MILTON MACIEL
Fim da 28ª
parte:
– Chega, João. Assim não vai sobrar nada para Irani,
coitada. Não esqueça que ela está para chegar.
– Mas...Mas tem que ser hoje?! Meu amor, por favor, eu
nem conheço sua prima direito...
– Mas vai conhecer e, por causa disso, vai amar Irani.
Pode deixar, eu conheço Irani por nós dois. Eu garanto. Ela é boa demais.
– Boa demais és tu, meu anjo. Boa como ninguém pode
ser neste mundo de Deus.
– Ah, João, deixa esse teu Deus de castigos e
proibições de lado! E, pelo amor que eu sei que tens por mim, eu te peço:
recebe Irani no teu coração, como recebeste a mim. E assim nós três seremos
muito, muito felizes. Nós quatro, quando André chegar e tiver duas mães que
cuidem dele. Agora, vem, deixa que eu termine de te lavar e te preparar para
tuas novas núpcias.
29ª parte: Um
amor que europeu não entende
Uma hora depois
o sol tocou o horizonte oeste e terminou de incendiar em rubro as nuvens e o
céu, que se olhavam nas águas calmas do riacho. Junto com o ocaso, chegou Irani!
Bartira correu a
receber efusivamente sua prima e levou-a para dentro da oca, onde João Ramalho
acendia a primeira tocha. À luz bruxuleante, o português contemplou pela
primeira vez, de forma lenta e cuidadosa, o rosto e o corpo da prima de sua
esposa, daquela que ele tinha, quisesse ou não, que tomar como sua esposa nesse
momento.
A primeira
impressão foi de fato muito favorável. A mocinha era realmente atraente, de
belo semblante e – impossível não reconhecê-lo – bastante parecida com Jamari.
E, pareceu-lhe também, ter alguma semelhança com a própria Bartira. Eram ambas
mais altas que a média das índias, assim como os pais delas, Tibiriçá e Caiubi,
eram homens bem mais altos também.
Os corpos era
idênticos, iguais aos da maioria das jovens índias que ainda não tinham tido
filhos: rijos, suaves, cabelos lisos e escorridos, seios túrgidos, ventre reto,
a pequena depressão saliente ao final dele dando aquele ar de delicadeza e
feminilidade extremas. Sim, fisicamente ao menos, Irani era realmente bela!
A indiazinha
esperava, constrangida, que João Ramalho terminasse de fazer seu minucioso
exame. Era evidente que estava extremamente nervosa, a ponto de mostrar um
certo estremecimento. O rapaz percebeu isso e sentiu-se um pouco culpado, ao
lembrar que a menina devia estar numa tensão muito grande há um bom tempo,
receando, talvez, uma recusa e sua vergonhosa devolução a Jurubatuba. Então
João falou pela primeira vez à sua jovem pretendente, procurando acalmá-la e,
ao mesmo tempo, acalmar a si próprio:
– Sê bem-vinda à
nossa casa, ó Irani. Tens a simpatia de teu irmão Jamari e a beleza de tua
prima Bartira.
A indiazinha falou
com um fio de voz, que mal lhe saía da garganta apertada pela angústia:
– E João
Ramalho... deixa... deixa Irani... ficar? – terminou a pergunta já com lágrimas
nos olhos.
Bartira
adiantou-se ao marido na resposta:
– Claro que ele
deixa, Irani. Pois ele não acabou de dizer que achou você bonita? Qual homem
seria estúpido de recusar uma esposa como Irani? O nosso João é que não – disse
isso sorrindo para o seu homem, que haveria de ser, a partir daquela noite, o
homem das duas primas. E reforçou:
– João Ramalho
aceita Irani como sua esposa, não é? – e tomando a mão delicada da prima,
colocou-a dentro da mão enorme do peró de Vouzela.
João olhou as
duas moças ainda perplexo, viu o olhar de confiança em uma doce Bartira, o
olhar de pânico em uma trêmula Irani e respondeu, com voz ainda arrastada:
– Aceito, pois.
Bartira sorriu,
semblante iluminado. Irani emitiu um ruído estranho e desabou no chão,
desmaiada!
Bartira
sentou-se ao chão e tomou a prima no colo, dando-lhe suaves batidas no rosto e
nas mãos, enquanto emitia sopros sobre o seu nariz. A um sinal seu, João correu
a buscar uma cuia com água, que ela jogou com suavidade no alto da testa da moça,
dizendo:
– Pobrezinha. É
o medo, João. Medo é uma coisa horrível! Pobre menina, deve ter sofrido um
horror com medo de ser achada feia e sem graça, de ser mandada embora.
João Ramalho
olhava aquela cena estupefato: Quanto amor ele via nos olhos e nas mãos
carinhosas de Bartira, quanta nobreza naquela mulher tão jovem e já tão sábia!
Só então ele foi capaz de se colocar no lugar de Irani e de avaliar o tormento
pela qual a garota passara. Imaginou-a andando sozinha toda a enorme distância
entre Jurubatuba e a oca de Bartira e João, cada passo entremeado pelo medo de
ser recusada no dia do seu casamento. E concluiu consigo mesmo:
Eu sou uma besta, um ignorante, um grosseirão! Um
português parvo e cheio de preconceitos, indigno de viver com as pessoas generosas
deste povo guaianá. Pobre mocinha, a sofrer tanto por minha causa, pudesse eu
imaginar isso... Mas não, não sou capaz, eu sou um primitivo, um tapado, o
selvagem aqui sou eu. E elas são a bondade e a doçura. E Deus – ou seja o que
for – me concede essa benção em dose dupla, na forma de duas jovens e formosas
mulheres! Ah, mas eu não as mereço, não as mereço mesmo...
Felizmente Irani
começou logo a recuperar a consciência. E, envergonhadíssima pelo desmaio,
aninhou-se ainda mais no colo de Bartira, escondendo o rosto dentro dos longos
cabelos sedosos da prima. João sentiu-se tocar ainda mais pelo comovente
daquela cena. Sim, ele aceitava Irani como esposa, mas o fazia porque essa era
a vontade de Bartira. E ele não teria coragem de negar nada a ela. Simplesmente
porque ela merecia tudo!
As duas moças,
após algum tempo, ergueram-se com graça e encaminharam-se para o pequeno fogão
que João Ramalho fizera na oca, à maneira dos fogões de Portugal. Conversando e
sorrindo, as duas preparam rapidamente uma refeição substancial. Depois
sentaram-se ao chão com João Ramalho e desfrutaram dos alimentos com verdadeiro
deleite. Era o banquete de núpcias!
Então Bartira
fez todos levantarem e levou-os para as peles, que João Ramalho havia montado à
maneira de uma cama alta européia. Apagou a tocha e falou:
– Vocês já estão
casados desde o momento em que João Ramalho disse eu aceito. Mas estão os dois muito sem jeito e Irani deve estar
esgotada, cansada demais. Então vamos dormir, descanso é o que mais vocês
precisam. Amanhã eu ajudo vocês e consumarem o casamento, a brincar de amor.
Aliviados e
agradecidos, os dois beijaram Bartira e trataram de dormir o mais rápido que
puderam.
CONTINUA
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