abafar o som de soluços de desespero. Eu fiquei paralisado...

   No instante seguinte, Amelinha saiu chorando do banheiro, enrolada numa toalha branca. Arregalou seus olhos vermelhos ao me ver ali no quarto, ao pé da cama, onde minha mala estava jogada.

  Tremendo, incrédula, fungando, ela murmurou a custo:
   – Anselmo...
   E eu caí de joelhos em frente a ela, abracei o seu corpo esguio, apertei minha cabeça contra seu ventre e falei, aos arrancos:
   – Perdão, Amelinha! Perdão! Me perdoe, meu amor, eu fui um imbecil, eu não quero perder você, não posso perder você. Vamos começar tudo de novo, amor!
   Ela me puxou para cima, abraçou-se a mim com toda força, ria e chorava ao mesmo tempo:
   – Você quer, Anselmo? Quer mesmo recomeçar?
   – Não quero recomeçar, meu amor, porque nós não vamos deixar nada acabar, não vai ter recomeço, só continuação. E eu juro que vou mudar, vou deixar de ser este cara idiota metido a moderno, a filósofo de botequim. A verdade é que eu te amo, Maria Amélia, você é a criatura mais importante deste mundo pra mim.
   – Mas... o que aconteceu pra você ter mudado assim, de repente?
   – Duas aves brancas, voando juntas, em perfeita sincronia, num céu cinzento de tempestade. Foi isso, Amelinha. Deus abriu meus olhos, eu percebi que aquelas aves eram você e eu. E aí voltei dirigindo como um louco, voltei porque quatro quilômetros de avenida foram suficientes para me deixar desesperado de saudade de você.

   Então explodimos no primeiro beijo depois da separação. E ele foi como o nosso primeiro beijo de paixão quando adolescentes! Sem que fizéssemos nada, a toalha imaculadamente branca como as aves do céu caiu ao chão. Então eu vi como minha mulher ainda era puro esplendor em sua beleza madura e a visão dos seus seios e do seu sexo me fez explodir de desejo.

   Fizemos amor como há muito anos não fazíamos. Foi puro deleite, total paixão, puro reencontro. Nós estávamos perdidos de nós mesmos e nos reencontramos ali. Depois, quando, mãos nas mãos e olhos nos olhos, nus, nós ficamos longo tempo deitados de frente um para o outro na cama, eu contei para ela tudo sobre as duas aves brancas em zig-zag sobre a avenida, ela contou para mim sobre a carta que estava na sala, dirigida para sua mãe. Então eu recitei tim-tim por tim-tim o que ela havia escrito e foi como se aquela carta e aquelas aves tivessem nos religado para sempre. Dali em diante voaríamos sempre juntos.

   Tanto que no dia seguinte, passando mão numa mais que surpresa mãe Elvira, nós voamos os três para Ribeirão Preto. Vó Cândida ia ter a maior surpresa, lá em Sertãozinho: sua filha e sua neta chegando de repente, a neta em plena viagem de lua-de-mel...

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