quinta-feira, 18 de outubro de 2018

NEGRA LEOCÁDIA - 3a. parte
MILTON MACIEL

Fim da 2a. parte:

"Em dois tempos estavam em cima de Leocádia, que entendeu imediatamente o que ia acontecer.  Quadrou o corpo, deu um passo atrás procurando a proteção da parede, agarrou firme o cavalete do tabuleiro, deixou que este tombasse de vez da cabeça. Os dois homens saltaram sobre ela ao mesmo tempo. O primeiro levou uma porretada do pé do cavalete que lhe desmontou o nariz. Caiu de joelhos, com as mãos na cara, o sangue a escorrer abundante, fazendo um esforço sobre-humano para não berrar e atrair a atenção das casas, a dor era insuportável.

O outro homem, vendo a atitude da negra, saltou sobre ela já com uma faca na mão. Encostou-a no seio dela, arrancou-lhe o cavalete da mão. E rosnou:

– Tenta comigo e furo teu bucho, negra do inferno. Bico calado, vai arriando a veste, deitando de costas, abrindo as pernas. Já!"   CONTINUAÇÃO:

Leocádia, apavorada, deixou o pano branco cair no chão. Não usava nada por baixo, não gostava. O homem riu sinistramente e apertou mais a faca contra o seio da mulher assustada.

– Agora deita, cadela! Perna bem aberta e bico calado!

Leocádia deitou. Abriu as pernas, fechou os olhos, preparou-se para o pior. Mais uma vez aquilo ia acontecer na vida dela. Quantas vezes tinha acontecido, quantas vezes ainda ia ter que acontecer? Era escrava, como impedir que homens fizessem isso? Por um instante lembrou da primeira vez, quando Sinhô Samuel se pôs a força dentro dela e ela não tinha nem doze anos, nem botava sangue ainda. Agora ia acontecer mais uma vez, tinha perdido as contas de quantas vezes. Era aguentar, ficar quieta, esperar que o homem não a machucasse demais. Depois era ir para casa, se lavar por horas a fio, sabendo que não ia adiantar, que aquela sujeira, como as outras, não sairia nunca mais de sua alma.

O marinheiro arriou a própria calça e começou a descer sobre ela. Leocádia apertou os punhos, apertou os olhos bem fechados, estremeceu...

Foi então que veio o estrondo, o grito, as palavras de raiva, os ruídos de corpos rolando pelo chão. A negra abriu os olhos e custou a entender o que se passava. Levantou, vestiu-se veloz como um corisco e ficou apreciando a surra tremenda que negro Domingos dava no homem da faca. O do nariz quebrado já tinha saído às carreiras, dele só tinha ficado a sangueira no chão.

Capoeirista ágil e experiente, Domingos acertara o agressor com os dois pés na cabeça. O homem rolou no chão, Domingos montou sobre ele, encheu-o de tabefes, tomou na mão a faca que havia caído e agora a encostava nas partes nuas do marinheiro.

O homem suplicou e chorou, pediu perdão, tirou da algibeira todo o dinheiro que tinha e ofereceu-o a Domingos. O negro ficou mais furioso ainda, enfiou o dinheiro na boca do marinheiro e falou:

– Não sou assaltante, seu maldito! Não quero essa sujeira. Engole. Engole tudo! Depois eu te capo, desgraçado.

Para sua surpresa, a voz de Leocádia surgiu aos seus ouvidos, suave como se nada tivesse acontecido:

– Capa não, meu nego. Não carece. Se capar o homem morre, sangra que nem porco, complica pro seu lado. Capa não, tá de bom tamanho a lição, deixa ele ir. Morte não, meu nego. Não suja suas mãos com sangue ruim, não carrega defunto nas costas pro resto da sua vida, vosmicê é negro bom que eu sei.

Domingos sentiu a raiva passar instantaneamente. Ficou aliviado. Nunca tinha matado ninguém, nunca tinha sangrado um homem na faca. Melhor assim. Saiu de cima do marinheiro, deixou que ele enfiasse a calça e, dando-lhe um enorme chute no traseiro, deixou que ele saísse na corrida. Então comentou com Leocádia:

Fiz o que vosmicê pediu, mas ainda acho que devia ter sangrado esse nojento. Ou, pelo menos, capado o desgraçado, pra ele nunca mais atacar uma mulher na vida dele.

– Vale a pena não, meu nego. O maldito é meio branco, vosmicê é negro retinto, a polícia havia de querer tirar desforra em cima de vosmicê. E o pior é carregar um defunto nas costas vida afora, ainda mais quando o defunto não vale nem mesmo um toco de vela ruim. Vale a pena não. Já chega o castigo que o nojento levou hoje aqui, já chega todo o bem que vosmicê me fez. Favor que nunca vou poder lhe pagar.

– Nunca mesmo, porque não tem nada que pagar, não fiz por vosmicê somente, fiz porque não aceito covardia. Já apanhei demais no eito do engenho, já peguei pelourinho, sei muito bem o que é ser vítima de violência e injustiça. Nunca mereci apanhar e já apanhei tanto nesta vida...

Negra Leocádia sentiu-se comover. Ela também sabia muito bem o que era ser vítima de injustiça e violência. E de abuso, de estupro, coisa maldita que homem não sabia o que era. Tomou a mão de Domingos e, como ele fizera naquela tarde, levou a ela os lábios e deixou ali um rápido beijo:

– Agora sou eu que lhe agradeço assim, veja como são as coisas. Mas me diga, como é que eu tive a sorte de vosmicê vir passando por aqui bem na hora precisa?

Negro Domingos mentiu com um sorriso desenxabido:

– Foi Deus que me fez vir hoje por este caminho, normalmente vou por outro.

Era mentira. Como em tantos outros dias, ele a havia seguido a grande distância, escondendo-se nos cantos para que ela não o percebesse. Segui-a escondido, o coração aos pulos, os olhos cheios da visão bonita das ancas ondulando. Nesse anoitecer viu que saíram dois homens atrás de Leocádia, adivinhou-lhes a intenção, deixou-se ficar atrás deles, a eles seguiu escondido. Quando os dois correram para Rosália parada, ele correu para eles. Chegou a tempo de impedir o desfecho com o segundo homem. O primeiro, Leocádia mesmo o havia posto fora de combate. Comentou:

– Vosmicê é danada também, sabe se defender como homem, quebrou a cara do outro desgraçado com o cavalete.

– Sei me defender, mas é como mulher. Se o outro mequetrefe não tivesse a faca, quebrava ele ao meio também.

– E vosmicê não ficou com medo?

– Do furo da faca, sim. Dos desgraçados, não. Se eu deixar o medo tomar conta de mim, como é que vou me defender?

– É, vosmicê é uma mulher e tanto. Nunca vi nenhuma assim como vosmicê nesta vida.

– Ora, meu nego, tá assim de mulher corajosa neste mundo. Ser mulher já é um ato de coragem, vosmicê não pode ter ideia. Mas chega de conversê, que já está muito tarde pra mim, tenho que chegar logo e fritar uns quitutes pra uma visita de minha Sinhá.

– Permite que eu acompanhe vosmicê? Já está muito escuro e... bem, depois do que aconteceu aqui...

– Pois venha comigo, meu nego, que aceito sua boa companhia. Assim, quando a gente chegar, lhe apresento pra Dona Sinhana e conto tudo o que o meu salvador fez esta tarde. E Vosmicê fica para jantar com a gente, que lhe parece?

O estômago de Domingos foi o primeiro a dizer sim, o coração foi o segundo, ia viver o encanto de caminhar um quarto de légua com sua rainha. Como resposta ele tomou os balaios, o tripé e o tabuleiro e foi andando em silêncio ao lado de Leocádia.

Caminharam o percurso em silêncio, de vez em quando um deles dizia algum monossílabo, o outro respondia com um monossílabo também. Mas iam ambos contentes e aliviados.

Quando chegaram, Leocádia entrou na Casa Grande, ia contar as novidades das boas vendas do dia, entregar o dinheiro, dizer da iminente visita de Dona Violante. Do incidente com os marinheiros haveria de falar depois. Mandou que Domingos esperasse no pátio.

CONTINUA

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

TER UM FILHO, PLANTAR UMA ÁRVORE, ESCREVER UM LIVRO
MILTON MACIEL 

Um antiquíssimo aforismo, de origem não definida, afirma que toda pessoa deveria ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro. Bem, no meu caso, tenho que cantar com Cazuza: “Exagerado, eu sou mesmo exagerado...”

FILHOS? Tive cinco! 

LIVROS? Até o momento publiquei 39, escrevi 45 (os outros são ghost writings,onde meu nome não aparece como autor), vem mais uma leva aí, publicada no exterior. 

E ÁRVORES? Ah, plantar árvores foi o que mais fiz nesta vida. Não só todas as frutíferas que plantei em áreas de minha posse ou arrendamento, mas, principalmente, as centenas de milhares de pés de café (foto), cujo plantio conduzi para meus clientes de consultoria em cafeicultura orgânica em São Paulo; a as inúmeras árvores plantadas para os de fruticultura orgânica no Nordeste. Quantas terão sido? Cento e cinquenta mil? Duzentas mil? Nem sei mais dizer. Mas devem estar todas vivas e produzindo.


Certamente irão sobreviver a mim. Como os filhos. Como os livros...


Isso é o lindo da vida!


Quanto ao aforismo, posso dizer que fiz a minha parte! Quando chegar a hora, posso partir tranquilo.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

NEGRA LEOCÁDIA - 2a. parte
MILTON MACIEL

Último parágrafo da primeira parte:
Que chance Domingos teria ante aquela leva diária de competidores muito mais interessantes do que ele? Um português mais velho, que tinha estalagem ali perto e era casado, até propusera comprar a liberdade de Leocádia e botar casa para ela, de escritura passada e tudo. A negra ria, dava corda em Seu Joaquim, prometia que ia pensar, falar com sua dona. Aí vinha com uma conversa que Sinhana não queira vender e levava o portuga no bico. Enquanto isso, ele ia comprando doces e mais doces e aumentado mais e mais a circunferência da cintura.

Continuação:

Por essas e por outras, o negro Domingos não ousava expressar o seu amor por ela. Seria inútil, ele o sabia, de sobra o sabia. Ela certamente percebia a adoração nos seus olhos, mas isso não queria dizer nada para quem percebia olhares como os dele às dezenas. Ele era só mais um com olhos súplices, no meio de tantos com olhos cúpidos, quando não totalmente desrespeitosos e devoradores. Mas ele a amava certamente muito mais do que os outros, que só viam nela o objeto aparentemente fácil de seu desejo e lubricidade. Amava-a porque a via muito mais do que uma fêmea desejável e excitante.

Essa fêmea existia para ele daquele mesmo modo que existia para todos os outros. Também nele Leocádia inflamava fantasias eróticas – e povoava sua imaginação nas práticas solitárias dessa eroticidade. Quantos, como ele, não gemeriam por ela na solidão de seus quartos ou banheiros? Mas isso era o máximo que ele poderia permitir-se. Sonhar com algo mais que o sonho ousado era-lhe obviamente impossível. Domingos procurava ser pragmático e pensar que se aproximava de Leocádia mais como uma pária faminto do que como um homem apaixonado, vinha em busca da mão generosa que alimenta, não em busca da mão amante que acaricia. Mortificava-se...

– Quer mais, meu nego? – falou Leocádia, com aquela voz macia e tranquila que o fazia estremecer. Domingos saiu do seu devaneio, o efeito da cachaça estava sumindo rápido, agora que havia comido alguma coisa.

– Mais um bocadinho? Uma canjiquinha?

– Não, não obrigado, estou satisfeito – mentiu o negro. Sobrava buraco no estômago, mas faltava coragem para aceitar mais. Sobrava vergonha de Leocádia, mais vergonha ainda do branco da farmácia. Faltava-lhe tostão para pagar pela canjica e o homem sabia disso. Os outros homens que se aproximavam também deviam saber, melhor sumir dali o mais rápido que desse. Passou a cuia vazia a Leocádia, o fundo rebrilhava, raspara-o com o dedo para não perder nada. Não sabia quando voltaria a comer. Mas sabia que não voltaria ali, não retornaria a Leocádia tão cedo, por mais que a fome o afligisse.

– Bobinho  – disse ela num sussurro, abrindo os grossos lábios num sorriso, expondo o nácar dos dentes mais brancos e mais perfeitos que uma boca de mulher podia ostentar.

Domingos estremeceu, agiu sem pensar, num impulso tomou parte da cuia vazia em sua mão, fazendo a mão de Leocádia girar para cima. Então curvou-se e roçou levemente essa mão com os lábios, enquanto dizia:

– Deus lhe pague, sinhá!

Era certo que mentia, não era isso o que queria dizer. Mas humilhava-se como convinha, curvava-se ante aquela que era sua benfeitora, deixava patente para ela e para os outros que agora a cercavam que ele era só um negro agradecido, beijando a mão da sinhá que o alimentara. Deu uma dúzia de passos apressados, cabeça baixa, olhos no chão, enfiou-se na viela lateral e sumiu.

– Mas tem jeito! Eu, sinhá!... Justo eu que sou escrava! E ele é liberto, é preto forro. Eu uma sinhá! Tem graça. Negro mais doido!... Como se eu fosse negra forra e endinheirada.

– Não és só porque não o queres, minha cachopinha, tu o sabes muito bem – era seu Joaquim da estalagem que tinha chegado – Rejeitas o pedaço de céu que te ofereço para seguires no muquifo de uma senzala. Benza Deus, quem pode compreender-te, ó rapariga de cabeça dura.

– Seu Joaquim! O senhor agora deu de dizer essas coisas assim de público? Não tem medo que sua senhora fique sabendo, não?

O português reagiu com irritação:

– Ora, menina, bem se vê que não me conheces direito. Como vou ter eu medo àquela lá? Que ela saiba, pouco se me dá. Em minha casa mando eu e todos obedecem. Afinal o homem sou eu! E eu sei muito bem onde pisam os meus tamancos, ora pois!

Todos os homens ao redor concordaram – com a cabeça e a fala. Leocádia, sempre sorrindo, entregou ao lusitano o pacote com a encomenda de doces de batata-doce e de leite. Pegou as moedas, contou-as e só então respondeu:

– Pois olhe, seu Joaquim, que assim o senhor me ajuda a decidir mais fácil. Eu é que não quero saber de tamancos pisando em mim todo dia – e deu uma rabanada, requebrando as cadeiras de modo mais provocante ainda. Então abriu um enorme sorriso e gritou:

– Dona Violante! Bem na horinha. Olhe só o corte de tecido que minha Sinhá lhe mandou, aquele francês que a senhora estava esperando há tanto tempo. Chegou no navio de ontem e Dona Sinhana me disse: Corra, menina, corte e passe muito bem essa preciosidade, que isso é só Dona Violante que vai ter nesta cidade. Ninguém mais, Ninguém mesmo, entendeu? Guarde o resto da peça, que enquanto Dona Violante não aparecer com o vestido novo dela, eu não vendo um corte para mais ninguém, pode ser uma baronesa da Corte.

– Ah, mas sua senhora é um amor! Diga a ela que eu agradeço demais a sua consideração. Ai, mas que coisa mais linda, minha filha! – Dona Violante, envaidecida com a notícia da exclusiva primeira mão, tinha mordido a isca da esperta Sinhana, estava pronta para pagar o preço, qualquer preço, que Leocádia lhe impusesse.

A senhora do Dr. Seabra envolveu o largo peito e a grossa cintura com o maravilhoso tecido francês e teve que se conter, a vontade era de bailar a valsa ali mesmo na frente daquele magote de homens safados, que estavam todos ali como lobos famintos, só de olho na negra de Sinhana. Ah, mas essa era uma negra direita, com ela esses patifes nunca tiraram farinha, sabia-o de fonte segura. Ela usava toda aquela formosura para tirar o dinheiro deles, sem precisar se deitar com ninguém.

Negra bonita aquela. Esperta, inteligente. E também corajosa, muito corajosa. De longe parecia uma ovelhinha no meio dos lobos. Uma ovelha negra, pois sim: Ela é que tosquiava os lobos; arrancava-lhes a lã na forma de tostões, vinténs, patacas, réis – contos de réis, se dependesse daquele português desavergonhado.

Quando soube do preço a pagar pelo corte, não se incomodou. Só ela ia ter aquele tecido no corpo, nenhuma outra mulher. Morressem de inveja: Violante Mursa Seabra, primeira e única! Abriu a bolsa, passou o dinheiro que tinha às mãos de Leocádia, explicando:

– Olhe, minha filha, leve pra Sinhana, não tenho tudo aqui comigo, não estava prevenida. Também a culpa é toda minha, não lembrei que era um tecido francês, tinha que ser uma coisa de muito mais valor. Diga que ainda hoje passo na casa dela e pago a diferença.

Leocádia imediatamente colocou todo o dinheiro que tinha nas mãos de volta na bolsa de Dona Violante:

– Não, senhora, não precisa mandar esse dinheiro, não. Passe lá em casa quando quiser, quando tiver um tempinho. Agora, se quiser mesmo ir hoje... Bom, eu já estou de saída,.. Chego em casa logo e preparo aqueles bolinhos de chuva que a senhora adorou quando esteve lá da última vez, lembra?

Mais uma vez a negra, tão ladina como sua dona, levou Madame Seabra no bico. Lisonjeada com a prova de confiança da moça, a boca salivando de lembrança dos bolinhos de chuva de Leocádia, madame aceitou o convite na mesma hora:

– Pois olhe que vou mesmo, sua danada. Tinha me esquecido que você é uma quituteira de mão cheia. Vou para casa em dois tempos e encomendo um coche para me levar a casa de Sinhana. Vou e levo o dinheiro do tecido. Assim já agradeço pessoalmente a sua senhora a grande gentileza que me fez hoje.

Leocádia despachou os últimos fregueses, as vendas tinham sido boas como sempre, mas a venda para Dona Violante era maior que a soma de todas as outras. Eita patroa esperta essa sua! Arrumou os balaios, agora praticamente vazios, prendeu-os à cintura de vespa, suspendeu o tabuleiro sem peso nenhum na cabeça, pegou o cavalete do tabuleiro na mão e saiu rebolando, sentindo-se seguida e desejada por mais de uma dezena de pares de olhos masculinos. 

Pois que ficassem na vontade, amanhã estaria de volta, olhar não tirava pedaço; podiam olhar à vontade, bulir não podiam. Ela era escrava da senhora Dona Ana Mendonça, quem se metesse a sebo com escrava de Sinhana ia ter que se haver com ela; e aí descobria ligeirinho com quantos paus se faz uma canoa. E com quantos dentes quebrados também.

Mas, naquele anoitecer que veio rápido demais, houve quem não se segurasse por medo de Sinhana e seus negros fortes. Dois marinheiros dum mercante pequeno arribado de Salvador, que nunca tinham ouvido falar da viúva, resolveram que estava na hora de tirar o atraso. E ia ser agora! E ia ser com aquela negra gostosa de bunda empinada. Os dois homens a seguiram de longe, vendo-a caminhar tranquila pelas ruas cada vez mais vazias, que levavam do centro ao subúrbio. Num certo momento, depois de subir e descer uma viela mais enladeirada, viram a negra arriar as cargas e parar um pouco para descansar. A hora tinha chegado, sol acabava de se esconder no poente. Olharam-se e dispararam a correr em silêncio.

Em dois tempos estavam em cima de Leocádia, que entendeu imediatamente o que ia acontecer.  Quadrou o corpo, deu um passo atrás procurando a proteção da parede, agarrou firme o cavalete do tabuleiro, deixou que este tombasse de vez da cabeça. Os dois homens saltaram sobre ela ao mesmo tempo.

O primeiro levou uma porretada do pé do cavalete que lhe desmontou o nariz. Caiu de joelhos, com as mãos na cara, o sangue a escorrer em jorros, fazendo um esforço sobre-humano para não berrar e atrair a atenção das casas, a dor era insuportável.

O outro homem, vendo a atitude da negra, saltou sobre ela já com uma faca na mão. Encostou-a no seio dela, arrancou-lhe o cavalete da mão. E rosnou:

– Tenta comigo e furo teu bucho, negra do inferno. Bico calado, vai arriando a veste, deitando de costas, abrindo as pernas. Já!

Leocádia, apavorada, deixou o pano branco cair no chão. Não usava nada por baixo, não gostava. O homem riu sinistramente e apertou mais a faca contra o seio da mulher assustada.

– Agora deita, cadela! Perna bem aberta e bico calado!

CONTINUA


sábado, 13 de outubro de 2018


NEGRA LEOCÁDIA
MILTON MACIEL

Setembro de 1788, a tarde era morna. Negro Domingos oscilou para o lado. Firmou-se na parede e respirou. Cachaça ruim aquela! Não tinha bebido tanto assim. Firmou-se na parede, mas aí foi a parede que resolveu oscilar de um lado para o outro. Aliás, a rua inteira também. Diacho! Como ia conseguir chegar na Travessa do Ouvidor a tempo de encontrar Leocádia? Não devia ter bebido!

Sim, mas como aguentar a fome sem a bebida? Essa era de graça. Comida, tinha que pagar. Com o quê? Há dois dias não conseguia nenhuma tarefa, nenhuma carga no caís, os escravos carregavam e descarregavam tudo. Ser preto forro podia ser pior, muitas vezes, do que ser um dos escravos. Estes pelo menos comiam todos os dias. E tinham um teto sobre a cabeça, ainda que fosse uma senzala.

E Leocádia, então? Não era liberta, era escrava, mas era comissionada. Sua senhora lhe deixava ganhar dez por cento de tudo o que conseguia vender durante o dia. Sestrosa, bonita, robusta, a preta descia a ladeira remexendo os quadris, a bunda apetitosa repontando por debaixo do algodão branco, a cintura fina ainda mais apertada pelas faixas das quais pendiam os dois balaios carregados, um de cada lado. Sobre a cabeça, sempre erguida e altaneira, equilibrava o amplo tabuleiro.

Dos beiços entreabertos saia a voz de feitiço, apregoando o fubá, a canjica, o curau, os doces, o pão-de-açúcar, a farinha puba, os poucos cortes de tecido. Sua Sinhá era mulher esperta, comerciante forte, viúva ladina, que aprendera a comerciar com o falecido, um cristão-novo prestamista, que lhe deixara loja de porta aberta na Rua do Comércio e engenho de açúcar lá na Várzea de Cima. Pequeno, mas lucrativo. E pra lá de 40 escravos.

Dona Ana Mendonça, A Sinhá Ana. Ou Sinhana

Sinhana era danada. Mulherzinha de cabelo nas ventas, sabia enfrentar uma briga com concorrentes ou com a negrada. E não corria de desafio, nem levava desaforo pra casa. Mas era ladina demais, ninguém podia com ela. Tinha umas ideias esquisitas, coisas que mal cabiam na cabeça de um homem. Começa que, nem bem enterrou Samuel, fechou a loja de rua, que era o xodó do falecido.

– Eu não! – dizia e repetia – Eu que não fico de barriga espremida contra balcão o dia todo, as pernas enchendo de varizes, em pé como uma negra de engenho. Deus que me livre!

E aí veio com aquela de mandar a suas negras vender as traquitanas todas na rua, de casa em casa. E nos pontos de maior movimento de povo, como na Travessa do Ouvidor e na beira do cais.

Os homens arengavam contra ela, enfurecidos:

 – Hom’essa, onde já se viu tamanho disparate! Pois a gaja herda porta aberta na melhor rua de comercio e fecha a loja. E bota as crioulas a negociar por ela nas ruas, arrematada loucura!

– E isso não é tudo, a destrambelhada não inventa de fazer uma coisa ainda pior: pois dizem que paga – paga, veja bem! – a suas escravas. Paga comissão, como se fossem pretas forras. Um absurdo.

– Um terrível exemplo. Já pensou se a moda pega? Como ficamos nós, se temos que dar dinheiro a essa negralhada toda? Já não chega tudo o que se gasta em comida com esses mortos de fome?

– Mas também não há porque apoquentar-se, ó homem. Deixa estar que em dois tempos essa maluquice fracassa – como só pode fracassar! – e essa aluada Sinhana dá com os burros n’água. Vai é só perder capital, botar fora as mercadorias, ser roubada por essa negras preguiçosas, que sonegar-lhe-ão o dinheiro das vendas, sumirão com peças de vestuário, comerão dos quitutes escondidas.

– Mas é pra já que as negras engordam como porcas e as patacas somem das mãos dessa viúva retardada. Aliás, foi isso que o compadre Tomé foi dizer-lhe à sua casa, direto nas fuças dela, para exigir-lhe que parasse de dar mau exemplo, parasse com essas práticas desajuizadas. E sabe o que aconteceu?

– Ela escutou a voz da razão?

– Escutou. E, a seguir, correu meu compadre Tomé da casa dela a vassouradas. A vassouradas, imagine só! Quando o compadre resolveu reagir, já na rua, e tomar a vassoura dela, surgiram do nada uns dez negros fortes e avançaram em direção a Tomé, que tocou sebo nas canelas, criou asas nos pés e escafedeu-se dali na corrida. Eram os escravos machos da viúva.

– É uma maluca!  

– Sim, uma louca. E como tal vai logo esbagaçar-se toda. Mulher não é feita para negócios de homem. O falecido era um negociante de juízo, de boas regras, embora fosse um desonesto de marca maior, assim foi que enriqueceu. Mas essa doidivanas logo põe ao pau todo o patrimônio. Não vamos ter que esperar muito tempo.

Já Leocádia só louvava sua senhora. Era Sinhana pra cá, Sinhana pra lá, Deus no céu e Sinhana na terra.

Nesse fim de tarde, quando negro Domingos conseguiu enfim chegar na Travessa trocando as pernas, ainda conseguiu ouvi-la falando para um freguês:

– Mulher boa tá ali, meu branco. Depois que Sinhô Samuel bateu a caçoleta e foi pra terra dos pés-juntos, nossa vida virou da água pro vinho. Agora não tem mais fome, a senzala reformada é limpa que dá gosto e o nosso trabalho na cidade é muito diferente. Eu, por exemplo, agora sou vendedora, não fico mais acabada de cansaço no fim do dia. E estou ganhando meu dinheirinho.

Domingos meteu-se na conversa:

– Pois se ela é tão boa como vosmicê diz, por que não dá alforria pra vosmicê e pros outros?

– Ué, pra gente não ficar que nem vosmicê.

O branco, empregado da farmácia do italiano Ottoni, estranhou:

– Não ficar que nem ele, como?

Leocádia viu a expressão de êxtase de Domingos olhando seu tabuleiro. Pegou uma cuia, abaixou-se, destampou o panelão e serviu-lhe uma concha bem cheia de canjica de milho. Só aí respondeu;

– Não ficar como ele, que tem a liberdade agora, mas tem a fome pior do que antes. Tem que pagar pela comida, pelo cortiço onde se acoita e não tem como ganhar o sustento. Minha Sinhá me explicou que é por isso que ela não nos dá alforria. Pra gente não ir-se embora e passar necessidade por aí. Mas ela disse que nos paga que é pra gente, se tiver juízo, juntar dinheiro e comprar nossa alforria dela, se um dia a gente quiser e tiver ganha-pão pra se manter por conta própria.

Domingos sentiu os olhos encherem-se de lágrimas; virou-se de costas, porque algumas caíam silenciosas na cuia de canjica. Leocádia tinha razão. Ele estava pior agora que era forro. Ela era generosa, matava-lhe a fome sempre que ele se achegava faminto. Ele evitava vir com frequência, porque sabia que a negra era honesta demais e agradecida demais a sua Sinhá, pagava da sua comissão a comida que dava a ele.

Evitava vir também porque seu coração batia descompassado à vista de Leocádia. Para amá-la já bastava toda aquela juventude e formosura. Mas é que o diabo da negra era muito mais do que apenas bonita. Era aquela bondade toda de coração, aquela retidão de caráter, aquela alegria constante que animava qualquer um.

Os fregueses que o dissessem! Nenhuma negra vendedora tinha tantos clientes como ela. Muitos homens vinham só para vê-la e tentar levar a belezura para a cama. Mas sabiam que tinham que comprar alguma coisa. Aí se insinuavam, faziam propostas, botavam preço, concorriam pesado entre si, enfrentavam-se, mais de uma vez partiram para o desforço físico. Leocádia, do alto de sua estampa sedutora, flertava com todos, mas não dava trela para nenhum. Eram negros forros como Domingos, mulatos, brancos brasileiros, portugueses, estrangeiros. E marinheiros de pele desbotada como papel e cabelo amarelo como milho.

Que chance Domingos teria ante aquela leva diária de competidores muito mais interessantes do que ele? Um português mais velho, que tinha estalagem ali perto e era casado, até propusera comprar a liberdade de Leocádia e botar casa para ela, de escritura passada e tudo. A negra ria, dava corda em Seu Joaquim, prometia que ia pensar, falar com sua dona. Aí vinha com uma conversa que Sinhana não queira vender e levava o portuga no bico. Enquanto isso, ele ia comprando doces e mais doces e aumentado mais e mais a circunferência da cintura.

CONTINUA AMANHÃ

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

COMPONDO 
MILTON MACIEL
(Com o oratório inteiro no vídeo Youtube ao final)

1841, Londres. É noite alta na grande mansão do maestro George Friderik Handel, o grande compositor nascido na Alemanha como George Friedrich Händel e naturalizado inglês desde 1815. Dois homens conversam, angustiados:
– Mr. Johan, não sei mais o que fazer. O Mestre continua sem me atender, é como se não me ouvisse falar ou bater à porta. Por isso lhe pedi que viesse aqui.
–Ele está trancado lá e não responde? Será que ele teve um desmaio, uma síncope, meu Deus?!
– Não, Mr. Johann, não é isso, ele está muito vivo, o piano não pára de soar. Ele compõe sem parar, há duas semanas, obsessivamente...
– Como? Você me diz que ele está trancado lá há duas semanas, sem sair, só compondo?
– Senhor, parece-me que o Mestre está possuído por alguma força estranha e tenho certeza que ele não saiu nenhuma vez da grande sala do piano.
– Mas, James, como pode ser isso? Se ele não sai e não deixa ninguém entrar, como é que faz para se alimentar? E para beber água, tomar um chá, ir ao banheiro?
– Não esqueça. Mr. Johann, que ali há um banheiro interno, com água de excelente qualidade.
– Sim, é verdade, ia esquecendo. Mas... e a comida? Como pode ele estar há duas semanas sem comer nada, se é um grande garfo e sua gordura excessiva é uma das nossas preocupações com sua saúde? Então ele se serve sozinho, de madrugada...
– Impossível, senhor. Mrs. Anthony, a cozinheira, perceberia facilmente. Isso não aconteceu.
– Mas então a coisa toda é muito séria! Deixe-me tentar eu mesmo, ele é meu professor e meu pai foi sempre seu secretário e melhor amigo. E eu, você bem sabe, sou a única pessoa que ele aceita ensinar, exceto as filhas do Príncipe de Gales.
Johann Schmidt bateu temeroso à porta da sala, anunciando-se. Nenhuma resposta, mas o piano não parava de soar, com uma melodia tão perfeita que o aluno sentiu-se comover. Colando o ouvido à porta, pôde ouvir a voz do Mestre. E percebeu que George Handel falava frases entrecortadas e chorava emocionado. Então, subitamente, tudo cessou.
No instante seguinte, a porta se abriu, e mestre Handel surgiu radioso, com um calhamaço de folhas na mão. Estava visivelmente mais magro, com uma barba crescida de vários dias, cheirava levemente a suor, tinha os olhos vermelhos, mas um sorriso de êxtase marcava-lhe o semblante. Vendo o aluno, falou-lhe, contente:
– Johann! Que bom que é você. Tome, pegue este material, são partituras de um oratório que acabei de compor. Chama-se O MESSIAS. Trabalhei nele por 24 dias, é enorme. E, nestas duas últimas semanas, não consegui parar para fazer qualquer outra coisa. Fiquei como que num estado de transe permanente. Não posso dizer se estava no meu corpo ou fora dele. Esta última parte aqui é o coro ALELUIA. Leve tudo para Sir John, diga-lhe para preparar a publicação. Mas, por esta parte especificamente, eu não quero um só tostão de direito autoral. Esta obra NÃO É MINHA!
E, deixando o discípulo atônito, um alegre e mais delgado mestre Handel correu a banhar-se e a fazer a refeição que quebraria seu longo jejum. (O fato é verídico!)


Este texto foi publicado no livro LETRAS ASSOCIADAS Vol 1, pela Associação das Letras, de Joinville, SC.