sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

LUA  OCULTA – 21   
MILTON MACIEL  

Fim do cap. 20:  "Apertaram-se as mãos efusivamente e Leon ainda falou, saindo para o vestiário:
– Pra semana eu ligo pra você, aí me diga uma hora em que pode me receber aqui ou na firma, pra gente conversar mais sobre futebol. Acho que eu tenho muito o que aprender com você, cara.

21 – A GRANDE REVELAÇÃO: QUEM É CELSO ROMANO TELES, NA VERDADE

– Não vá embora ainda, nem deixe seus meninos irem. O melhor da festa vai começar agora.

E apontou para a entrada do campo. Naquele momento um monte de gaúchos paramentados a rigor chegava com várias mesas de montar, ajudados por vários populares que ali estavam. De imediato desembarcaram de uma grande van um enorme número de espetos com carne fumegante. Era a trupe de Etelvino, o gaúcho, o pessoal da Churrascaria Estrela dos Pampas, que ficava logo ali, na esquina seguinte da Rua Tuiuti.

Churrasco e bebida correram livres naquele início de tarde, pouco depois de meio-dia. Tudo, é claro, por conta do feliz dono da Academia e dos campos de futebol, o risonho e eufórico paulista Celso Teles.

Risonho pelos sucessos, eufórico por causa de um pequeno detalhe que Gládis De Rios lhe revelara, instantes antes:

– Sabe jefe, eu estava com a Fofinha na torcida do Delfim, ela me pediu para ficar lá com ela, tinha que torcer pelo time do Leon, tinha prometido para ele. E ela fez isso, até que você fez aquele gol de falta. Pois ela deu um pulo com os braços pra cima e um berro de gol, comemorou o seu gol e aí se deu conta que estava na torcida deles. Ficou super-vermelha, e tentou explicar:

– Ah, foi gol do meu chefe, gente, me desculpem, eu tenho que comemorar.

– E comemorou os outros gols do Nacional e a vitória final. Dá pra acreditar? Achei que o meu jefito gostaria muito de saber isso.

Como resposta, Celso deu um beijo estalado na cabeleira preta e cheirosa de sua amiga e respondeu:

– Valeu, espanholita, obrigado. Fico devendo esta!

E, se já estava feliz, fez-se radiante. Ah, como era bom viver certos dias da vida!

Lá pelas 14 horas, quando todos já estavam de barriga cheia e muitos bem alegres com a cerveja, um microfone foi instalado à beira do gramado e duas potentes caixas de som foram colocadas próximo. A deusa negra, a Rainha de Sabá, tomou da palavra, pedindo silêncio.

– Calma, pessoal, agora um pouco de silêncio, porque chegou o momento culminante da nossa festa. Nós vamos agora entregar o prêmio de cinco mil reais ao vencedor do torneio de futebol,  conforme foi prometido. Peço a presença do nosso chefe, Celso Teles, que transformou todo este grande sonho em realidade hoje.

Quando Celso chegou ao palco improvisado, vinha acompanhado daquele japonês cabeludo, baixinho e gordo. Que caiu na choradeira quando viu a enorme faixa que foi desdobrada, nesse exato momento, atrás deles. Ali estava escrito, em letras enormes:

“1º. Torneio de Futebol HANASHIRO ITO

Então Celso falou:

– Pessoal, hoje é um dia muito importante na minha vida. Hoje eu comecei a realizar meu sonho mais precioso, com a inauguração destes campos de futebol. Com o nome que vocês estão vendo na faixa, eu quero homenagear um velho amigo da minha infância, um homem admirável que produzia então e produz até hoje a melhor grama para campos de futebol em todo o Brasil. É o pai do meu melhor amigo de infância, Hiro, que trouxe uma das carretas de grama pessoalmente, desde Indaiatuba, nossa cidade natal, lá em São Paulo. E que concordou em ficar aqui conosco até hoje, para assistir ao nosso torneio.

– E para receber esta surpresa que quase me mata do coração –disse Hiro Ito, chegando-se ao microfone, olhos ainda vermelhos, muito emocionado.

O público aplaudiu longamente. Celso voltou a fazer sinal de silêncio.

– Meu amigo Hiro, em nome do seu pai, vai entregar o prêmio de cinco mil reais aos vencedores do Torneio Hanashiro Ito. Por isso eu peço a presença aqui dos dois capitães dos times, o Bentinho e o Dieter.

Bentinho apareceu exultante, levantando os punhos cerrados para o ar. Dieter veio mais comedido, tinha levado uma senhora goleada dos riquinhos.

Hiro Ito pegou o cheque de cinco mil reais ao portador e o entregou a Bentinho, segurando-o também enquanto dezenas de celulares espocavam em fotografias.

– Para o vencedor, cinco mil reais: Nacional Esporte Clube!

Aplausos delirantes da torcida do Nacional. Também o pessoal do Bandeirantes aplaudiu, solidário. Reconheciam que não poderia ter feito papel melhor nesse torneio.

Hiro Ito pegou um segundo cheque, esse completamente inesperado, e Celso falou:

– Por favor, Dieter, venha receber o prêmio do seu time.

E, quando este segurou a ponta do cheque com Hiro, para as fotografias, Celso anunciou:

– Para o terceiro colocado, um prêmio de cinco mil reais: Bandeirantes Futebol Clube!

A galera explodiu em aplausos e gritos. Dieter arregalou os olhos e arrancou o cheque da mão de Hiro para conferir. E aí foi ele que deu vexame, bem tinha avisado Bentinho que seu compadre Dieter era um manteiga derretida.

Sem esperar que o pessoal se refizesse da surpresa, Celso falou:

– Por favor, o capitão e representante do nosso vice-campeão, o Delfim Futebol Clube, Leon Schlikmann, por favor.

Leon chegou com cara de surpresa, viu Celso passar mais um cheque para a mão de Hiro, que o estendeu a Leon, para que ambos o ficassem segurando juntos para as fotos. E Celso arrematou:

– Para o segundo colocado, o prêmio é de... cinco mil reais: Delfim Futebol Clube!

Mais uma onda de aplausos, Leon felicíssimo, não pelo dinheiro em si, pouca coisa para os padrões dele e de seus jogadores, mas muita coisa junto com as palavras de Celso:

– Este prêmio vai para recompensar nosso melhor time de futebol de Amarante. Perderam por culpa minha, porque eu não joguei limpo com eles: eu entrei no time do Nacional. E eu já fui jogador profissional.

Mais uma vez ele pediu silêncio e disse aquilo que era a parte mais importante de sua fala, o grande anúncio que queria fazer naquela tarde:

– Atenção, todos agora. Atenção. Agora eu vou dar uma notícia realmente importante. O que nós fizemos hoje aqui, com a inauguração dos campos e a realização do primeiro Torneio Hanashiro Ito, foi só o primeiro passo para a realização da primeira parte do meu grande sonho. E fez um instante de suspense, antes de anunciar:

– Amanhã eu vou dar entrada nos papéis para a constituição do primeiro time de futebol PROFISSIONAL desta cidade, o AMARANTE ESPORTE CLUBE!

O ruído produzido pelas pessoas foi ensurdecedor. As frases entreouvidas no tumulto iam desde “Ele é doido varrido!”, até “Me belisca pra ver se eu não tô sonhando”.

Só depois de o tumulto serenado, Celso pôde explicar:

– Primeiro eu vou formar um selecionado local, com os melhores jogadores dos três times. Esse ainda vai ser um time amador,  pra gente enfrentar times de outras cidades. E para se divertir e brincar. E, claro, para a mesma finalidade, vamos manter e incrementar os nossos times tradicionais, o Nacional, o Bandeirantes e o Delfim. Aí, do que resultar do nosso selecionado, eu vou montar o time profissional, valorizando primeiro a prata da casa, os que têm potencial para evoluírem para craques. O resto, eu contrato de fora. Mas podem escrever aí: o Amarante Esporte Clube vai nascer para ser um campeão, para vencer as divisões de acesso uma por uma e chegar à divisão especial do Estado. E aí o Campeonato Brasileiro e a Copa de Brasil que nos aguardem.

Foi um delírio total. Gente gritando, assobiando, batendo os pés, dançando, brindando, abraçando Celso Teles até quase sufocar. Parecia até mentira: Amarante ia ter um time de futebol profissional! Isso jamais teria passado pela cabeça do mais otimista sonhador entre os amarantenses. E aí chegava aquele moço paulista e virava tudo de pernas pro ar, sacudia a cidade, transformava um sonho que nem se podia sonhar em realidade iminente!


Após o encerramento das comemorações, Celso reuniu todo o pessoal que lhe era mais próximo e pediu que o seguissem nos carros até a sede da Teles Automóveis. A esses, e somente a esses, iria revelar o resto do seu projeto. Ou seja, iria enfim, SE revelar por inteiro no Brasil!

Instalou todos ao redor da enorme mesa de reuniões, de 24 lugares. Então ligou seu notebook e acoplou a ele um projetor de imagens. E começou a projeção, mostrando trechos de uma reportagem com diversos jogadores jovens do Brasil, todos jogando em campos estrangeiros. Aos poucos a sucessão de imagens em vídeo foi se concentrando em um único jogador, um rapaz alto, de enorme cabeleira comprida e barba espessa, de tom acastanhado. Curtos vídeos em espanhol inglês, italiano, mais alguns idiomas estranhos, que pareciam russo ou árabe, eram misturados com um grande número de fotografias. Celso começou então a explicar:

– Esse é um jogador brasileiro que foi muito cedo para a Europa. Jogou, nesta ordem, nos times espanhóis do Betis e do Zaragoza, depois foi para a Ucrânia e de lá para a Rússia. Aí chegou ao seu apogeu, quando foi comprado pelo Milan, da Itália, onde ganhou um scudetto e uma copa dos campeões da Europa. Então aconteceu a desgraça: ele foi quebrado por um maldito  zagueiro italiano e ficou dois anos no estaleiro. Perdeu forma física e foi vendido para o futebol árabe. Era a decadência, embora ainda muito bem remunerada. E, da Arábia, ele atravessou o oceano e foi encerrar sua carreira nos Estados Unidos, jogando e depois dirigindo um time de Fort Lauderdale, na Flórida.

Então retirou de uma gaveta um grande álbum de recortes de imprensa, em todos os idiomas dos países citados, que entregou nas mãos de Fúlvio Rondelli . Tirou também uma sacola e pediu licença, pois precisava ir ao banheiro. Quando voltou, já Hiro Ito, Nicanor, Fúlvio Rondelli e Lucas tinham sacado quem era o jogador e cochichavam entre si, não dizendo nada para as moças.

Mas o Celso Teles que voltou do banheiro era outro: tinha colocado uma peruca enorme e uma barba postiça. E vinha paramentado com todo o uniforme oficial do Milan da Itália, chuteiras inclusive.

ROMANO!!! Gritaram os quatro homens quase que em uníssono.  

– Meu Deus, é o Romano do Milan!!! – reconheceu Carmen de Rios, que gostava de futebol.

As outras moças, Paula, Jennifer, Gládis e Larissa viram que aquele era exatamente o rapaz cabeludo e barbudo das fotos e vídeos. Então o chefe tinha sido muito mais do que um jogadorzinho do juvenil do Mogi Mirim, de São Paulo! Ele tinha sido ninguém menos do que o grande Romano, cérebro do time do Milan durante duas temporadas, que tinha deixado o futebol europeu depois de uma lesão irreparável.

O japinha falava, entusiasmado:

– Celso ROMANO Teles!... Sim senhor, você nos enganou direitinho, cara!

Fúlvio Rondelli comentou:

– Bem que eu achei o homem parecido com um grande jogador, quando o vi jogar. Cheguei a pensar no Rivelino, mas esse não é do tempo dele, é muito mais velho. Acho que condiz mais com o Diego, que foi do Santos e foi cedo para a Europa também.

Depois de receber os cumprimentos efusivos dos quatro homens e a admiração de todas as surpresas mulheres, Celso sentou em sua cadeira, com uniforme do Milan e tudo. Gládis notou a forma nova como Larissa o olhava: não era só admiração, o que ela via nos olhos da Fofinha, era orgulho!Ela está sentindo orgulho do seu chefinho... Que delícia!”

Então o chefe falou:

– Agora vocês já sabem, finalmente QUEM eu sou. Sou Celso Teles desde que voltei para o Brasil há seis anos atrás, aos 33 anos. Mas fui Romano simplesmente a maior parte da minha vida, dos 17 aos 33 anos. Foi como Romano que ganhei a minha fortuna, jogando na Europa, na Ásia e na América do Norte. E foi muito dinheiro mesmo! No Brasil, eu fui um desconhecido. E aproveitei isso quando decidi voltar para o meu país. Eu sabia como era chata a vida de outros colegas meus, que encerraram também suas carreiras lá fora e vieram acabar de vez com seu nome aqui no Brasil, jogando em timezinhos cada vez mais inexpressivos. Eu não quis isso para mim. Acabei de jogar nos Estados Unidos e lá mesmo passei para a posição de técnico e de dirigente de time, em Fort Lauderdale, Flórida. Aprendi demais com isso, porque minha ideia, já naquele momento, era vir para o Brasil e montar o meu time. Aproveitei também os meus dois anos de Flórida e trabalhei também nas car dealership americanas, como sócio de um americano e de um brasileiro, com lojas em Fort Lauderdale e em Miami. Foi quando aprendi tudo o que sei sobre mercado de automóveis novos e usados. Quando cheguei aqui, fui direto para Sertãozinho, uma cidade pequena o suficiente para que ninguém me reconhecesse como Romano. Raspei a barba, passei a usar o cabelo bem curtinho. E depois de dois anos na Arábia e dois nos Estados Unidos, todo mundo já tinha esquecido o cabeludo-barbudo do Romano.

Foi interrompido por um berro de Fúlvio Rondelli, que bateu forte na mesa:

– Pirlo! Andrea Pirlo! Esse era o craque que o meu chefe me lembrava, só agora me dei conta! É o Pirlo!

– Obrigado, Rondelli, pela comparação. Fico feliz demais com isso, o Pirlo é um tremendo de um jogador.

E continuou onde tinha parado antes da interrupção:

– Ali, morando em Sertãozinho, montei minha revenda de automóveis em Ribeirão Preto. E fui encontrando vocês todos, um por um, para minha grande felicidade. Achei o Nicanor em Sertãozinho mesmo, as espanholitas em São Paulo, Lucas em Barretos, Paula em Ribeirão e a Jennifer nos chegou pelas benditas mãos de Carmen. Assim eu montei a minha equipe nota dez e pude progredir rapidamente nos negócios.

Fechou um pouco o semblante e continuou:

– Mas aí me estrepei todo, conhecendo, me apaixonando e casando com a Rosana, de Sertãozinho. Deu no que deu, quatro anos depois. Vocês conhecem a história, o japinha, o Fúlvio e a Larissa não conhecem, nem precisam perder tempo conhecendo.

– E hoje você não joga as mãos para o céu agradecendo, jefito? Não foi melhor para você que a Rosana tivesse lhe causado o que causou?

– Ah, Gládis, Gládis, você sempre me surpreende com sua percepção avançada das coisas! Como você é incrível! Sim, por tudo o que me aconteceu foi que eu vim para Amarante e conheci Rondelli, que foi o amigo que eu mais precisava na hora certa. Rondelli trouxe com ele Larissa e os dois hoje fazem parte da nossa família, são parte importante da minha vida também. Sim você tem razão, espanholita sabida, eu tenho mais é que agradecer que tudo tenha acontecido daquele jeito lá em São Paulo. Sem aquilo, eu não estaria aqui, não estaria COM VOCÊS aqui, o que é o mais importante. E a minha vida sem vocês hoje não faz mais sentido. E o meu sonho de futebol está em pleno início. Sim Gládis, eu agradeço: Graças a Deus, bendita Rosana!

Ouviu-se um suave murmúrio diferente: pra variar, era Larissa que chorava com a carinha afundada no peito do padrinho. Celso sentiu uma onda de ternura subir-lhe ao peito: Chora de emoção. Será que é de alegria também?

Carmen levou as moças para copa e elas voltaram rapidamente com garrafas de vinho e várias taças. Rondelli as abriu e serviu a bebida. Carmen propôs o brinde:

– A Celso Teles, nosso jefito querido da Teles Automóveis! A Romano, nosso grande craque! À Teles Academia e suas escolinhas de futebol! E ao Amarante Esporte Clube, futuro campeão brasileiro!

Todos brindaram felizes, Celso mais do que todos eles, seus olhos momentaneamente perdidos num mar de azul água-marinha, que brilhava com um resquício de lágrimas, ficando ainda mais belos, fosse isso algo possível ou, sequer, imaginável. Aquilo é que era felicidade! Aquele 31 de Outubro jamais se apagaria de sua memória!

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

LUA  OCULTA – 20   
MILTON MACIEL  

Fim do cap. 19:  "Grande tonto! – pensou Gládis, sorridente – Deve ser... Como se ele também não achasse tudo isso e muito mais, muito tempo antes de a gente conhecer a criaturinha! Olha só a cara de apaixonado... Mas vai ter que sofrer bastante. Não se deve assustar uma gazela... 

20 - O GRANDE DIA DO TORNEIO

Enfim chegou o grande dia: se a loja da Teles Automóveis não chegou a ter a inauguração festiva que Celso pretendia, tomada de assalto que foi por dezenas de clientes no dia em que os carros, recém-chegados, começavam apenas a ser descarregados das carretas, os campos de futebol – minha menina dos olhos, como ele mesmo os chamava – tiveram uma inauguração a caráter.

Ao bom modo do interior, teve benção do padre católico e do reverendo luterano, ambos bons amigos, e a “furiosa” local, como era chama a banda do maestro Ademar, atacou velhos dobrados e marchas do seu repertório para grandes eventos. O prefeito municipal cortou a fita inaugural do Campo 1, o de futebol masculino. 

Mas o Campo 2, o que seria consagrado ao futebol feminino, foi, muito adequadamente, deixado à tesoura da eterna Miss Amarante. Trajada com um impressionante uniforme da seleção brasileira, camiseta canarinho, shortinho azul curto e justo e meias azuis, com chuteiras oficiais, seus atributos físicos generosos fazendo delirar os homens presentes, Larissa Silva cortou a fita inaugural. 
  
Fez mais: recebeu uma bola, atirada por seu padrinho e imediatamente começou a fazer embaixadinhas, para as quais tinha treinado horas sem fim. Aí, para delírio da rapaziada, entraram subitamente em campo as outras moças da seleção de vendas da Teles Automóveis, todas com o mesmo tipo de uniforme justinho da Seleção, cada uma mais linda do que a outra. Brincaram entre si com várias bolas e, para deixar tudo ainda mais impressionante, de repente surgiram mais de dez outras garotas com o mesmo uniforme canarinho: eram alunas da Teles Academia. Durante mais de meia hora, a inauguração do campo feminino ofuscou completamente as atenções para o campo masculino.

Essa situação só se reverteu quanto, às 9 horas em ponto, um homem todo de uniforme preto trilou um apito várias vezes, já no gramado do Campo 1: era o juiz chamando os times para o jogo inicial, que seria entre o Bandeirantes e o Delfim Futebol Clube. E, para surpresa geral, o juiz era CELSO TELES!

De dentro do prédio da Academia irromperam os dois times. O de flamante uniforme verde, muito similar ao do Palmeiras, puxado na corrida pelo capitão da equipe, o orgulhoso Leon Schlikmann; e o de surrados uniformes grenás, desbotados e consumidos por infinitas lavadas semanais, liderados à frente por um ainda mais orgulhoso Dieter Müller, grande ferramenteiro e capitão do time.

As moças da Teles, de uniformes canarinhos, fizeram as vezes de repórteres de campo, com pequenos gravadores digitais, entrevistando os jogadores, como se houvesse uma transmissão ao vivo. Nunca os modestos jogadores do Bandeirantes tinham se sentido tão importantes.

Larissa, cumprindo fielmente o script que Gládis lhe ensinara, com textos escritos por Celso, entrevistou Leon Schlikmann e os jogadores do Delfim. As outras quatro moças entrevistaram jogadores do Bandeirantes e, também os do Nacional, que já estavam com seus uniformes vermelhos, esperando a vez de entrarem em campo, contra o time vencedor do primeiro jogo.

Num determinado momento, aproveitando a proximidade, Leon Schlikmann, rindo, arrancou rapidamente o gravador da mão de Larissa e levou-o à altura do rosto da bela Jennifer, passando a entrevistá-la, algo totalmente inesperado, surpreendente e muito hilário.

– Nossos ouvintes gostariam de saber da capitã da Seleção Brasileira Feminina, se ele é solteira, casada ou comprometida.

Todos riram muito, Larissa e Jennifer inclusive, dando tempo para que esta se refizesse e respondesse enfim:

– Solteiríssima, livre e desimpedida, meu senhor. Meu único compromisso é com as vendas da Teles Automóveis.

– Fantástico! Olhem só que notícia maravilhosa, ouvintes! Atenção, moçada de Amarante, quem se habilita? Sejam rápidos, podem formar a fila.

Rapidamente alguns rapazes entraram na brincadeira e começaram a formar uma fila. Mas Leon Schlikmann foi mais rápido, postando-se à frente do primeiro e dizendo:

– Opa, atrás de mim, por favor! Eu sou o primeiro da fila.

E entregou o gravador de volta para Larissa, que se dobrava de rir. E, para surpresa de todos, ao invés de mostrar contrariedade com a atitude do “noivo eterno”, passou a mão nos cabelos louros de Leon e falou:

– Fofo! Que lindo o que você fez...

Jennifer ficou sem ação. Caramba, aquele rapaz era um galanteador de marca, um provável galinha, mas o que ele acabara de fazer era uma verdadeira homenagem. E partindo de um alemão ariano, de família tradicional. E ainda por cima , o filho único do racista nojento que a destratara e levara dela uma lição humilhante. Para resolver o impasse, decretou:

– Atenção, companhia: dispersar! Agora é hora do futebol. O resto fica pra outra hora.

E, afastando-se, voltou as costas para a fila, que agradeceu penhorada a visão daquele traseiro monumental mal contido pelo shortinho, gingando sobre as coxas negras e lustrosas. Que visão! Que tesão! Que classe! Que mulher!

O juiz voltou a apitar impaciente e todos os jogadores foram para o meio do campo, para a foto oficial. Imediatamente depois, campo totalmente liberado, cada time ocupou o seu lado do campo, definido pelo rápido sorteio com a moeda do juiz.

O jogo foi tranquilo e até um pouco monótono. A diferença de qualidade dos jogadores era evidente, os do Delfim muito superiores. Mas o pior era o problema do condicionamento físico. O Bandeirantes era, na prática, o time dos casados de Amarante. Em outras palavras, ali as linhas de cintura generosas e as barrigas avantajadas predominavam sobre as normais. Correspondentemente, o fôlego dos atletas, alguns deles fumantes para piorar as coisas, era de muito curta duração. 

O jogo virou 2 a 0 para o Delfim. Isso que os tempos eram de somente 35 minutos, 10 minutos mais curtos que o normal, já para compensar o despreparo físico dos contendores. Ao final da partida, vitória esmagadora do Delfim por 5 a 1. A arbitragem foi tranquila, os jogadores demonstrando total respeito pelas decisões do juiz. Que, para surpresa de muitos, demonstrou um senhor conhecimento de regras de futebol, aplicando, inclusive, três cartões amarelos e fazendo uma expulsão: um zagueiro do Bandeirantes, por uma entrada violenta por trás, que resultou na marcação de um pênalti. Leon converteu-o no último gol do jogo.

O time dos riquinhos nem saiu de campo. Ficou esperando pela entrada do Nacional, a alvinegrada, segundo eles diziam. Antes de eles entrarem, entrou o novo juiz. Todos compreenderam, afinal Celso Teles podia ter boa forma física, podia correr todos os dias, mas daí a apitar dois jogos sucessivos, sem descanso, era querer demais.

Na arquibancada que Celso tivera o cuidado de mandar erguer, as torcidas começaram a se digladiar. De um lado a do Nacional, a mais numerosa, que contava também com a colaboração dos torcedores do Bandeirantes. A polarização era clara: pobres contra ricos. Do outro lado as meninas do Delfim, namoradas e parentes dos rapazes do Clube do Imigrante, assim como muitos homens das classes mais privilegiadas.

Dois jogadores sobressiam na partida: Leon, um bom driblador e, com sua altura, um excelente cabeceador, com uma boa noção de conjunto também. E Bentinho, um verdadeiro azougue, um driblador emérito e um corredor de enorme velocidade, baixinho demais para assustar nos cabeceios. Não jogava para o conjunto, este é que jogava em função dele, o que Celso já havia falado ser o grande ponto fraco do time.

No final do primeiro tempo de 35 minutos, o Delfim vencia por 2 a 0. Um gol de cabeça de Leon, um gol contra do zagueiro do Nacional, frangaço do goleiro. Leon se divertiu e humilhou vários adversários, com dribles e bom lançamentos, aplicando um vistoso chapéu no lateral esquerdo adversário.

O juiz, um cidadão importado por Celso Teles de Florianópolis, onde era juiz profissional, deu um descanso maior, de 20 minutos para os dois times. Quando eles voltaram a campo, havia duas substituições no Nacional. Saída de Joãozinho, entrada de Pedro Bala, outro velocista emérito. E saída de Luiz Barrilete, o rechonchudo do time, entrada de...CELSO TELES!

Celso Teles?! Sim era ele mesmo, com o uniforme do Nacional. Será que jogava mesmo? E como ia se ver com o fôlego, depois de correr como um doido apitando a primeira partida?

O que se viu nos 35 minutos seguintes, mais 4 de prorrogação, foi uma verdadeira aula de futebol. Leon aproveitou a primeira chance a partiu com a bola para cima de Celso, envolvendo-o em um drible fácil. Com o êxito, resolveu repetir a brincadeira. As meninas da torcida do Delfim deliravam: Dá-lhe Leon!

Na terceira vez, a bola caiu entre ele e Celso, mas o paulista dominou-a primeiro, passando-a do peito do pé para o calcanhar. E aí deu o drible da vaca em Leon, que, ao se voltar, caiu de bunda no chão. A galera explodiu em aplausos e gozações.

Leon ficou contrariado e esperou nova chance. Assim que teve a bola, no meio do campo, marchou ostensivamente em direção a Celso. Agora a coisa tinha virado disputa pessoal, a plateia numa expectativa delirante, cada torcida aclamando o seu herói na guerra da bola.

Celso esperou que Leon chegasse, tomou-lhe a bola com a maior facilidade, aplicou-lhe dois lençóis sucessivos e disparou como uma flecha em direção ao gol, partindo do grande círculo central. Estavam todos desconcentrados, todos parados para assistir o duelo inesperado entre os dois líderes, Celso não encontrou ninguém no seu caminho que chegasse a tempo de enfrentá-lo. Driblou o único zagueiro no caminho do gol e encobriu o goleiro que saía desesperado. Fez o primeiro gol do Nacional na partida.

Leon passou a evitar o confronto com Celso e concentrou-se no jogo coletivo. Mas, cinco minutos depois, Celso fez um lançamento de trinta metros para a corrida de Bentinho. Era veloz demais para ser superado na corrida, o lateral esquerdo do Delfim optou por derrubá-lo na intermediária e levar o cartão amarelo. Celso pegou a bola para cobrar. A falta era quase frontal, pouco depois da intermediária.

O goleiro, tranquilo com a distância, armou a barreira com três jogadores. Quando a bola saiu do pé direito de Celso, ele observou a trajetória e pulou para o lado esquerdo. Então, inexplicavelmente, a bola fez uma curva maluca e foi alojar-se no ângulo do lado oposto, rente ao travessão, lá onde a coruja dorme. Gol do Nacional, empate 2 a 2.

Mais algumas escaramuças e escanteio para o Delfim. Sua jogada mais temível: os baixinhos do Nacional não tinham estatura para pular junto com Leon e marcá-lo. Mais um gol de cabeça, 3 a 2 para o Delfim.

Faltavam menos de 8 minutos para o final. Celso distribuindo o jogo, com passes monumentais, desequilibrava a partida. Num desses lançamentos, pegou Pedro Bala na intermediária. O homenzinho desatou a correr como se tivesse um motor e chutou cara a cara com o bom goleiro Nando. Empate: 3 a 3.

Leon começou a ficar preocupado. Aqueles cinco mil, que eles já tinham resolvido entre si que seria todo investido em uísque importado, estava em perigo agora. Precisava fazer uma jogada que garantisse a vitória. Seu time estava claramente encolhido, com medo do paulista. Só ele poderia resolver a coisa. Então foi para o tudo ou nada. Recebeu a bola do goleiro na intermediária e avançou com ela dominada, outra vez ostensivamente em direção a Celso Teles. Caprichou no seu melhor drible, mas Celso tinha experiência demais, logo decodificou a jogada que viria e preparou o contraveneno. Quando Leon passou e preparou a corrida triunfante, viu que a bola tinha ficado com Celso. 

Foi o paulista que disparou e, na intermediária, aplicou outro drible da vaca, desta vez no gigantesco Aurélio, que não se conformou e partiu no encalço do desgraçado. Alcançou-o com um violento chute por trás, fazendo Celso rolar várias vezes no gramado. Levou cartão amarelo do juiz. Mas levou cartão vermelho de Leon, o dono do time:

– Seu filho da puta, eu não disse que não queria porrada em campo?! Não sabe perder, não, seu merda? Cai fora, você não joga mais no Delfim, cansei do seu gênio, idiota.

Aurélio, furioso, partiu para cima de Leon. Mas Celso, já em pé, derrubou-o com um simples tranca-pé e o segurou, ainda no chão por trás:

– Que que é isso, companheiro? A gente está só brincando. Trate de se acalmar ou vai ser pior pra você. Não vale a pena.

Mas já era tarde demais. O juiz, vendo a tentativa de agressão de Aurélio a um atleta do seu próprio time, expulsou-o incontinenti. Ele então resolveu partir para cima do juiz, que correu pelo campo, não tinha nem idade nem físico para encarar aquele troglodita. Mas Celso já tinha feito sinal para um homem que estava à beira do campo. Ele entrou correndo e interceptou a corrida de Aurélio. E prostrou-o no chão com um violento soco no estômago, seguido de um upper cut profissional. O gigante loiro caiu se retorcendo e vomitando, quase desmaiado. Mas ainda teve consciência para ouvir o rosnado daquele mulato imenso:

– Desta vez você escapa. Da próxima, já era! Nunca mais se meta a machão nesta cidade, seu bosta!

Era Nicanor, o empreiteiro e ex-pugilista profissional, que ergueu Aurélio do chão com a maior facilidade, como se ele fosse um saco de penas, torceu-lhe o braço para trás e obrigou-a a caminhar direto ao banheiro, enfiando-o debaixo do chuveiro gelado.

– Vai esfriar a cabeça, seu porcaria. E depois some daqui, nunca mais aparece na minha frente.

No campo, ânimos serenados, Leon pedia desculpas a Celso sem parar:

–Pô, foi mal cara, me desculpa. Eu já devia ter tirado aquele ignorante do time há mais tempo, não é a primeira vez que ele apronta, que dá uma de machão, só porque é forte como um touro.

– É, mas hoje ele encontrou um que é forte como dois touros.

– Pois é rapaz, o homem é um armário também. Eu achei ótimo ele ter surrado aquele idiota. Quem é o cara?

– É o Nicanor, meu empreiteiro, o cara que construiu tudo o que você está vendo aqui. Mas vamos terminar a partida?

Conversaram com o juiz e o jogo recomeçou. Nova cobrança de falta. Nova batida de Celso. Nova curva impossível seguida pela bola, outra vez ela de um lado, o goleiro do outro. Gol do Nacional, 4 a 3.

Com um jogador a menos, o Delfim tratou de se retrancar na defesa. Ainda bem que faltava tão pouco tempo para o fim do jogo. E o juiz, apesar do longo tempo perdido com faltas, tentativa de agressão e expulsão, corrida para salvar a pele e retirada do malogrado machão de campo, deu só quatro minutos de prorrogação. 

Mas, durante esta, mais um lançamento para Bentinho, mais uma falta, mais uma cobrança de Celso, de fora da área, lado direito. Desta vez o goleiro colocou cinco na barreira, mandando que todos pulassem. Celso correu, o goleiro ficou estático sem escolher nenhum lado, a bola passou pela barreira, fez aquela curva amaldiçoada, ilógica e foi se chocar violentamente contra o travessão. No rebote, Bentinho fez o gol com a barriga.

O juiz validou: 5 a 3. Mas Celso Teles anulou:

– Nada disso, Bentinho. Você levou a bola com a mão na frente da barriga, o juiz não podia ver. Mas eu vi. E o Nando aqui também viu, com certeza, não é Nando?

O goleiro do Delfim confirmou:

– É, foi gol de Maradona, gol com a mão. O senhor vai anular?

O juiz não só anulou o gol, como deu cartão amarelo a Bentinho.

– Por conduta antidesportiva, Seu Bento.

Um minuto depois pediu a bola e fez soar o apito final. Vitória do Nacional, 4 a 3.

As torcidas da várzea explodiram em uma algazarra sem fim, invadiram o campo. Muitos só para tirar sarro dos jogadores do Delfim. Todos corriam para Celso Teles, também. Mas Leon Schlikmann alcançou-o primeiro e apertou-lhe a mão:

– Parabéns, cara, que vitória bonita. Sabe que é a primeira vez que a gente perde um jogo aqui em Amarante? Puxa, você joga demais. E todo esse fôlego depois de apitar o primeiro jogo. Você já foi profissional, não foi?

– Fui, sim, já joguei no Mogi Mirim de São Paulo, quando era bem garoto.

– E essa sua maneira de cobrar faltas? O que que é isso?! É uma falta, um gol, é fatal! Como é que você consegue?

– Ah, isso é uma coisa antiga, tinha o nome de “Folha Seca”. Outra hora eu explico.

– Tá, promete. E eu queria agradecer porque você livrou o meu nariz de ser esborrachado por aquele macaco branco. Que susto, cara! Eu detesto violência, não sou bom de briga, nunca fui.

– Então eu queria agradecer também, porque você demonstrou um incrível espírito esportivo. Você expulsou aquele imbecil que quis me quebrar, quando o juiz não teve coragem de fazer isso.

Apertaram-se as mãos efusivamente e Leon ainda falou, saindo para o vestiário:

– Pra semana eu ligo pra você, aí me diga uma hora em que pode me receber aqui ou na firma, pra gente conversar mais sobre futebol. Acho que eu tenho muito o que aprender com você, cara.

CONTINUA

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

LUA  OCULTA – 19   
MILTON MACIEL  

19 - MAIS "CELSETES" NO PEDAÇO
Fim do cap. 18: "E os campos eram dois por uma razão que deixou todos de queixo caído: o primeiro, o que seria usado no domingo para o torneio, seria o campo de futebol masculino. O outro, igualmente pronto, destinava-se ao futebol feminino! Então a cidade ficou sabendo que a Teles Academia seria também uma escola de futebol para meninos e meninas, “dos 4 aos 80 anos”. Mas isso não era tudo e a novidade mais explosiva foi reservada para depois do fim do torneio, quando Celso faria seu novo e inacreditável anúncio."

A cidade de Amarante estava em polvorosa. Naquela semana explosiva da chegada dos automóveis, da inauguração extraoficial, forçada, da loja invadida pelos clientes mais ricos, do início da nova academia, do anúncio do torneio de futebol no domingo seguinte, da inauguração de dois campos de futebol ao mesmo tempo, só um nome estava em todas as bocas: o do paulista Celso Teles!

Que homem era aquele, capaz de praticamente num piscar de olhos, incendiar toda uma cidade, que vivia antes na pachorra  de seu bucólico marasmo de todos os  dias? Era rico, ainda jovem, era dono de um corpo atlético, tinha uma beleza máscula muito singular, e era... solteiro!

Ao mesmo tempo, comentavam os que já o conheciam, era de uma simplicidade e de uma generosidade completamente incomuns em um homem rico. Gostava de frequentar botecos como o do Bicalho, conversava lá com todo mundo, do garçom ao bebum, da faxineira ao proprietário.  Vestia-se com roupas simples, bem combinadas, mas sem estardalhaços, roupas normais de lojas comuns. Sendo dono da maior revenda de carros nacionais e importados da cidade, andava com um automóvel fabricado no Brasil, um dos menos caros de sua firma.

Mais do que nunca, Celso Teles tornou-se o ai-jesus das mulheres amarantenses. A trupe das Celsetes cresceu ainda mais na academia, fazendo maior ainda a surpresa de Nelson. E, na loja da Teles Automóveis, começou um desfile de dondocas e de moças mais simples, todas manifestando interesse em comprar um carro novo ou usado, fazer um test drive, mas, na verdade, sempre procurando um pretexto para poderem ser atendidas pelo proprietário.

Paula, a mais desbocada das vendedoras da Teles, inventou um código, com o qual fazia sinal para as outras colegas, sempre que achava que a possível compradora tinha vindo, na verdade, atrás de Celso Teles.

Ela dobrou os dedos da mão direita para dentro, deixando só o polegar e médio estendidos, que arqueou um pouco para dentro também. Uniu-os pelas pontas e imprimiu-lhes um pequeno movimento de abertura entre si, de modo a sugerir os lábios maiores de uma vulva, que se abrissem um pouco. E disse às colegas, no momento do cafezinho, qual era o significado do sinal:

– Quando eu fizer esse sinal, vocês já sabem o que eu estou avisando: “Aqui está mais uma trazida pela boceta”. Aí vocês já sabem que ela não vai comprar carro coisa nenhuma. Ela vai florear, negacear, tomar o tempo da gente, depois vai vir com uma conversa mole que precisa ver o Celso. Mas é só periquita em fogo, meninas. E fogo vai ser é pra gente, que vai ter que atender essa assanhadas tão bem quanto qualquer outra pessoa. E o cliente real, a cliente real, vão acabar tendo que esperar que a gente se livre dessas piranhazinhas. 

– É mesmo, Paula – concordou Gládis – Você tem toda a razão. Se o jefe fosse um galinhão, não ia poder fazer mais nada nesta cidade, gastava o pinto em dois tempos, ia ficar reduzido a um pirulitinho.

A gargalhada foi geral, menos por parte de Larissa, que riu amarelo, só para não parecer que não tinha entendido. Agora ela já estava em pleno treinamento de oito horas por dia, passando pela atenção não apenas de Carmen, mas de Gládis, de Jeniffer e de Paula. O tal anjo louro tinha virado uma unanimidade para as colegas: era a Fofinha

Não importava o fato de que ela fosse a mulher mais bonita que qualquer uma delas, sem exceção, já tinha visto em toda sua vida. Não conseguiam sentir inveja dela por isso. Ao contrário, aquele tipo de beleza cândida, angelical, algo infantil, suscitava-lhes carinho antes de mais nada e acima de tudo. Por isso aceitaram-na francamente, com sinceridade e gosto, sem temor de vê-la superá-las em vendas e comissões por causa daquela beleza absurda. Esforçavam-se todas para ajudar a novata, para conseguir que a Fofinha também se tornasse uma campeã de vendas. Que amor que é essa menina! – falavam entre si.

 Larissa riu bastante, acompanhando o sinal que Paula inventara, agora reproduzido nas mãos das outras colegas. Mas seus olhinhos de água-marinha não riram. Estavam olhando para dentro, acompanhando a mente que pensava: Ah, mas que assanhadas, que mulheres sem classe, que ridículas! Vêm aqui porque sabem que o chefe é rico, que é bonito – sem ser nenhum Leonzinho, é claro. É fortão, tem aquele corpo que essas palhaças devem achar um tesão. Eu também acho que o corpo dele é muito melhor que o do Leonzinho.... Ora, que bobagem, eu não acho nada, eu não tenho que achar nada! Que que eu tenho com o corpo do doutor?! Elas que achem o que quiserem do corpo do chefe, essas desfrutáveis! Nojentas!

E voltou a encher a xícara de café num repelão, embora não quisesse beber mais, apenas para parar de pensar aquelas coisas e tirar os olhos da roda de mulheres buliçosas ao seu redor.

Contudo, um par de olhos amigos não desgrudava dela um só instante: – Olha como ficou irritada, a Fofinha! Que lindo... E ela não percebe nada, santa ingenuidade! ... – Às vezes Gládis ficava em dúvida se o que concluía vinha de sua própria argúcia, por força de observação e raciocínio, ou se lhe chegava pronto, pelo canal potente de sua intuição. Mas continuou olhando para Larissa e sorriu, ao pensar por fim: Não apresse o rio, dê tempo ao tempo, dona espanholita.

Celso, por sua vez, não deu a mínima importância, quando Paula foi lhe falar do que tinham as vendedoras convencionado fazer com as ‘desfrutáveis’ da Fofinha e lhe mostrou o sinal. Apenas caiu na gargalhada e sacudindo a cabeça para os lados disse:

– Ah, minhas filhas, isso é problema de vocês. Vocês é que têm que defender as comissões de vocês. Eu não quero nem saber, não estou nem aí. Mas não esquentem, é como lá na Academia, depois de um tempo as coisas se ajeitam. Elas acabam se convencendo que eu não estou a fim. Vai ver as de lá já estão até pensando que eu sou uma bichona enrustida, que não sai do armário.

Como poderia ele estar a fim de qualquer outra mulher, por mais linda que fosse, se estava completamente apaixonado, os quatro pneus arriados, como nunca estivera na vida!... Ah, aquelas pobres tolas, muitas delas até que pessoas muito legais, sem dúvida, muitas delas criaturas atraentes e até fascinantes, como seriam elas páreo para Larissa Silva? Como uma mulher comum, ou mesmo uma mulher fabulosa, pode ser páreo para um anjo? Impossível...  

Na paixão por esse anjo impossível, um anjo que gostava de um jumento – Espera aí, coitado do cara, eu não posso descontar a frustração em cima dele, ficar com raiva do sujeito, ele já estava lá antes, já era o dono do pedaço há muito tempo! – corrigiu-se na hora Celso Teles: na paixão por um anjo que gostava de um leão bonitinho, consumia-se Celso Teles noite e dia. Sofria e não sofria. Sofria pelo impossível, mas alegrava-se pelo convívio diário com a musa dos seus sonhos. E, reconhecia, não era só o deleite de poder contemplá-la inúmeras vezes por dia. Acontece que Larissa era uma pessoa extremamente agradável, uma presença que fazia bem, uma criatura que exsudava bondade e simplicidade. Como Gládis mesma dissera:

– É tão bom estar perto da Fofinha, jefe! Ela não só parece, ela é um anjo mesmo. Um anjo de bondade. Todas nós achamos isso. É só uma meninota grande, uma fofura mesmo, uma pessoa sem maldade como eu nunca vi. Mamita diz que, volta e meia, tem vontade de apertar a carinha dela com as duas mãos, com toda a força, e não largar. E você sabe que eu nunca me engano com as pessoas, não é, Celso?

– Com certeza, Gládis. Se você diz, então ela deve ser mesmo tudo isso...

Grande tonto! – pensou Gládis, sorridente – Deve ser... Como se ele também não achasse tudo isso e muito mais, muito tempo antes de a gente conhecer a criaturinha! Olha só a cara de apaixonado... Mas vai ter que sofrer bastante. Não se deve assustar uma gazela... 

CONTINUA