MILTON MACIEL
Fim da 2a. parte:
"Em dois tempos estavam em cima de Leocádia, que
entendeu imediatamente o que ia acontecer.
Quadrou o corpo, deu um passo atrás procurando a proteção da parede,
agarrou firme o cavalete do tabuleiro, deixou que este tombasse de vez da cabeça. Os dois homens saltaram sobre ela ao mesmo tempo. O
primeiro levou uma porretada do pé do cavalete que lhe desmontou o nariz. Caiu
de joelhos, com as mãos na cara, o sangue a escorrer abundante, fazendo um
esforço sobre-humano para não berrar e atrair a atenção das casas, a dor era
insuportável.
O outro homem, vendo a atitude da negra, saltou
sobre ela já com uma faca na mão. Encostou-a no seio dela, arrancou-lhe o
cavalete da mão. E rosnou:
– Tenta comigo e furo teu bucho, negra do inferno.
Bico calado, vai arriando a veste, deitando de costas, abrindo as pernas. Já!" CONTINUAÇÃO:
Leocádia, apavorada, deixou o pano branco cair no
chão. Não usava nada por baixo, não gostava. O homem riu sinistramente e apertou
mais a faca contra o seio da mulher assustada.
– Agora deita, cadela! Perna bem aberta e bico
calado!
Leocádia deitou. Abriu as pernas, fechou os olhos,
preparou-se para o pior. Mais uma vez aquilo ia acontecer na vida dela. Quantas
vezes tinha acontecido, quantas vezes ainda ia ter que acontecer? Era escrava,
como impedir que homens fizessem isso? Por um instante lembrou da primeira vez,
quando Sinhô Samuel se pôs a força dentro dela e ela não tinha nem doze anos,
nem botava sangue ainda. Agora ia acontecer mais uma vez, tinha perdido as
contas de quantas vezes. Era aguentar, ficar quieta, esperar que o homem não a
machucasse demais. Depois era ir para casa, se lavar por horas a fio, sabendo
que não ia adiantar, que aquela sujeira, como as outras, não sairia nunca mais
de sua alma.
O marinheiro arriou a própria calça e começou a
descer sobre ela. Leocádia apertou os punhos, apertou os olhos bem fechados,
estremeceu...
Foi então que veio o estrondo, o grito, as palavras
de raiva, os ruídos de corpos rolando pelo chão. A negra abriu os olhos e
custou a entender o que se passava. Levantou, vestiu-se veloz como um corisco e
ficou apreciando a surra tremenda que negro Domingos dava no homem da faca. O
do nariz quebrado já tinha saído às carreiras, dele só tinha ficado a sangueira
no chão.
Capoeirista ágil e experiente, Domingos acertara o
agressor com os dois pés na cabeça. O homem rolou no chão, Domingos montou
sobre ele, encheu-o de tabefes, tomou na mão a faca que havia caído e agora a
encostava nas partes nuas do marinheiro.
O homem suplicou e chorou, pediu perdão, tirou da
algibeira todo o dinheiro que tinha e ofereceu-o a Domingos. O negro ficou mais
furioso ainda, enfiou o dinheiro na boca do marinheiro e falou:
– Não sou assaltante, seu maldito! Não quero essa
sujeira. Engole. Engole tudo! Depois eu te capo, desgraçado.
Para sua surpresa, a voz de Leocádia surgiu aos
seus ouvidos, suave como se nada tivesse acontecido:
– Capa não, meu nego. Não carece. Se capar o homem
morre, sangra que nem porco, complica pro seu lado. Capa não, tá de bom tamanho
a lição, deixa ele ir. Morte não, meu nego. Não suja suas mãos com sangue ruim,
não carrega defunto nas costas pro resto da sua vida, vosmicê é negro bom que
eu sei.
Domingos sentiu a raiva passar instantaneamente.
Ficou aliviado. Nunca tinha matado ninguém, nunca tinha sangrado um homem na
faca. Melhor assim. Saiu de cima do marinheiro, deixou que ele enfiasse a calça
e, dando-lhe um enorme chute no traseiro, deixou que ele saísse na corrida. Então
comentou com Leocádia:
– Fiz o que vosmicê pediu, mas ainda acho
que devia ter sangrado esse nojento. Ou, pelo menos, capado o desgraçado, pra
ele nunca mais atacar uma mulher na vida dele.
– Vale a pena não, meu nego. O maldito é meio
branco, vosmicê é negro retinto, a polícia havia de querer tirar desforra em
cima de vosmicê. E o pior é carregar um defunto nas costas vida afora, ainda
mais quando o defunto não vale nem mesmo um toco de vela ruim. Vale a pena não.
Já chega o castigo que o nojento levou hoje aqui, já chega todo o bem que
vosmicê me fez. Favor que nunca vou poder lhe pagar.
– Nunca mesmo, porque não tem nada que pagar, não
fiz por vosmicê somente, fiz porque não aceito covardia. Já apanhei demais no
eito do engenho, já peguei pelourinho, sei muito bem o que é ser vítima de
violência e injustiça. Nunca mereci apanhar e já apanhei tanto nesta vida...
Negra Leocádia sentiu-se comover. Ela também sabia
muito bem o que era ser vítima de injustiça e violência. E de abuso, de
estupro, coisa maldita que homem não sabia o que era. Tomou a mão de Domingos
e, como ele fizera naquela tarde, levou a ela os lábios e deixou ali um rápido
beijo:
– Agora sou eu que lhe agradeço assim, veja como
são as coisas. Mas me diga, como é que eu tive a sorte de vosmicê vir passando
por aqui bem na hora precisa?
Negro Domingos mentiu com um sorriso desenxabido:
– Foi Deus que me fez vir hoje por este caminho,
normalmente vou por outro.
Era mentira. Como em tantos outros dias, ele a
havia seguido a grande distância, escondendo-se nos cantos para que ela não o
percebesse. Segui-a escondido, o coração aos pulos, os olhos cheios da visão
bonita das ancas ondulando. Nesse anoitecer viu que saíram dois homens atrás de Leocádia, adivinhou-lhes a intenção, deixou-se ficar atrás deles, a eles seguiu
escondido. Quando os dois correram para Rosália parada, ele correu para eles.
Chegou a tempo de impedir o desfecho com o segundo homem. O primeiro, Leocádia mesmo o havia posto fora de combate. Comentou:
– Vosmicê é danada também, sabe se defender como
homem, quebrou a cara do outro desgraçado com o cavalete.
– Sei me defender, mas é como mulher. Se o outro
mequetrefe não tivesse a faca, quebrava ele ao meio também.
– E vosmicê não ficou com medo?
– Do furo da faca, sim. Dos desgraçados, não. Se eu
deixar o medo tomar conta de mim, como é que vou me defender?
– É, vosmicê é uma mulher e tanto. Nunca vi nenhuma
assim como vosmicê nesta vida.
– Ora, meu nego, tá assim de mulher corajosa neste
mundo. Ser mulher já é um ato de coragem, vosmicê não pode ter ideia.
Mas chega de conversê, que já está muito tarde pra mim, tenho que chegar logo e
fritar uns quitutes pra uma visita de minha Sinhá.
– Permite que eu acompanhe vosmicê? Já está muito
escuro e... bem, depois do que aconteceu aqui...
– Pois venha comigo, meu nego, que aceito sua boa companhia.
Assim, quando a gente chegar, lhe apresento pra Dona Sinhana e conto tudo o que
o meu salvador fez esta tarde. E Vosmicê fica para jantar com a gente, que lhe
parece?
O estômago de Domingos foi o primeiro a dizer sim,
o coração foi o segundo, ia viver o encanto de caminhar um quarto de légua com
sua rainha. Como resposta ele tomou os balaios, o tripé e o tabuleiro e foi
andando em silêncio ao lado de Leocádia.
Caminharam o percurso em silêncio, de vez em quando
um deles dizia algum monossílabo, o outro respondia com um monossílabo também.
Mas iam ambos contentes e aliviados.
Quando chegaram, Leocádia entrou na Casa Grande, ia
contar as novidades das boas vendas do dia, entregar o dinheiro, dizer da
iminente visita de Dona Violante. Do incidente com os marinheiros haveria de
falar depois. Mandou que Domingos esperasse no pátio.
CONTINUA