terça-feira, 16 de outubro de 2018

NEGRA LEOCÁDIA - 2a. parte
MILTON MACIEL

Último parágrafo da primeira parte:
Que chance Domingos teria ante aquela leva diária de competidores muito mais interessantes do que ele? Um português mais velho, que tinha estalagem ali perto e era casado, até propusera comprar a liberdade de Leocádia e botar casa para ela, de escritura passada e tudo. A negra ria, dava corda em Seu Joaquim, prometia que ia pensar, falar com sua dona. Aí vinha com uma conversa que Sinhana não queira vender e levava o portuga no bico. Enquanto isso, ele ia comprando doces e mais doces e aumentado mais e mais a circunferência da cintura.

Continuação:

Por essas e por outras, o negro Domingos não ousava expressar o seu amor por ela. Seria inútil, ele o sabia, de sobra o sabia. Ela certamente percebia a adoração nos seus olhos, mas isso não queria dizer nada para quem percebia olhares como os dele às dezenas. Ele era só mais um com olhos súplices, no meio de tantos com olhos cúpidos, quando não totalmente desrespeitosos e devoradores. Mas ele a amava certamente muito mais do que os outros, que só viam nela o objeto aparentemente fácil de seu desejo e lubricidade. Amava-a porque a via muito mais do que uma fêmea desejável e excitante.

Essa fêmea existia para ele daquele mesmo modo que existia para todos os outros. Também nele Leocádia inflamava fantasias eróticas – e povoava sua imaginação nas práticas solitárias dessa eroticidade. Quantos, como ele, não gemeriam por ela na solidão de seus quartos ou banheiros? Mas isso era o máximo que ele poderia permitir-se. Sonhar com algo mais que o sonho ousado era-lhe obviamente impossível. Domingos procurava ser pragmático e pensar que se aproximava de Leocádia mais como uma pária faminto do que como um homem apaixonado, vinha em busca da mão generosa que alimenta, não em busca da mão amante que acaricia. Mortificava-se...

– Quer mais, meu nego? – falou Leocádia, com aquela voz macia e tranquila que o fazia estremecer. Domingos saiu do seu devaneio, o efeito da cachaça estava sumindo rápido, agora que havia comido alguma coisa.

– Mais um bocadinho? Uma canjiquinha?

– Não, não obrigado, estou satisfeito – mentiu o negro. Sobrava buraco no estômago, mas faltava coragem para aceitar mais. Sobrava vergonha de Leocádia, mais vergonha ainda do branco da farmácia. Faltava-lhe tostão para pagar pela canjica e o homem sabia disso. Os outros homens que se aproximavam também deviam saber, melhor sumir dali o mais rápido que desse. Passou a cuia vazia a Leocádia, o fundo rebrilhava, raspara-o com o dedo para não perder nada. Não sabia quando voltaria a comer. Mas sabia que não voltaria ali, não retornaria a Leocádia tão cedo, por mais que a fome o afligisse.

– Bobinho  – disse ela num sussurro, abrindo os grossos lábios num sorriso, expondo o nácar dos dentes mais brancos e mais perfeitos que uma boca de mulher podia ostentar.

Domingos estremeceu, agiu sem pensar, num impulso tomou parte da cuia vazia em sua mão, fazendo a mão de Leocádia girar para cima. Então curvou-se e roçou levemente essa mão com os lábios, enquanto dizia:

– Deus lhe pague, sinhá!

Era certo que mentia, não era isso o que queria dizer. Mas humilhava-se como convinha, curvava-se ante aquela que era sua benfeitora, deixava patente para ela e para os outros que agora a cercavam que ele era só um negro agradecido, beijando a mão da sinhá que o alimentara. Deu uma dúzia de passos apressados, cabeça baixa, olhos no chão, enfiou-se na viela lateral e sumiu.

– Mas tem jeito! Eu, sinhá!... Justo eu que sou escrava! E ele é liberto, é preto forro. Eu uma sinhá! Tem graça. Negro mais doido!... Como se eu fosse negra forra e endinheirada.

– Não és só porque não o queres, minha cachopinha, tu o sabes muito bem – era seu Joaquim da estalagem que tinha chegado – Rejeitas o pedaço de céu que te ofereço para seguires no muquifo de uma senzala. Benza Deus, quem pode compreender-te, ó rapariga de cabeça dura.

– Seu Joaquim! O senhor agora deu de dizer essas coisas assim de público? Não tem medo que sua senhora fique sabendo, não?

O português reagiu com irritação:

– Ora, menina, bem se vê que não me conheces direito. Como vou ter eu medo àquela lá? Que ela saiba, pouco se me dá. Em minha casa mando eu e todos obedecem. Afinal o homem sou eu! E eu sei muito bem onde pisam os meus tamancos, ora pois!

Todos os homens ao redor concordaram – com a cabeça e a fala. Leocádia, sempre sorrindo, entregou ao lusitano o pacote com a encomenda de doces de batata-doce e de leite. Pegou as moedas, contou-as e só então respondeu:

– Pois olhe, seu Joaquim, que assim o senhor me ajuda a decidir mais fácil. Eu é que não quero saber de tamancos pisando em mim todo dia – e deu uma rabanada, requebrando as cadeiras de modo mais provocante ainda. Então abriu um enorme sorriso e gritou:

– Dona Violante! Bem na horinha. Olhe só o corte de tecido que minha Sinhá lhe mandou, aquele francês que a senhora estava esperando há tanto tempo. Chegou no navio de ontem e Dona Sinhana me disse: Corra, menina, corte e passe muito bem essa preciosidade, que isso é só Dona Violante que vai ter nesta cidade. Ninguém mais, Ninguém mesmo, entendeu? Guarde o resto da peça, que enquanto Dona Violante não aparecer com o vestido novo dela, eu não vendo um corte para mais ninguém, pode ser uma baronesa da Corte.

– Ah, mas sua senhora é um amor! Diga a ela que eu agradeço demais a sua consideração. Ai, mas que coisa mais linda, minha filha! – Dona Violante, envaidecida com a notícia da exclusiva primeira mão, tinha mordido a isca da esperta Sinhana, estava pronta para pagar o preço, qualquer preço, que Leocádia lhe impusesse.

A senhora do Dr. Seabra envolveu o largo peito e a grossa cintura com o maravilhoso tecido francês e teve que se conter, a vontade era de bailar a valsa ali mesmo na frente daquele magote de homens safados, que estavam todos ali como lobos famintos, só de olho na negra de Sinhana. Ah, mas essa era uma negra direita, com ela esses patifes nunca tiraram farinha, sabia-o de fonte segura. Ela usava toda aquela formosura para tirar o dinheiro deles, sem precisar se deitar com ninguém.

Negra bonita aquela. Esperta, inteligente. E também corajosa, muito corajosa. De longe parecia uma ovelhinha no meio dos lobos. Uma ovelha negra, pois sim: Ela é que tosquiava os lobos; arrancava-lhes a lã na forma de tostões, vinténs, patacas, réis – contos de réis, se dependesse daquele português desavergonhado.

Quando soube do preço a pagar pelo corte, não se incomodou. Só ela ia ter aquele tecido no corpo, nenhuma outra mulher. Morressem de inveja: Violante Mursa Seabra, primeira e única! Abriu a bolsa, passou o dinheiro que tinha às mãos de Leocádia, explicando:

– Olhe, minha filha, leve pra Sinhana, não tenho tudo aqui comigo, não estava prevenida. Também a culpa é toda minha, não lembrei que era um tecido francês, tinha que ser uma coisa de muito mais valor. Diga que ainda hoje passo na casa dela e pago a diferença.

Leocádia imediatamente colocou todo o dinheiro que tinha nas mãos de volta na bolsa de Dona Violante:

– Não, senhora, não precisa mandar esse dinheiro, não. Passe lá em casa quando quiser, quando tiver um tempinho. Agora, se quiser mesmo ir hoje... Bom, eu já estou de saída,.. Chego em casa logo e preparo aqueles bolinhos de chuva que a senhora adorou quando esteve lá da última vez, lembra?

Mais uma vez a negra, tão ladina como sua dona, levou Madame Seabra no bico. Lisonjeada com a prova de confiança da moça, a boca salivando de lembrança dos bolinhos de chuva de Leocádia, madame aceitou o convite na mesma hora:

– Pois olhe que vou mesmo, sua danada. Tinha me esquecido que você é uma quituteira de mão cheia. Vou para casa em dois tempos e encomendo um coche para me levar a casa de Sinhana. Vou e levo o dinheiro do tecido. Assim já agradeço pessoalmente a sua senhora a grande gentileza que me fez hoje.

Leocádia despachou os últimos fregueses, as vendas tinham sido boas como sempre, mas a venda para Dona Violante era maior que a soma de todas as outras. Eita patroa esperta essa sua! Arrumou os balaios, agora praticamente vazios, prendeu-os à cintura de vespa, suspendeu o tabuleiro sem peso nenhum na cabeça, pegou o cavalete do tabuleiro na mão e saiu rebolando, sentindo-se seguida e desejada por mais de uma dezena de pares de olhos masculinos. 

Pois que ficassem na vontade, amanhã estaria de volta, olhar não tirava pedaço; podiam olhar à vontade, bulir não podiam. Ela era escrava da senhora Dona Ana Mendonça, quem se metesse a sebo com escrava de Sinhana ia ter que se haver com ela; e aí descobria ligeirinho com quantos paus se faz uma canoa. E com quantos dentes quebrados também.

Mas, naquele anoitecer que veio rápido demais, houve quem não se segurasse por medo de Sinhana e seus negros fortes. Dois marinheiros dum mercante pequeno arribado de Salvador, que nunca tinham ouvido falar da viúva, resolveram que estava na hora de tirar o atraso. E ia ser agora! E ia ser com aquela negra gostosa de bunda empinada. Os dois homens a seguiram de longe, vendo-a caminhar tranquila pelas ruas cada vez mais vazias, que levavam do centro ao subúrbio. Num certo momento, depois de subir e descer uma viela mais enladeirada, viram a negra arriar as cargas e parar um pouco para descansar. A hora tinha chegado, sol acabava de se esconder no poente. Olharam-se e dispararam a correr em silêncio.

Em dois tempos estavam em cima de Leocádia, que entendeu imediatamente o que ia acontecer.  Quadrou o corpo, deu um passo atrás procurando a proteção da parede, agarrou firme o cavalete do tabuleiro, deixou que este tombasse de vez da cabeça. Os dois homens saltaram sobre ela ao mesmo tempo.

O primeiro levou uma porretada do pé do cavalete que lhe desmontou o nariz. Caiu de joelhos, com as mãos na cara, o sangue a escorrer em jorros, fazendo um esforço sobre-humano para não berrar e atrair a atenção das casas, a dor era insuportável.

O outro homem, vendo a atitude da negra, saltou sobre ela já com uma faca na mão. Encostou-a no seio dela, arrancou-lhe o cavalete da mão. E rosnou:

– Tenta comigo e furo teu bucho, negra do inferno. Bico calado, vai arriando a veste, deitando de costas, abrindo as pernas. Já!

Leocádia, apavorada, deixou o pano branco cair no chão. Não usava nada por baixo, não gostava. O homem riu sinistramente e apertou mais a faca contra o seio da mulher assustada.

– Agora deita, cadela! Perna bem aberta e bico calado!

CONTINUA


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