MILTON MACIEL
Último parágrafo da primeira parte:
Continuação:
Por essas e por outras, o negro Domingos não ousava
expressar o seu amor por ela. Seria inútil, ele o sabia, de sobra o sabia. Ela certamente percebia a adoração nos seus olhos, mas isso não queria dizer
nada para quem percebia olhares como os dele às dezenas. Ele era só mais um com
olhos súplices, no meio de tantos com olhos cúpidos, quando não totalmente
desrespeitosos e devoradores. Mas ele a amava certamente muito mais do que os
outros, que só viam nela o objeto aparentemente fácil de seu desejo e
lubricidade. Amava-a porque a via muito mais do que uma fêmea desejável e
excitante.
Essa fêmea existia para ele daquele mesmo modo que existia
para todos os outros. Também nele Leocádia inflamava fantasias eróticas – e
povoava sua imaginação nas práticas solitárias dessa eroticidade. Quantos, como
ele, não gemeriam por ela na solidão de seus quartos ou banheiros? Mas isso era
o máximo que ele poderia permitir-se. Sonhar com algo mais que o sonho ousado
era-lhe obviamente impossível. Domingos procurava ser pragmático e pensar que
se aproximava de Leocádia mais como uma pária faminto do que como um homem
apaixonado, vinha em busca da mão generosa que alimenta, não em busca da mão
amante que acaricia. Mortificava-se...
– Quer mais, meu nego? – falou Leocádia, com aquela
voz macia e tranquila que o fazia estremecer. Domingos saiu do seu devaneio, o
efeito da cachaça estava sumindo rápido, agora que havia comido alguma coisa.
– Mais um bocadinho? Uma canjiquinha?
– Não, não obrigado, estou satisfeito – mentiu o
negro. Sobrava buraco no estômago, mas faltava coragem para aceitar mais.
Sobrava vergonha de Leocádia, mais vergonha ainda do branco da farmácia.
Faltava-lhe tostão para pagar pela canjica e o homem sabia disso. Os outros
homens que se aproximavam também deviam saber, melhor sumir dali o mais rápido
que desse. Passou a cuia vazia a Leocádia, o fundo rebrilhava, raspara-o com o
dedo para não perder nada. Não sabia quando voltaria a comer. Mas sabia que não
voltaria ali, não retornaria a Leocádia tão cedo, por mais que a fome o
afligisse.
– Bobinho –
disse ela num sussurro, abrindo os grossos lábios num sorriso, expondo o nácar
dos dentes mais brancos e mais perfeitos que uma boca de mulher podia ostentar.
Domingos estremeceu, agiu sem pensar, num impulso
tomou parte da cuia vazia em sua mão, fazendo a mão de Leocádia girar para
cima. Então curvou-se e roçou levemente essa mão com os lábios, enquanto dizia:
– Deus lhe pague, sinhá!
Era certo que mentia, não era isso o que queria
dizer. Mas humilhava-se como convinha, curvava-se ante aquela que era sua benfeitora,
deixava patente para ela e para os outros que agora a cercavam que ele era só
um negro agradecido, beijando a mão da sinhá que o alimentara. Deu uma dúzia de
passos apressados, cabeça baixa, olhos no chão, enfiou-se na viela lateral e sumiu.
– Mas tem jeito! Eu, sinhá!... Justo eu que sou
escrava! E ele é liberto, é preto forro. Eu uma sinhá! Tem graça. Negro mais doido!... Como se eu fosse negra forra e endinheirada.
– Não és só porque não o queres, minha cachopinha,
tu o sabes muito bem – era seu Joaquim da estalagem que tinha chegado –
Rejeitas o pedaço de céu que te ofereço para seguires no muquifo de uma
senzala. Benza Deus, quem pode compreender-te, ó rapariga de cabeça dura.
– Seu Joaquim! O senhor agora deu de dizer essas coisas
assim de público? Não tem medo que sua senhora fique sabendo, não?
O português reagiu com irritação:
– Ora, menina, bem se vê que não me conheces
direito. Como vou ter eu medo àquela lá? Que ela saiba, pouco se me dá. Em
minha casa mando eu e todos obedecem. Afinal o homem sou eu! E eu sei muito bem
onde pisam os meus tamancos, ora pois!
Todos os homens ao redor concordaram – com a cabeça
e a fala. Leocádia, sempre sorrindo, entregou ao lusitano o pacote com a
encomenda de doces de batata-doce e de leite. Pegou as moedas, contou-as e só
então respondeu:
– Pois olhe, seu Joaquim, que assim o senhor me
ajuda a decidir mais fácil. Eu é que não quero saber de tamancos pisando em mim
todo dia – e deu uma rabanada, requebrando as cadeiras de modo mais provocante
ainda. Então abriu um enorme sorriso e gritou:
– Dona Violante! Bem na horinha. Olhe só o corte de
tecido que minha Sinhá lhe mandou, aquele francês que a senhora estava
esperando há tanto tempo. Chegou no navio de ontem e Dona Sinhana me disse: Corra, menina, corte e passe muito bem essa
preciosidade, que isso é só Dona Violante que vai ter nesta cidade. Ninguém
mais, Ninguém mesmo, entendeu? Guarde o resto da peça, que enquanto Dona
Violante não aparecer com o vestido novo dela, eu não vendo um corte para mais
ninguém, pode ser uma baronesa da Corte.
– Ah, mas sua senhora é um amor! Diga a ela que eu
agradeço demais a sua consideração. Ai, mas que coisa mais linda, minha filha! –
Dona Violante, envaidecida com a notícia da exclusiva primeira mão, tinha
mordido a isca da esperta Sinhana, estava pronta para pagar o preço, qualquer
preço, que Leocádia lhe impusesse.
A senhora do Dr. Seabra envolveu o largo peito e a
grossa cintura com o maravilhoso tecido francês e teve que se conter, a vontade
era de bailar a valsa ali mesmo na frente daquele magote de homens safados, que
estavam todos ali como lobos famintos, só de olho na negra de Sinhana. Ah, mas
essa era uma negra direita, com ela esses patifes nunca tiraram farinha,
sabia-o de fonte segura. Ela usava toda aquela formosura para tirar o dinheiro
deles, sem precisar se deitar com ninguém.
Negra bonita aquela. Esperta, inteligente. E também
corajosa, muito corajosa. De longe parecia uma ovelhinha no meio dos lobos. Uma
ovelha negra, pois sim: Ela é que tosquiava os lobos; arrancava-lhes a lã na
forma de tostões, vinténs, patacas, réis – contos de réis, se dependesse
daquele português desavergonhado.
Quando soube do preço a pagar pelo corte, não se
incomodou. Só ela ia ter aquele tecido no corpo, nenhuma outra mulher.
Morressem de inveja: Violante Mursa Seabra, primeira e única! Abriu a bolsa,
passou o dinheiro que tinha às mãos de Leocádia, explicando:
– Olhe, minha filha, leve pra Sinhana, não tenho
tudo aqui comigo, não estava prevenida. Também a culpa é toda minha, não
lembrei que era um tecido francês, tinha que ser uma coisa de muito mais
valor. Diga que ainda hoje passo na casa dela e pago a diferença.
Leocádia imediatamente colocou todo o dinheiro que
tinha nas mãos de volta na bolsa de Dona Violante:
– Não, senhora, não precisa mandar esse dinheiro,
não. Passe lá em casa quando quiser, quando tiver um tempinho. Agora, se quiser
mesmo ir hoje... Bom, eu já estou de saída,.. Chego em casa logo e preparo
aqueles bolinhos de chuva que a senhora adorou quando esteve lá da última vez,
lembra?
Mais uma vez a negra, tão ladina como sua dona,
levou Madame Seabra no bico. Lisonjeada com a prova de confiança da moça, a boca
salivando de lembrança dos bolinhos de chuva de Leocádia, madame aceitou o
convite na mesma hora:
– Pois olhe que vou mesmo, sua danada. Tinha me
esquecido que você é uma quituteira de mão cheia. Vou para casa em dois tempos
e encomendo um coche para me levar a casa de Sinhana. Vou e levo o dinheiro do
tecido. Assim já agradeço pessoalmente a sua senhora a grande gentileza que me
fez hoje.
Leocádia despachou os últimos fregueses, as vendas
tinham sido boas como sempre, mas a venda para Dona Violante era maior que a
soma de todas as outras. Eita patroa esperta essa sua! Arrumou os balaios, agora
praticamente vazios, prendeu-os à cintura de vespa, suspendeu o tabuleiro sem peso nenhum na cabeça, pegou o cavalete do tabuleiro na mão e saiu rebolando,
sentindo-se seguida e desejada por mais de uma dezena de pares de olhos
masculinos.
Pois que ficassem na vontade, amanhã estaria de volta, olhar não
tirava pedaço; podiam olhar à vontade, bulir não podiam. Ela era escrava da
senhora Dona Ana Mendonça, quem se metesse a sebo com escrava de Sinhana ia
ter que se haver com ela; e aí descobria ligeirinho com quantos paus se faz uma canoa. E
com quantos dentes quebrados também.
Mas, naquele anoitecer que veio rápido demais, houve
quem não se segurasse por medo de Sinhana e seus negros fortes. Dois
marinheiros dum mercante pequeno arribado de Salvador, que nunca tinham ouvido falar da viúva, resolveram que estava
na hora de tirar o atraso. E ia ser agora! E ia ser com aquela negra gostosa de
bunda empinada. Os dois homens a seguiram de longe, vendo-a caminhar tranquila
pelas ruas cada vez mais vazias, que levavam do centro ao subúrbio. Num certo
momento, depois de subir e descer uma viela mais enladeirada, viram a negra
arriar as cargas e parar um pouco para descansar. A hora tinha chegado, sol acabava de se esconder no poente. Olharam-se e dispararam a correr em silêncio.
Em dois tempos estavam em cima de Leocádia, que
entendeu imediatamente o que ia acontecer.
Quadrou o corpo, deu um passo atrás procurando a proteção da parede,
agarrou firme o cavalete do tabuleiro, deixou que este tombasse de vez da
cabeça. Os dois homens saltaram sobre ela ao mesmo tempo.
O primeiro levou uma porretada do pé do cavalete
que lhe desmontou o nariz. Caiu de joelhos, com as mãos na cara, o sangue a
escorrer em jorros, fazendo um esforço sobre-humano para não berrar e atrair a
atenção das casas, a dor era insuportável.
O outro homem, vendo a atitude da negra, saltou
sobre ela já com uma faca na mão. Encostou-a no seio dela, arrancou-lhe o
cavalete da mão. E rosnou:
– Tenta comigo e furo teu bucho, negra do inferno.
Bico calado, vai arriando a veste, deitando de costas, abrindo as pernas. Já!
Leocádia, apavorada, deixou o pano branco cair no
chão. Não usava nada por baixo, não gostava. O homem riu sinistramente e apertou
mais a faca contra o seio da mulher assustada.
– Agora deita, cadela! Perna bem aberta e bico
calado!
CONTINUA
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