quinta-feira, 6 de agosto de 2015

A PRIMEIRA PALMADA A GENTE NÃO ESQUECE  
MILTON  MACIEL

Nasci como todos nascem, hoje eu sei. Mas com uma grande diferença: tive imediata consciência do que acontecia. Vou explicar. Foi assim:

A primeira coisa de que recordo, ainda de olhos fechados, foi aquela aguda sensação de frio. Quando abri os olhos para ver o que se passava, fui violentamente ofuscado por um festival de luzes feéricas. Fechei os olhos imediatamente, reação defensiva automática. Foi quando senti aquele golpe traiçoeiro, que foi vibrado por alguém em minhas costas, mais exatamente nas nádegas. Nunca mais o esqueci!

Fui obrigado a abrir os olhos novamente e a me adaptar à dor e ao ofuscamento que a luz daquele ambiente provocava. E imediatamente bradei, em protesto:

– Que é isso?!

Mas o som que escutei não foi de minha voz, porém algo que me lembrou um horrível miado de tigre. Nesse momento, para meu completo pavor, percebi que estava suspenso no ar. E de cabeça para baixo! Um gigante mascarado me suspendia pelos pés e era ele o agressor que havia batido em meu traseiro.

Então notei, horrorizado, que havia sangue, muito sangue abaixo de mim. E que daquele lugar partia uma espécie de corda grossa arroxeada que parecia entrar em minha barriga. Protestei outra vez em altos brados e só então o gigante parou de bater em minha derrière.

Vi então que havia mais gigantes naquela estranha sala. Uma dessas figuras me apanhou, pegou alguma coisa e cortou a corda arroxeada perto da minha barriga. Aí ela me depositou em uma espécie de maca ou algo assim, sei lá. Era uma gigante-mulher. Foi aí que passei a primeira grande vergonha da minha vida!

Tive a clara consciência de que estava nu, completamente pelado na frente de uma mulher. Tentei me erguer na maca para ver se achava algo com que pudesse me cobrir. Mas, misteriosamente, eu não consegui mover o corpo para cima. Aí a mulher enorme não só viu as minhas partes baixas, como começou a passar as mãos nelas e no resto do meu corpo, usando uma espécie de pano para retirar alguma coisa viscosa que havia grudado em minha pele.

Devo ter ficado vermelho de vergonha. Felizmente a enorme criatura pareceu ter percebido o meu embaraço, porque tratou logo de me cobrir e depois embrulhar em uns panos. E me levou no colo para um lugar onde me depuseram num leito aquecido. Finalmente a sensação de frio passou! Na porta do lugar havia uma placa em idioma estrangeiro, onde estava grafada a estranhíssima palavra Berçário, lembro disso perfeitamente até hoje.


Mas aí começou o pior. De repente me veio a maior sensação de fome e de sede. Mas fome extrema, cruel, insuportável. Comecei a gritar de novo, pedindo comida. Lembro-me de ter chamado em altos brados pelo garçom. Mas, outra vez, tudo o que eu consegui escutar foi aquele horroroso miado de tigre que atormentava os meus delicados tímpanos com indizível crueldade.

Ah, como eu ansiava ali por uma variada tábua de queijos, um bom vinho, uma baguette fatiadinha. Eu queria meu Brie, meu Camembert, um Gorgonzola italiano, um Merlot não muito envelhecido, pouco mais de vinte anos, safra 1743. E uma baguette, uma enorme baguette quentinha, hummm.

De novo a telepatia funcionou: como se lesse meu pensamento, uma nova gigante mulher colocou algo em minha boca que eu, sem entender bem por que, comecei a sugar avidamente. Mas, Grand Dieu, era ÁGUA! Foi choque demais. Desmaiei imediatamente e só lembro de ter recobrado a consciência muito tempo depois, quando era uma espécie de bebê roliço que estava aprendendo a caminhar.

Mas foi só para passar pelo segundo horror da minha vida: os gigantes daquele novo ambiente me chamavam por um nome errado. Errado e horroroso: Sebastião. Tiãozinho. Une chose térrible! Mas isso eu conto outra hora. Au revoir.

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