NEGRA LEOCÁDIA
MILTON MACIEL
Sim, mas como aguentar a fome sem a bebida? Essa era de
graça. Comida, tinha que pagar. Com o quê? Há dois dias não conseguia nenhuma
tarefa, nenhuma carga no caís, os escravos carregavam e descarregavam tudo. Ser
preto forro podia ser pior, muitas vezes, do que ser um dos escravos. Estes
pelo menos comiam todos os dias. E tinham um teto sobre a cabeça, ainda que
fosse uma senzala.
E Leocádia, então? Não era liberta, era escrava, mas era comissionada. Sua senhora lhe deixava ganhar
dez por cento de tudo o que conseguia vender durante o dia. Sestrosa, bonita,
robusta, a preta descia a ladeira remexendo os quadris, a bunda apetitosa
repontando por debaixo do algodão branco, a cintura fina ainda mais apertada
pelas faixas das quais pendiam os dois balaios carregados, um de cada lado. Sobre
a cabeça, sempre erguida e altaneira, equilibrava o amplo tabuleiro.
Dos beiços entreabertos saia a voz de feitiço, apregoando o
fubá, a canjica, o curau, os doces, o pão-de-açúcar, a farinha puba, os poucos
cortes de tecido. Sua Sinhá era mulher esperta, comerciante forte, viúva
ladina, que aprendera a comerciar com o falecido, um cristão-novo prestamista,
que lhe deixara loja de porta aberta na Rua do Comércio e engenho de açúcar lá
na Várzea de Cima. Pequeno, mas lucrativo. E pra lá de 40 escravos.
Dona Ana Mendonça, A
Sinhá Ana. Ou Sinhana
Sinhana era danada. Mulherzinha de cabelo nas ventas, sabia
enfrentar uma briga com concorrentes ou com a negrada. E não corria de desafio,
nem levava desaforo pra casa. Mas era ladina demais, ninguém podia com ela. Tinha
umas ideias esquisitas, coisas que mal cabiam na cabeça de um homem. Começa
que, nem bem enterrou Samuel, fechou a loja de rua, que era o xodó do falecido.
– Eu não! – dizia e repetia – Eu que não fico de barriga
espremida contra balcão o dia todo, as pernas enchendo de varizes, em pé como uma
negra de engenho. Deus que me livre!
E aí veio com aquela de mandar a suas negras vender as
traquitanas todas na rua, de casa em casa. E nos pontos de maior movimento de
povo, como na Travessa do Ouvidor e na beira do cais.
Os homens arengavam contra ela, enfurecidos:
– Hom’essa, onde já
se viu tamanho disparate! Pois a gaja herda porta aberta na melhor rua de
comercio e fecha a loja. E bota as crioulas a negociar por ela nas ruas, arrematada
loucura!
– E isso não é tudo, a destrambelhada não inventa de fazer uma
coisa ainda pior: pois dizem que paga – paga, veja bem! – a suas escravas. Paga
comissão, como se fossem pretas forras. Um absurdo.
– Um terrível exemplo. Já pensou se a moda pega? Como
ficamos nós, se temos que dar dinheiro a essa negralhada toda? Já não chega
tudo o que se gasta em comida com esses mortos de fome?
– Mas também não há porque apoquentar-se, ó homem. Deixa
estar que em dois tempos essa maluquice fracassa – como só pode fracassar! – e essa
aluada Sinhana dá com os burros n’água. Vai é só perder capital, botar fora as mercadorias,
ser roubada por essa negras preguiçosas, que sonegar-lhe-ão o dinheiro das
vendas, sumirão com peças de vestuário, comerão dos quitutes escondidas.
– Mas é pra já que as negras engordam como porcas e as patacas
somem das mãos dessa viúva retardada. Aliás, foi isso que o compadre Tomé foi
dizer-lhe à sua casa, direto nas fuças dela, para exigir-lhe que parasse de dar
mau exemplo, parasse com essas práticas desajuizadas. E sabe o que aconteceu?
– Ela escutou a voz da razão?
– Escutou. E, a seguir, correu meu compadre Tomé da casa
dela a vassouradas. A vassouradas, imagine só! Quando o compadre resolveu
reagir, já na rua, e tomar a vassoura dela, surgiram do nada uns dez negros fortes
e avançaram em direção a Tomé, que tocou sebo nas canelas, criou asas nos pés e
escafedeu-se dali na corrida. Eram os escravos machos da viúva.
– É uma maluca!
– Sim, uma louca. E como tal vai logo esbagaçar-se toda. Mulher
não é feita para negócios de homem. O falecido era um negociante de juízo, de
boas regras, embora fosse um desonesto de marca maior, assim foi que enriqueceu.
Mas essa doidivanas logo põe ao pau todo o patrimônio. Não vamos ter que
esperar muito tempo.
Já Leocádia só louvava sua senhora. Era Sinhana pra cá, Sinhana
pra lá, Deus no céu e Sinhana na terra.
Nesse fim de tarde, quando negro Domingos conseguiu enfim chegar
na Travessa trocando as pernas, ainda conseguiu ouvi-la falando para um
freguês:
– Mulher boa tá ali, meu branco. Depois que Sinhô Samuel
bateu a caçoleta e foi pra terra dos pés-juntos, nossa vida virou da água pro
vinho. Agora não tem mais fome, a senzala reformada é limpa que dá gosto e o
nosso trabalho na cidade é muito diferente. Eu, por exemplo, agora sou vendedora,
não fico mais acabada de cansaço no fim do dia. E estou ganhando meu
dinheirinho.
Domingos meteu-se na conversa:
– Pois se ela é tão boa como vosmicê diz, por que não dá
alforria pra vosmicê e pros outros?
– Ué, pra gente não ficar que nem vosmicê.
O branco, empregado da farmácia do italiano Ottoni,
estranhou:
– Não ficar que nem ele, como?
Leocádia viu a expressão de êxtase de Domingos olhando seu
tabuleiro. Pegou uma cuia, abaixou-se, destampou o panelão e serviu-lhe uma
concha bem cheia de canjica de milho. Só aí respondeu;
– Não ficar como ele, que tem a liberdade agora, mas tem a
fome pior do que antes. Tem que pagar pela comida, pelo cortiço onde se acoita
e não tem como ganhar o sustento. Minha Sinhá me explicou que é por isso que
ela não nos dá alforria. Pra gente não ir-se embora e passar necessidade por
aí. Mas ela disse que nos paga que é pra gente, se tiver juízo, juntar dinheiro
e comprar nossa alforria dela, se um dia a gente quiser e tiver ganha-pão pra
se manter por conta própria.
Domingos sentiu os olhos encherem-se de lágrimas; virou-se
de costas, porque algumas caíam silenciosas na cuia de canjica. Leocádia tinha
razão. Ele estava pior agora que era forro. Ela era generosa, matava-lhe a fome
sempre que ele se achegava faminto. Ele evitava vir com frequência, porque sabia
que a negra era honesta demais e agradecida demais a sua Sinhá, pagava da sua
comissão a comida que dava a ele.
Evitava vir também porque seu coração batia descompassado à
vista de Leocádia. Para amá-la já bastava toda aquela juventude e formosura. Mas
é que o diabo da negra era muito mais do que apenas bonita. Era aquela bondade
toda de coração, aquela retidão de caráter, aquela alegria constante que
animava qualquer um.
Os fregueses que o dissessem! Nenhuma negra vendedora tinha
tantos clientes como ela. Muitos homens vinham só para vê-la e tentar levar a
belezura para a cama. Mas sabiam que tinham que comprar alguma coisa. Aí se
insinuavam, faziam propostas, botavam preço, concorriam pesado entre si, enfrentavam-se,
mais de uma vez partiram para o desforço físico. Leocádia, do alto de sua estampa
sedutora, flertava com todos, mas não dava trela para nenhum. Eram negros
forros como Domingos, mulatos, brancos brasileiros, portugueses, estrangeiros.
E marinheiros de pele desbotada como papel e cabelo amarelo como milho.
Que chance Domingos teria ante aquela leva diária de
competidores muito mais interessantes do que ele? Um português mais velho, que
tinha estalagem ali perto e era casado, até propusera comprar a liberdade de Leocádia
e botar casa para ela, de escritura passada e tudo. A negra ria, dava corda em
Seu Joaquim, prometia que ia pensar, falar com sua dona. Aí vinha com uma
conversa que Sinhana não queira vender e levava o portuga no bico. Enquanto
isso, ele ia comprando doces e mais doces e aumentado mais e mais a circunferência
da cintura.
CONTINUA AMANHÃ
Quero ler o restante! ❤️
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