sábado, 13 de outubro de 2018


NEGRA LEOCÁDIA
MILTON MACIEL

Setembro de 1788, a tarde era morna. Negro Domingos oscilou para o lado. Firmou-se na parede e respirou. Cachaça ruim aquela! Não tinha bebido tanto assim. Firmou-se na parede, mas aí foi a parede que resolveu oscilar de um lado para o outro. Aliás, a rua inteira também. Diacho! Como ia conseguir chegar na Travessa do Ouvidor a tempo de encontrar Leocádia? Não devia ter bebido!

Sim, mas como aguentar a fome sem a bebida? Essa era de graça. Comida, tinha que pagar. Com o quê? Há dois dias não conseguia nenhuma tarefa, nenhuma carga no caís, os escravos carregavam e descarregavam tudo. Ser preto forro podia ser pior, muitas vezes, do que ser um dos escravos. Estes pelo menos comiam todos os dias. E tinham um teto sobre a cabeça, ainda que fosse uma senzala.

E Leocádia, então? Não era liberta, era escrava, mas era comissionada. Sua senhora lhe deixava ganhar dez por cento de tudo o que conseguia vender durante o dia. Sestrosa, bonita, robusta, a preta descia a ladeira remexendo os quadris, a bunda apetitosa repontando por debaixo do algodão branco, a cintura fina ainda mais apertada pelas faixas das quais pendiam os dois balaios carregados, um de cada lado. Sobre a cabeça, sempre erguida e altaneira, equilibrava o amplo tabuleiro.

Dos beiços entreabertos saia a voz de feitiço, apregoando o fubá, a canjica, o curau, os doces, o pão-de-açúcar, a farinha puba, os poucos cortes de tecido. Sua Sinhá era mulher esperta, comerciante forte, viúva ladina, que aprendera a comerciar com o falecido, um cristão-novo prestamista, que lhe deixara loja de porta aberta na Rua do Comércio e engenho de açúcar lá na Várzea de Cima. Pequeno, mas lucrativo. E pra lá de 40 escravos.

Dona Ana Mendonça, A Sinhá Ana. Ou Sinhana

Sinhana era danada. Mulherzinha de cabelo nas ventas, sabia enfrentar uma briga com concorrentes ou com a negrada. E não corria de desafio, nem levava desaforo pra casa. Mas era ladina demais, ninguém podia com ela. Tinha umas ideias esquisitas, coisas que mal cabiam na cabeça de um homem. Começa que, nem bem enterrou Samuel, fechou a loja de rua, que era o xodó do falecido.

– Eu não! – dizia e repetia – Eu que não fico de barriga espremida contra balcão o dia todo, as pernas enchendo de varizes, em pé como uma negra de engenho. Deus que me livre!

E aí veio com aquela de mandar a suas negras vender as traquitanas todas na rua, de casa em casa. E nos pontos de maior movimento de povo, como na Travessa do Ouvidor e na beira do cais.

Os homens arengavam contra ela, enfurecidos:

 – Hom’essa, onde já se viu tamanho disparate! Pois a gaja herda porta aberta na melhor rua de comercio e fecha a loja. E bota as crioulas a negociar por ela nas ruas, arrematada loucura!

– E isso não é tudo, a destrambelhada não inventa de fazer uma coisa ainda pior: pois dizem que paga – paga, veja bem! – a suas escravas. Paga comissão, como se fossem pretas forras. Um absurdo.

– Um terrível exemplo. Já pensou se a moda pega? Como ficamos nós, se temos que dar dinheiro a essa negralhada toda? Já não chega tudo o que se gasta em comida com esses mortos de fome?

– Mas também não há porque apoquentar-se, ó homem. Deixa estar que em dois tempos essa maluquice fracassa – como só pode fracassar! – e essa aluada Sinhana dá com os burros n’água. Vai é só perder capital, botar fora as mercadorias, ser roubada por essa negras preguiçosas, que sonegar-lhe-ão o dinheiro das vendas, sumirão com peças de vestuário, comerão dos quitutes escondidas.

– Mas é pra já que as negras engordam como porcas e as patacas somem das mãos dessa viúva retardada. Aliás, foi isso que o compadre Tomé foi dizer-lhe à sua casa, direto nas fuças dela, para exigir-lhe que parasse de dar mau exemplo, parasse com essas práticas desajuizadas. E sabe o que aconteceu?

– Ela escutou a voz da razão?

– Escutou. E, a seguir, correu meu compadre Tomé da casa dela a vassouradas. A vassouradas, imagine só! Quando o compadre resolveu reagir, já na rua, e tomar a vassoura dela, surgiram do nada uns dez negros fortes e avançaram em direção a Tomé, que tocou sebo nas canelas, criou asas nos pés e escafedeu-se dali na corrida. Eram os escravos machos da viúva.

– É uma maluca!  

– Sim, uma louca. E como tal vai logo esbagaçar-se toda. Mulher não é feita para negócios de homem. O falecido era um negociante de juízo, de boas regras, embora fosse um desonesto de marca maior, assim foi que enriqueceu. Mas essa doidivanas logo põe ao pau todo o patrimônio. Não vamos ter que esperar muito tempo.

Já Leocádia só louvava sua senhora. Era Sinhana pra cá, Sinhana pra lá, Deus no céu e Sinhana na terra.

Nesse fim de tarde, quando negro Domingos conseguiu enfim chegar na Travessa trocando as pernas, ainda conseguiu ouvi-la falando para um freguês:

– Mulher boa tá ali, meu branco. Depois que Sinhô Samuel bateu a caçoleta e foi pra terra dos pés-juntos, nossa vida virou da água pro vinho. Agora não tem mais fome, a senzala reformada é limpa que dá gosto e o nosso trabalho na cidade é muito diferente. Eu, por exemplo, agora sou vendedora, não fico mais acabada de cansaço no fim do dia. E estou ganhando meu dinheirinho.

Domingos meteu-se na conversa:

– Pois se ela é tão boa como vosmicê diz, por que não dá alforria pra vosmicê e pros outros?

– Ué, pra gente não ficar que nem vosmicê.

O branco, empregado da farmácia do italiano Ottoni, estranhou:

– Não ficar que nem ele, como?

Leocádia viu a expressão de êxtase de Domingos olhando seu tabuleiro. Pegou uma cuia, abaixou-se, destampou o panelão e serviu-lhe uma concha bem cheia de canjica de milho. Só aí respondeu;

– Não ficar como ele, que tem a liberdade agora, mas tem a fome pior do que antes. Tem que pagar pela comida, pelo cortiço onde se acoita e não tem como ganhar o sustento. Minha Sinhá me explicou que é por isso que ela não nos dá alforria. Pra gente não ir-se embora e passar necessidade por aí. Mas ela disse que nos paga que é pra gente, se tiver juízo, juntar dinheiro e comprar nossa alforria dela, se um dia a gente quiser e tiver ganha-pão pra se manter por conta própria.

Domingos sentiu os olhos encherem-se de lágrimas; virou-se de costas, porque algumas caíam silenciosas na cuia de canjica. Leocádia tinha razão. Ele estava pior agora que era forro. Ela era generosa, matava-lhe a fome sempre que ele se achegava faminto. Ele evitava vir com frequência, porque sabia que a negra era honesta demais e agradecida demais a sua Sinhá, pagava da sua comissão a comida que dava a ele.

Evitava vir também porque seu coração batia descompassado à vista de Leocádia. Para amá-la já bastava toda aquela juventude e formosura. Mas é que o diabo da negra era muito mais do que apenas bonita. Era aquela bondade toda de coração, aquela retidão de caráter, aquela alegria constante que animava qualquer um.

Os fregueses que o dissessem! Nenhuma negra vendedora tinha tantos clientes como ela. Muitos homens vinham só para vê-la e tentar levar a belezura para a cama. Mas sabiam que tinham que comprar alguma coisa. Aí se insinuavam, faziam propostas, botavam preço, concorriam pesado entre si, enfrentavam-se, mais de uma vez partiram para o desforço físico. Leocádia, do alto de sua estampa sedutora, flertava com todos, mas não dava trela para nenhum. Eram negros forros como Domingos, mulatos, brancos brasileiros, portugueses, estrangeiros. E marinheiros de pele desbotada como papel e cabelo amarelo como milho.

Que chance Domingos teria ante aquela leva diária de competidores muito mais interessantes do que ele? Um português mais velho, que tinha estalagem ali perto e era casado, até propusera comprar a liberdade de Leocádia e botar casa para ela, de escritura passada e tudo. A negra ria, dava corda em Seu Joaquim, prometia que ia pensar, falar com sua dona. Aí vinha com uma conversa que Sinhana não queira vender e levava o portuga no bico. Enquanto isso, ele ia comprando doces e mais doces e aumentado mais e mais a circunferência da cintura.

CONTINUA AMANHÃ

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