sábado, 13 de junho de 2020


ABANDONADO!
MILTON MACIEL

Não adianta!  Tarde demais...

   Tarde demais. O escaler era uma pequena sombra que as ondas mostravam e escondiam caprichosamente, delineada contra o halo de luz fantasmagórica da noite oceânica. Tarde demais.

   Estava irremediavelmente abandonado naquele lugar. Uma ilha deserta, confirmara-lhe um dos marinheiros na viagem de vinda, enquanto remavam e tentavam chegar com o escaler à praia. Ali instalariam dois sinalizadores, alimentados por energia solar. Seu trabalho seria justamente o de instalar as placas fotovoltaicas e os acumuladores. Depois, ao cair da noite, ligaria os transmissores e faria os contatos com o navio e com as sondas.

  Os homens passaram o dia fazendo escavações, erguendo os postes das torres, fixando os painéis solares e as caixarias de instrumentação. Os sinalizadores foram instalados a 500 metros um do outro. Ao final do dia, todo o trabalho estava concluído. Restava somente esperar a hora aprazada para começar os testes de contato. Vinte minutos antes ele havia feito os preparativos na primeira torre. Ligou todos os circuitos, fez as leituras de tensão e de forma de onda com os medidores portáteis. Tudo perfeito.

  Às 19 horas em ponto, como combinado, emitiu o primeiro sinal para o navio. A resposta veio imediata, com excelente qualidade de sinal. Pelo rádio portátil recebeu os cumprimentos do capitão. Agora era dirigir-se para a segunda torre, aquela que ficava numa pequena elevação já dentro da pequena capoeira de mata, afastada da praia. Dirigiu-se para lá sem problemas, a vegetação era rala e a lua complementava a luz de sua lanterna especial. Várias vezes percorrera a picada aberta pelos homens durante o dia, procurando memorizar cada detalhe do curto caminho de poucas centenas de metros entre as duas torres.

Os demais homens esperariam por ele na praia, para todos embarcarem nos escaleres e voltarem ao navio.

  O contato da segunda torre com o navio devia ser estabelecido às 20 horas. Por isso rumou calmamente para a torre dois, levando seu equipamento portátil e a grande lanterna. Bem antes das 20 horas já havia testado todos os circuitos e tudo funcionou a contento. Na hora exata, emitiu o sinal para o navio. De novo a resposta instantânea, o sinal límpido, a forma de onda perfeita. Ligou o rádio e se comunicou com o capitão. Enquanto aguardava, pareceu-lhe ouvir um estranho apito na praia. Logo ouviu o que lhe pareceu serem gritos excitadas dos marinheiros, mas tratou de se concentrar no que lhe dizia o capitão. E que parecia a coisa mais sem sentido do mundo.

   – Olhe, Melles, da minha parte é a garrafa de uísque. Tem água e comida para um bom tempo nas caixas que ficam, até você aprender a se virar sozinho. Mandei deixar todo o material das embalagens, vai ser útil, você vai ver. Você é um bom homem, Melles, acho uma sacanagem fazerem isso com você. Se eu pudesse, evitava. Mas... bom, então adeus. Boa sorte!

– Capitão! Capitão! Alô, alô, capitão! Alô! Capitão, que quer dizer essa coisa? Que negócio é esse de uísque, de embalagens? Que adeus, capitão?!

   Do outro lado nenhuma resposta. Mandou um sinal pela torre, aflito. Nenhuma resposta também. Então uma idéia passou-lhe rapidamente à consciência e ele deitou a correr em direção à praia, gritando para o pessoal que estaria à espera. Foi uma corrida terrível, errou o caminho na precipitação, perdeu-se da trilha, embrenhou-se em mato mais alto, caiu várias vezes no escuro, uma sensação de perigo e de pânico crescendo a cada metro, um suor frio a tomar conta do rosto e do corpo. Seria possível que...

  Sim, era possível sim! A horrível verdade surgiu ante seus olhos quando chegou a 50 metros da praia, desembocando da capoeira em um ponto já bem bem próximo da primeira torre. Não havia mais ninguém à sua espera e o escaler havia sumido. Com o coração aos pulos, Melles continuou correndo os últimos metros até tocar a água com os pés, enquanto firmava os olhos em direção ao mar. E aí lhe veio a confirmação monstruosa: oscilando a umas duas centenas de metros da orla, o escaler avançava firme na escuridão em direção ao navio. Abandonado!

– Não adianta! Tarde demais...

   Deixou-se cair ao chão. A água ia e vinha molhando-lhe corpo e roupas, a cabeça girava-lhe latejando numa dor insuportável. Abandonado... Mas... por quê?!

Correu para uma caixa, abriu-a, destampou a garrafa de uísque e bebeu no gargalo desesperadamente, até não aguentar mais. Em minutos começou a ver tudo girando e tombou pesadamente na areia.

Só acordou no outro dia à tarde, com uma ressaca terrível. E com fome, uma fome de cão. Lembrou-se, apesar da dor de cabeça persistente, que havia alimentos na grande caixa. Abriu um pacote de bolachas e, ao pegar e colocar na boca umas quatro delas ao mesmo tempo, viu um papel cair da embalagem. Era um bilhete, escrito a mão.

“Melles, a esta altura você já descobriu que te sacanearam, te deixaram na ilha pra morrer. Eu não pude fazer nada, os caras estão na minha cola, porque desconfiaram que eu tinha descoberto a trama e ia contar pra você. Eu estava encarregado de montar a caixa com as coisas que iam deixar para você – me disseram que era pra equipe toda da instalação, que tinha que ficar em terra por quatro dias, só que vão voltar no fim do dia e deixar você abandonado aí.  

Descobri que eles vinham pra me pegar e me escondi na despensa. Enquanto os caras me procuram em outras partes do navio, dá pra escrever este bilhete; vou botar num pacote de biscoitos.

Se você está lendo isto agora, então quer dizer que nós dois estamos ferrados. Provavelmente os caras já terão me executado, eu sei demais. E você estará sabendo que tem que racionar esta dose de comida e procurar alimento na ilha, por conta própria. Mas eu acho que vai ser difícil. Essa é uma ilhota quase sem vegetação e com muito pouca vida. Procurei por ela com as coordenadas, na hora em que desconfiei, e ela não consta nos mapas. Por isso é que foi escolhida. Está longe de qualquer rota de navegação.

Essa montagem de postes de sinalizadores para navegação é só despiste. Pra você; e pra a tripulação não desconfiar de nada.

Bem, Melles, agora vem a parte pior. Sabe o Ulrich, o dono do navio? Pois eu consegui pegar uma mensagem dele pro capitão, pelo satélite. E imprimi. Eu sou bom nisso, você sabe. Foi aí que eu fiquei com a pulga atrás da orelha. Eu tenho a mensagem aqui no bolso, olha só o que diz:

“Puggina, seu futuro, sua vida até, estão em suas mãos. Ou faz o que combinamos, ou dança. Você tem as coordenadas da ilhota, é só deixar o cara lá. A Amanda não quer ficar com a morte violenta do sujeito nas costas, me exigiu que deixem ele com vida na ilha, esse negócio todo foi ideia dela. Que ele morra de morte “natural” é a exigência dela. Assim diz que não fica com peso na consciência. Mulher é tudo igual, mesmo na hora de apagar um sujeito fica com essas frescuras. Por mim eu tinha passado fogo no idiota aqui mesmo na cidade, há muito tempo. Mas você sabe como eu gosto dessa gata, a gente está enrolado faz mais de dois anos e o corno nunca percebeu. Só você está sabendo de tudo. E responde, você sabe, com sua vida por qualquer indiscrição. Pois agora chegou a hora. Faça o que tem que fazer e me comprove, aí o depósito do saldo entra na sua conta no mesmo dia. Seja macho!”

Pois é, Melles, eu fiquei sabendo que eles pretendiam deixar um cara na ilhota pra... morrer. Só não sabia quem, vão sair doze caras do navio nos escaleres com os postes e materiais. Nunca me passou pela cabeça que pudesse ser você. Era um cara que tinha uma mulher de nome Amanda; e essa vagabunda era amante do Ulrich e tinha tido essa ideia satânica pra liquidar o marido. Como é que eu ia descobrir qual dos doze desembarcados na ilha tinha essa filha da puta como esposa? Fiquei num desespero total: eu sabia que um dos doze não ia voltar e não podia fazer nada, porque os bandidos do Capitão Puggina iam me apagar na certa. Não podia avisar o cara, não só pelo risco à minha vida, mas porque não sabia quem ele era.

Foi quando lembrei de xeretar os registros de embarcados e marinheiros. Tive que hackear isso da sala de comunicação, levou um tempo enorme até conseguir com o meu notebook. Quando cheguei na sua ficha, estava lá o nome da sua mulher. Era a única Amanda nas fichas dos doze que iam ser desembarcados na ilha naquele dia. Aí eu soube que era você, Melles. Tentei bolar um jeito de te avisar, mas interceptei outra ligação para o Puggina, essa interna, o cara da comunicação dizendo que tinha descoberto que eu havia entrado na conta dele e hackeado alguma coisa. E ouvi o Puggina mandando os caras me caçarem.

Então vim me esconder aqui na despensa, onde escrevo este bilhete, que vou botar dentro da caixa que sei agora que vai para você, ordens do Puggina. Vou me mandar daqui em seguida, porque, se os caras me pegarem aqui, podem suspeitar que eu possa ter feito algo com a caixa de mantimentos.

Mas os caras vão me pegar, é certo. E aí, quando você ler esta mensagem, é bem possível que eu já tenha virado comida pra peixe.

Agora a última novidade pra você Melles. Vá abrindo todas as embalagens de comida. Numa delas você vai encontrar uma bateria extra pra celular, bem carregada. Numa outra, você vai achar O MEU CELULAR via satélite. Como ele pegava bem aqui no navio, na certa vai pegar aí na ilha. E você ainda tem a reserva dos sistemas de baterias dos postes fotovoltaicos dos  sinalizadores, pode recarregar as baterias de celular muitas vezes. Você pode ter pouca comida, mas vai estar conectado, pode pedir socorro. E eu tenho certeza que você vai conseguir sair dessa.

Gostaria de ter tido tempo para virar seu amigo. Não deu, paciência. Mas desejo que você tenha melhor sorte do que eu.
Amadeo

Melles sentou na areia e chorou pela primeira vez. Amanda!

Amanda, a mulher da sua vida, sua paixão desde a faculdade, a mais linda de todas, a mais sensual também, um fogaréu na cama, juras e mais juras de amor eterno. Casamento, dois anos em Oxford, projetos de construção de casa, viagem pelo Mediterrâneo no navio de... Ulrich! Então a cosia vinha desde ali! Ou antes. Dois anos, dizia o bilhete. Dois anos de cornos reluzentes, os dois debochando dele e se espojando na cama infinitas vezes.

E agora isso, a coisa mais cruel; aquela degenerada havia planejado a morte dele. Sim, ela mandara matá-lo, pura e simplesmente. E com requintes estranhos, deixá-lo naquela ilha sem recursos, para que ele morresse “de morte natural” em poucos dias. Cadela!

Pois ela estava enganada. Todos os bandidos, ela, o amante, o capitão do navio, estavam enganados. Ele não haveria de morrer naquela ilha. Ia economizar ao máximo os mantimentos, comer o mínimo possível por dia para não sofrer inanição, água não lhe faltaria, tinha vadeado córregos para instalar os postes sinalizadores. Tinha energia elétrica à vontade, os panacas tinham-no municiado com painéis fotovoltaicos e baterias. Tinha as luzes dos sinalizadores, os sinais de rádio, os circuitos que podia alterar. Tinha também todas as suas ferramentas e medidores. E, o mais importante de tudo, tinha o celular por satélite e bateria suplementar, sabia muito bem como recarregá-las a partir do sistema fotovoltaico. Não, de maneira alguma ele estava isolado do resto mundo ali. Amadeo, talvez às custas de sua própria vida, tinha lhe dado uma chance de se salvar. Saberia aproveitá-la.

Sim, bastava não morrer de fome e podia ter tempo, tempo, muito tempo de vida, tempo para procurar entrar em comunicação com quem pudesse retirá-lo daquela armadilha. Teria que aprender a se alimentar de produtos da ilha e, pela lógica, peixes e moluscos deviam ser a opção natural. Vegetação havia suficiente para lhe proporcionar material para fazer um abrigo e para ter lenha para queimar e se aquecer. Para fazer armadilhas para peixes e animais pequenos. Viu aves voando em quantidade razoável, tentaria descobrir como capturar algumas, recolher ovos.

Mas o celular não teve contato possível, foi sua primeira grande decepção. O sinal era fraco demais. Lembrou, contudo, que o equipamento de radiotransmissão dos sinalizadores poderia ser alterado e suas pequenas antenas poderiam servir para reforço do sinal de satélite para o celular.

Trabalhou vários dias tentando diferentes alterações de circuitos num dos sinalizadores. No outro desmontou e remontou as lâmpadas sinalizadoras, voltando-as para o alto. Se algum avião passasse por lá alguma vez, acionaria as luzes piscantes de três cores.

Ao todo ficou dezesseis dias na ilha. No décimo-quinto conseguiu viabilizar a comunicação por celular, enfim. Conversou com seu irmão tenente da aeronáutica, única pessoa em quem poderia confiar agora. Este soubera dias antes, por ligação de uma chorosa e transtornada Amanda, sua cunhada, que ele, Melles, fora dado como desaparecido pelo comandante do navio; o testemunho de dois marinheiros confirmando que morrera na ilha, vítima de queda num lugar de acesso e resgate impossível. O mau tempo reinante obrigara o comandante Puggina a fazer a dolorosa opção de abandonar o corpo do engenheiro eletrônico na ilha ou colocar em risco toda a tripulação dos escaleres e até do navio. O irmão exultou:

– Cara, que maravilha! Você não morreu! Está mais vivo do que eu. Vou ligar em seguida pra Amanda e dar a boa notícia.

– Não! Não faça isso! Essa filha da puta mandou me matar, ela e o amante dela, o alemão Ulrich, você conhece, pagaram pro Capitão Puggina me abandonar na ilha pra morrer. Foi um cara da comunicação que descobriu e colocou este celular escondido nas minhas coisas, me contou tudo num bilhete. E, pelo que ele escreveu, é bem provável que os bandidos já tenham matado o coitado. Se esses desgraçados descobrem que eu ainda estou vivo, vão se mandar pra cá de qualquer jeito pra me apagar de vez.

Então relatou minuciosamente para o irmão tudo o que havia acontecido.

No dia seguinte chegou o resgate aéreo, via helicóptero.

Já em sua ciidade, da casa do irmão, Melles começou a acionar seu plano de vingança. Investigando, soube que o navio de Ulrich, comandado por Puggina, entraria no porto no dia seguinte, terça-feira, no fim da tarde.

Então os irmãos acionaram Mueller, o maior hacker do Estado e formaram uma parceria com ele. O hacker entrou com facilidade nas contas de Ulrich, Puggina e Amanda – e-mails, redes sociais e contas bancárias. Mueller triangulou com uma conta nas Ilhas Virgens e exatamente às 5 da tarde da terça, zerou as contas bancárias de todos eles. O alemão Ulrich tinha uma verdadeira fortuna em dólares em outro paraíso fiscal. Puggina e Amanda também tinham, porém com valores muito mais baixos. Todos foram drenados instantaneamente. Daí o dinheiro circulou por mais quatro contas internacionais até tornar-se disponível para o trio de novos sócios: Melles, seu irmão e o hacker dividiram o butim em três partes iguais e em questão de minutos viraram novos ricos.

Faltava o mais importante para Melles agora. E isso precisava de gente muito mais pesada no jogo. Mas o que um monte de dinheiro não consegue? Ulrich, sem querer, pagou pelos homens e o armamento pesado que foram recepcionar Puggina na entrada do porto. E, naturalmente, pelo helicóptero que transportou todos eles, mais Melles, para a missão punitiva.

Sabiam, pela troca de e-mails e telefonemas hackeados, que Amanda e Ulrich iriam na lancha deste ao encontro do navio; certamente iam fazer uma comemoração a bordo da luxuosa lancha, quase um iate, os três patifes.

Eram exatamente 17:33 h quando a grande lancha encostou no navio e Puggina desceu, embarcando nela, sendo recebido com um grande abraço por Ulrich.  Mas antes que qualquer comemoração acontecesse, aquele estranho helicóptero preto desceu rapidamente sobre as embarcações. Três artilheiros apontaram, Melles gritou fogo e três mísseis de curto alcance partiram ao mesmo tempo em direção à lancha. O helicóptero, então, afastou-se a grande velocidade, subindo e desaparecendo atrás das montanhas da costa.

Lá embaixo, de dentro da fumaça preta que subia como nuvem, destroços de uma lancha totalmente destruída afundavam rapidamente. No navio, atingido apenas pela onda de choque, uma tripulação aturdida tentava entender o que tinha acontecido, por que razão a lancha do patrão tinha explodido daquele jeito absurdo. Na cela ainda, um faminto Amadeo esperava para saber o que Ulrich ia decidir sobre o seu destino.

Quando os relatos, pela tripulação, da existência de um misterioso helicóptero surgido momentos antes da explosão chegaram à terra, já a aeronave há muito voava tranquila para a fronteira. Acionada a aeronáutica, um estranho desencontro de ordens, jamais explicado, impediu a autorização de qualquer busca naquele dia. No outro, certamente, foi tarde demais.











                                                                                                                     

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