quarta-feira, 24 de julho de 2013

A PEQUENA PROSTITUTA          
MILTON MACIEL

Av. Robert Kennedy, a beira-mar da praia de Ponta Verde, Maceió – 1999. O último de meus quatro anos em Alagoas, onde assumi uma Secretaria de Agricultura. Paro meu carro num sinal. Uma mãozinha pequena bate no vidro, do meu lado.

Dou esmolas por princípio, sempre tenho notas no carro para isso (Desde 2011 faço isso aqui em Miami também, onde – sinal dos novos tempos – não é mais incomum encontrar pedintes nos sinais: os homeless, os desempregados e os veteranos de guerra, geralmente com sérios problemas mentais).

É uma menina pequena, franzina. Ela bate no vidro e me faz um sinal que decodifico como sendo para eu parar: a mãozinha aberta, mostrando todos os dedos estendidos. Baixo o vidro, dou-lhe uma nota de 2 reais. Ela faz sinal com a cabeça que não. Então escuto a frase que vai mudar minha vida para sempre:

 – Tio, me queira. Por favor! To com fome... Eu cobro só CINCO.

Então a brutalidade da compreensão me entra mente adentro: a mãozinha espalmada mostrava o preço do programa: cinco reais! Cinco reais para vender seu corpinho que, vim a saber pouco depois, tinha só DEZ anos de vida!

Fecho-lhe então a pequena mão, agora com uma nota de dez dentro, e lhe digo, disfarçando o nó na garganta:

– Se você está com fome, vá comer. E levanto o vidro, restaurando o ar condicionado, para que ela entenda que não quero o programa.

O sinal abre enfim e eu a observo pelos dois retrovisores. Ela corre, pula, grita algo para o rapaz que atendia na barraca de praia ao lado do sinal. Meu espírito de escritor me faz parar bruscamente. Desço, falo com o guarda ali perto, peço-lhe cinco minutos de carro mal estacionado, é uma emergência. Ele concede.

Sento na barraca seguinte à da menina, meio escondido por uma coluna de madeira. Observo-a. Vejo que ela pede comida e refrigerante, vejo-a comer avidamente, desesperadamente. É verdade que estava com fome! Mas noto algo estranho também. Ela tem uma bolsa sobre o colo e, a cada vez que o rapaz atendente lhe volta as costas, ela joga algo, que parece com a comida que tem no prato, dentro da bolsa.

Prato esvaziado, garrafa também, a menina dá ao rapaz a nota de dez e espera pelo troco. Sai outra vez pulando, agora num pé só, como uma criança. Mas volta ao “ponto”. Param outros carros no sinal, ela anda pelo calçadão junto a eles, bate nos vidros outra vez. O terceiro carro que ela aborda, com sua mãozinha espalmada, abre-lhe a porta de trás. E ela entra, vai mais uma vez fazer seu trabalho humilhante, desesperado, sofrido, cruel.

Vou ao guarda, excedi em muito meus cinco minutos, explico-lhe francamente o que quero. Ele me dá uma força, diz para eu ir em frente. Então vou à barraca onde a garota comeu e converso com o rapaz. Peço-lhe que me informe sobre a menina. Por sorte ele havia prestado atenção quando ela me abordou e lembrava bem de mim, foi solícito.

Assim fiquei sabendo que a criança tinha só dez anos e que se “virava” naquele sinal umas três vezes por semana. Então perguntei ao moço se ele havia notado que ela jogava comida na bolsa sobre o colo, enquanto comia. Ele fez sinal que sim. Apresentei-lhe minha brilhante conclusão:

– Ela leva comida para comer mais tarde, não é? Só não sei por que o faz escondida.

 – Mais tarde o que, seu moço! Eu me viro de costas a toda hora porque ela tem vergonha, faço que não vejo. Mas ela leva comida é pros IRMÃOZINHOS dela. Tem mais quatro em casa e só ela é que garante a bóia pra todos. A mãe é variada, lesa das idéias, num sabe? Some no mundo e as crianças... Vixe!

Eu não podia saber, mas naquele momento estavam nascendo meus romances sobre prostituição infantil. No livro “A Espera e a Noivinha”, coloquei as mesmas palavras da menina de Maceió na boca de outra criança da mesma idade, Ritinha, com a cena ambientada na cidade de Barbalha, no Ceará, localidade que conheci quando, consultor do SEBRAE no Nordeste, dei consultoria a engenhos de açúcar em várias áreas rurais da região.

Nunca mais soube da menina, embora tenha passado a prestar muita atenção àquele sinal da Ponta Verde. Por alguma razão, ela mudou de ‘ponto’. Pouco depois acabou meu mandato e voltei para o Sul, desta vez não para São Paulo, mas para Santa Catarina. E foi ali, na praia da Enseada, em São Francisco do Sul, e em Joinville, que nasceram meus livros sobre a saga das meninas prostitutas em Sergipe, Alagoas, Ceará e nos garimpos do Pará. Dentro do gaúcho da fronteira que retornava ao Sul, vinha inteiro o Nordeste, que aprendi a respeitar e amar profundamente.

Mas eu estava inteiramente impregnado, indelevelmente marcado por uma mãozinha espalmada, sinalizando um preço absurdo em todos os sentidos. E por uma vozinha suave, tímida, quase sussurrada, inesquecível, que me disse:

 – Tio, me queira. Por favor! To com fome... Eu cobro só CINCO.

Bendita hora em que eu aprendi, anos antes, que devia dar esmolas! (MM)

Miami, Fev 10 2012 

domingo, 21 de julho de 2013

CONFESIÓN  
MILTON MACIEL (Poesías en español)

Dejé de ser pequeño
Cuando dejé que tu crecieras.
Eras poco, dentro en mí
Y yo te creía pequeña,
Menos importante, incapaz.
Por que así me enseñaron los adultos
Los hombres  adultos, bien cierto.

Me entrenaron pa’ que yo fuera Macho!
Y aprendí que para ser macho,
Tenia que menospreciarte.
Que así, me haría grande!
Que así, me respetarían los hombres.
Ahí los imité, los copié y tuve suceso:
Logré hacerme un Macho de verdad!

Pero no conseguí jamás hacerme un Hombre!
Me arrastraba en el mundo dividido que aprendí
Y en el nunca tuve como hallar felicidad.
Yo… yo era un Macho, nada más.
Hoy yo sé lo cuanto esto es tan poco!
Cerrado en my ignorancia y insensibilidad,
Te hice sufrir – y eso, si, que no fue poco!
Mi visión de vida seguía destorcida y mala
Porque, así como me entrenaron para verte
Así mismo yo te veía
Y, por eso… no te sentía.

Yo no entendía.
Pero eso me hacia
Pequeño. Minúsculo!
Superior, te reprimía.
Y estando a tu lado…
No te conocía!
Estabas dentro en mi
Y yo… no lo sabía.
Llorabas y sufrías
Y yo… no percibía.

Pero mi ceguera un día se acabó
Y mis ojos entonces  por final se descerraron.
Solo entonces percibí que el ciego era el Macho.
Ciego lo hacía mi pretensa superioridad y mi miedo.
Y el miedo era el de sentirte
En todo tu resplandor y gloria.
Sentirte entera dentro de mí.
Sentir como tú sentías.
Amar como tú amabas.
Respetarte como tú te respetabas,
Mientras que el Ciego… no lo hacía.

¡Verte dentro en mi fue portentoso!
Ali estabas tu, el tiempo entero,
Con tu capacidad infinita de amar.
Y esperar. Y soportar. Y perdonar.
Lo comprendí tan claramente
Que me puse de rodillas
Y te imploré perdón… Por tanto daño!

En el mundo exterior, loco y partido,
Tu eras la amante, la esposa, la hija
La nieta, la abuela, la chica, la nena.
Y eras la Madre!
Pero en verdad, en el mundo interior,
Tu eras la MUJER!
Mi Mujer Interior,
La mujer de que me distancié para ser Macho.
La mujer que reprimí para ser Grande.
La mujer que la usé para servirme.

Tonto. Loco. Ignorante.
Si reprimía la mujer dentro de mí,
Yo proyectaba en el mundo una imagen destorcida.
Y en todas las mujeres que busqué – y las quería!
Nunca pude encontrar felicidad.

Claro: tonto, loco, ignorante,
La mujer que yo buscaba, ¡NO EXISTÍA! 
Era solo una loca proyección del vacío que yo tenía.

El día en que aprendí a respetarte
Fue por fin el día de mi liberación.
Dejé que salieras de dentro de mi entera,
Para que crecieras y ocuparas tu lugar afuera.
Y tu, al crecer, me hiciste Hombre por fin.
Porque, cuanto más tú te agrandabas,
Menos pequeño yo quedaba.

Hoy te tengo entera y feliz dentro de mí.
Nos reconciliamos por que me perdonaste.
Y hoy yo puedo amar y ser feliz finalmente.
Encontrarte libre, gloriosa, dentro en mi,
Fue encontrar, por fin, felicidad.
El mundo ya nos es tan loco y nos es mas dividido.
Porque, finalmente, YO no estoy mas dividido.
Somos uno solo, tú y yo, ¡mujer maravillosa!
Mujer dentro de mi: yo te amo
Y más que eso: te respeto y te ADMIRO.

Por eso ahora soy feliz.
Por eso ahora puedo amar una mujer
Sin me importar si ella me ama o no.
¿Soy amado? Si. Talvez. O no. ¿Que importa?
¿Que importa? Si YO amo.
¡Y esto es todo que me basta y me soporta!

(La figura es Anima/Animus)


sábado, 20 de julho de 2013

O  AMOR  VERDADEIRO É MUITO DIFERENTE!  
MILTON MACIEL

Em cena estão Ataliba, o paulistano feliz, o homem mais alegre de São Paulo, o filósofo das ruas da Paulicéia desvairada – Ataliba, o sábio. Com ele está Célia, a vendedora, Celinha para os amigos, olhando a vida agora com outros olhos, do alto de sua maturidade incipiente de 40 anos, depois de sua malograda tentativa de suicídio. E também a escultural Tainá, loira alta de olhos verdes, rosto perfeito, sexualidade transbordante, juventude a exultar pela vida, explodindo de dentro de seus 27 aninhos.  Faz jus a Vinícius de Moraes: “Tão linda, que só espalha sofrimento!” Entre Célia e Tainá, uma tumultuada relação de paixão, uma incipiente relação de amor.

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“Então Ataliba falou a Tainá:

– Há muitas pessoas assim, Tainá, essa é a normalidade delas. Eu sou heterossexual, você é homossexual e Celinha é bissexual. A coisa toda é simples assim. As pessoas, por preconceito, ignorância ou obscurantismo religioso é que complicam tudo, que não conseguem aceitar uma realidade tão evidente. Criam tabus, castigos, autopunições, e movem perseguições aos outros. É tudo ignorância, Tainá, ignorância que faz sofrer, que gera dor, que cria solidão, que machuca o corpo, que fere a alma, que hostiliza, ridiculariza, açoita e mata. O marido covarde que assassina a esposa adúltera, à qual ele mesmo não foi fiel; o mulah monstruoso, que manda decapitar a esposa adúltera e faz vistas grossas ao comportamento adúltero de todos os maridos; o pai animalesco que expulsa de casa a filha solteira grávida; o debilóide que discrimina pessoas homossexuais, o canalha que estupra uma mulher...

Mestre Ataliba fez um silêncio mais longo, como a deixar tempo para que as interlocutoras elaborassem melhor o que dissera. E prosseguiu:

– Todos eles são excrecências degeneradas de uma sociedade podre e machista. Eles têm a mente mergulhada em trevas e o coração cheio de ódio, estão muito longe ainda de poderem se abrir para o amor verdadeiro. São infelizes que se arrastam em seu sombrio mundo interior, infelicitando todos a seu redor. Muitos tentam fazer crer, inclusive e principalmente a si próprios, que falam em nome de Jesus, Maomé ou Moisés, escudando-se e escondendo-se atrás de pretensos livros sagrados, aos quais transferem a responsabilidade de pensar por eles, já que, na sua ignorância, são incapazes de fazê-lo por si próprios. Esses são os que seguem guias fanáticos ou exploradores, são os que alimentam o perigosíssimo efeito manada, os que odeiam em nome do Deus de Amor, os que discriminam, perseguem e matam. São preconceituosos intransigentes, fadados a encontrar, mais dia, menos dia, em sua própria família, em suas relações ou em seu próprio corpo, aquela sombra de destruição que teimam em ver somente nos outros.

– Ataliba! – exclamou a belíssima Tainá, com os grandes olhos verdes faiscando entusiasmo – você é um sábio! Você fala como se fosse um iluminado, um religioso. Qual é a sua religião?

– Nenhuma, Tainá. Ou, por outra, a minha é a religião do Amor. Ela é simples demais, não tem livros da Lei, padres, imans ou pastores, não tem templos externos – igrejas, mesquitas, sinagogas. Só existe nas mentes e corações das pessoas que são capazes de amar. Como Célia, que ama você de fato, de uma forma que você ainda não é capaz de atingir. Que ama você, apesar de suas infidelidades a ela.

– Mas eu lhe suplico, Ataliba: me ajude a mudar! A superar isso, eu não quero mais ser infiel a Célia.

– Mas, Tainá, essa não é a condição de amar Célia de verdade! Pois você só atingiria essa condição por medo: medo de que ela deixe você de novo, medo de perdê-la. No entanto isso não tem sido suficiente para você deixar de ter interesse sexual por outras mulheres. Quem é fiel por medo, seja da outra pessoa, seja da sociedade, seja de um Deus primitivo e castigador, não é fiel de verdade. A única fidelidade possível é a que existe na alma apaixonada. E as pessoas desaprenderam a arte de manterem-se apaixonadas por anos a fio. Célia é apaixonada na alma, aprendeu a amá-la incondicionalmente, sem esperar que você possa retribuir no mesmo nível. Há muito tempo que ela compreendeu que você é vítima de sua própria beleza extrema, de sua força de sedução, do seu sex appeal que destempera outras pessoas, sejam elas mulheres ou homens. Em última análise, você ainda é bastante  imatura para poder escapar da armadilha psicológica do seu próprio narcisismo.  

Célia interveio nesse instante, falando com enorme calma e doçura na voz:

– Meu amor, muitas vezes eu fiz vistas grossas aos seus casos, por saber tudo isso, exatamente porque Ataliba já me havia ensinado a grande lição do amor verdadeiro. Na primeira vez em que vivemos juntas, eu era um poço de ciúmes e você uma sedutora incorrigível, colecionando casos e mais casos. Eu não aguentei e deixei você. E isso foi a gota d’água para mim, tentei me matar dias depois. Mas Ataliba me salvou no último momento. O que não teria tido maior valor para mim, se não tivesse ele, logo a seguir, se dedicado a salvar minha alma ignorante e incapaz de Amor. Foi ele que me fez ver que eu deveria, sim, aceitar a mim própria, com minha bissexualidade. E aceitar que, dentro dela, eu sentia um enorme amor era por uma mulher, por você Tainá. E por causa dele, eu voltei a procurar você e nós voltamos a viver juntas agora.

– Mas você ficou sabendo das minhas novas escapadas, não é? Agora eu percebo isso.

– Sim, querida, mas agora eu estava madura o suficiente para amar você. Agora eu não precisava me amar através de você, como antes. Ataliba me mostrou a enorme diferença que existe nisso. Agora eu me comprazo e sou feliz com esse amor que devoto a você. E isso foi a melhor coisa que me aconteceu, depois que eu aprendi a viver. Ataliba, como um mestre bendito, me encontrou, me resgatou da morte, me fez renascer, me ensinou a amar. E me ensinou a conhecer e amar você do jeito que você é. Como eu amo você!

Ataliba acrescentou:

– Amar é isso, Tainá. É se dar e é aceitar. Ou, para ser mais simples: Amar é DAR. E isso Célia aprendeu finalmente.

– Tem uma coisa, Tainá, que eu quero que você entenda de uma vez por todas, meu amor. O bom da nossa relação, para mim, é que eu tenho você para amar. Para EU amar você! Você fica comigo e eu tenho a pessoa que eu adoro para cobrir de amor, de cuidados, de proteção, de aceitação e de compreensão. E eu sou sumamente grata a você porque você fica comigo. E sou grata a Deus porque você existe. Existe e está aqui comigo, com todas as suas qualidades e defeitos. Eu amo você e isso é o que me faz feliz, independente de você me amar, me compreender, me aceitar. Não se trata de um negócio de toma lá, dá cá. Entenda, meu amor, para mim é uma coisa de toma lá somente

Ataliba reforçou:

– Eu lhe digo, Tainá, que Célia já consegue compreender e vivenciar isso, Célia já sabe amar. Um dia você poderá aprender também. Mas, entenda, ninguém aqui está dizendo que amar Célia é ser fiel a ela sexualmente. Esta não é a condição, se você tentar atingi-la por medo unicamente. Repito: você só não se interessa por outras pessoas fora de sua relação, sem que isso seja provocado por um medo que as pessoas chamam de caráter, quando você está completamente apaixonada. Então você fica totalmente cega, nem sequer percebe as outras pessoas. Mas o grande mal atual é que as pessoas não sabem se conservar apaixonadas.

E, com um suspiro, completou:

– Eu falei que Célia é bissexual. Ela já teve dois casamentos e um outro homem a quem amou depois disso. Então entenda, menina, que ela ama você porque você é Tainá, não porque você é mulher! Ela é perfeitamente capaz de amor um homem da mesma forma, basta que encontre um à altura dela. Portanto, Célia ama Tainá independente do sexo dela, compreendeu? Ou seja, o ser espiritual que é Célia ama o ser espiritual que é Tainá. E isso está muito acima dos corpos e do tesão. Este, o desejo, é tributário, afluente, não é o rio principal, que é um caudal de amor espiritual.  O corpo que tem hoje a exuberância da juventude, amanhã ostentará as marcas do tempo e do desgaste. Não será mais exteriormente tão belo, não será mais atraente. E, se a essência espiritual não for amável, então o que sobrará para amar?”

Cabeça baixa, Tainá de olhos verdes cintilantes apenas chorava mansamente, abundantemente, sentidamente. Sim, era verdade – ela ainda não sabia amar... Mas cresceria um dia, um dia haveria de aprender. Será que Célia poderia esperar por ela?...


Extraído de:  “ATALIBA, UM PAULISTANO FELIZ” – Milton Maciel – IDEL - 2010
ONOFRE E O NORDESTINO  
MILTON  MACIEL


Pois foi num dia de faina qualquer, quando havia uma carga de lã recém-enfardada para mandar da fazenda para a cooperativa. Às duas da tarde encostou o caminhão de Juvenal Paraná, que era quem normalmente fazia esse tipo de serviço. Só que, desta vez, ele tinha mandado seu novo ajudante para se entender com o Onofre e levar a carga.

O homem era novo por ali: trigueiro, de baixa estatura, cabelo meio sarará. Apeou da boléia e estendeu a mão. Onofre quase lhe tritura todos os ossos no aperto:


– Buenas, tchê! Mas que que tu tá fazendo no caminhão do Juvenal, índio velho?

– Ó xente!  Sô índio não, só pareço. E sô velho não, seu moço. Sô moço!  Eu sô é caboclo dos bom do meu Cariri, no Ceará. Aquele cabra da peste do Juvenal me mandô aqui por causa di que ele foi prum baticum que vai tê num casório, dizque é um tal de Pedrão qui casa mais uma Maria. Dizque vão balançá a tanajura tumbém.

Onofre não entendeu quase nada daquela língua estrangeira, do tal país chamado Cariri. E pediu imediata presença de compadre Gaudêncio, com quem foi se aconselhar em particular, deixando o homem do caminhão na espera.

– Me diz, cumpadre, como é qui eu vou me entendê com esse baixinho que é estrangero e fala outra língua, parecida só um poco com a nossa?

– O home é de fora, é, cumpadre?

– Pois é como le digo. Fala esquisito como só. Disse que o Juvenal tá com uma cabra que pegô peste. Mas eu só queria sabê onde é que existe cabra aqui na Campanha. Aqui nós só temo gado e ovelha, nunca que tem cabra. Pelo menos aqui em Santana do Livramento eu nunca que vi uma cabra.

– Nunca que tem! E essa cabra pegô peste, cumpadre?

– Pois foi o que o homezinho disse. Começa que o índio velho disse que não é índio nem velho e depois me chamô de moço – se é que eu entendi o idioma dele. Ora, que ele não é bugre qualqué um tá vendo, não sei porque ele fala essas bobage.

– E que otra coisa esquisita que ele falô, cumpadre?

– Bueno, ele disse que ia tê um tal de bate cu num tal de casório, que é casamento, todo mundo sabe. Mas é esquisito ele contá essas coisa das intimidade dos otro que arrecém tão se casando, não acha, cumpadre? Pelo que eu entendi, dizque é o Pedrão que vai fazê isso com uma tal de Maria. Dizque a tal tem uma tanajura mui grande e aí...

– Barbaridade, cumpadre! Que eles faça o que quisé não é da conta de ninguém, pra isso eles tá se casando. Mas também saí contando pra todo mundo... que o noivo vai bate o negócio dela... Francamente!...

– Bueno, mas vamo vê se o cumpadre me ajuda a entendê a língua dele, que temo que subi a lã pro caminhão ainda cedo.

E dirigiram-se, juntos, para o motorista:

– Bueno, tchê, tá pronto prá subi as lã?

– Eitcha, num mi dissero que a lã ia subi di preço, não. Mai num faiz mal, essa coisa di preço é lá cum o cabra da molesta do Juvenal.

– Mas bah, cumpadre, taí ele falando de novo na tal da cabra doente do Juvenal. E que nós temo com isso? Ele que mande curá as bichera dela, ora!

– Bueno, vamo mandá carregá os fardo, entonces?

– Ah, carregá nós pode começa é já, não pricisava cercá lourenço, seu minino, falasse logo.

– Olha só, cumpadre: chamo mecê de menino. Vai vê pensa que tu é um piá de bosta qualqué. Acho que vô sentá o relho nesse desaforado.

– Calma, cumpadre Onofre, que nós precisa do frete desse índio velho. E ele disse que nós tava cercando um tal de Lourenço, ou entendi errado?

– Arre égua, mai eu já num disse qui não sô índio? E tumbém não só velho, só tenho trinta e oito ano. E cercá lourenço qué dizê arrudiá, fica dando vorta no assunto, sem i direto nele.

– Arreá uma égua?! Mas o índio tá loco, onde é que tu tá vendo égua por aqui pra botá os arreio, animal?

– Num tem qui arreá nada, que presepada é essa? Afinar, ocês qué qui eu leve a carga o não? Ocês decidi. Inquanto isso, me diz donde qui tem uma casinha, mode eu dá uma barrigada.

Os dois gaúchos velhos se entreolharam surpresos, não estavam entendendo nada, mas nada mesmo.

– Tu qué dá uma barrigada? Mas isso só se pulá de mau jeito na água do arroio. O é otra cosa?

– Não, dá uma barrigada é cumparecê na casinha, arriá as carça e se livrá do barrinho, entendeu?

– Ah, bueno, tchê, se tu ta querendo aliviá os intestino, vai ali atrás daquelas macega, tá vendo? Ali é que nós alivia quando tá longe de casa como aqui.

– Danou-se! E tem papel, pelo menos, ói qui eu já to ficando avexado.

– Home que é home não tem vergonha de cagá, tchê!

– Tá bestando, homi? Avexado qué dizê qui to cum pressa, não cum vexame.

– Ah, Bueno, entonces vai lá e usa as macega mesmo para se limpá, é como nós fazemo aqui, não cai pedaço. Home que é macho não usa essas coisinha de papel, isso é frescura, tchê!

– Tá bom, dexa eu corrê qui tá mal agora. Foi aquele sarapatel com jerimum mais beiju sarolho. Vô ali atrás dos pé de pau e uso as folha das planta mesmo, as tal de macega, é isso?

– Isso mesmo, índio velho. Tu entendeu o tá se fazendo de chancho rengo?

O Cearense também não entendeu nada, mais saiu na carreira para o meio das macegas. Aí os dois amigos ficaram comentando:

– Bueno, eu já tava começando a ficá buzina com esse chiru. Até parece que tá entropigaitado. O tu acha que ele tá se fazendo de chancho rengo?

– Chancho rengo? Se fazendo de bobo? Acho que não, cumpadre, acho que,se a gente não entende direito o idioma dele, ele também pode não entender o nosso. Acho que é isso. A gente precisava de um intérprete.

– Cuê-pucha, cumpadre! Que que é isso que tu falô, esse tal de ... intérprete?

– Bueno, cumpadre, é um turuna que sabe falá os nosso dois idioma, o do Rio Grande e o do tal de Cariri, que é o país dele.

– E onde a gente vai achar um taura assim? Tem idéia?

– Bueno, só se a gente esperá o Juvenal voltá notro dia, afinal o bagual aí trabalha pra ele, não é mesmo? Mas hoje é o tal do bate cu do casório e a essa altura aquele paranaense já boquejô, e já caturritô tudo o que podia e deve de tá bebendo tudo que é canha que encontra pela frente. Já deve de tá borracho, com certeza.

– Pues, sabe que tu tá certo, cumpadre. É isso mesmo. Quando o baixote vier aliviado pra cá, a gente desconversa, diz para esse cuiudo voltá outro dia com o Juvenal e fica o dito pelo não dito. É claro que o Juvenal, mui ambicionero, vem amanhã sem falta pra pegá a carga. E aí ele explica pra nós o que esse azonzado, esse aplastado, tá querendo dizê quando fala essa língua estranha dele. Agora, pensando bem, será que ele não tá é borracho? Tu sabe, um maula emborrachado fala tudo trocado, troca os pé pelas mão.

Nesse momento o ajudante de Juvenal, com cara de alivio e beatitude, estava de volta.

Compadre Gaudêncio perguntou direto, sem frescura:

– Escuta, tchê, tu não tá emborrachado, não?

– Emborrachado? Mai cuma? Cumo é qui eu havia di tá emborrachado, si nem passei em posto o borracharia no caminho pra cá?

Onofre fez o clássico sinal de jogar bebida na goela e completou:

– Borracho, tchê, fica o índio depois que toma um monte de canha.

– Ah, oceis qué sabê foi si eu tô chei dos pau, de cara cheia de cachaça, é isso? Si eu bebi muita pinga no caminho? Se oriente, homi, qui eu bebi fui um nadica di nada, só tava com uma fome de lascá o cano, comi fui muito daquele sarapatel, que ficô agora nas macega de oceis. Oceis tão me fazendo é ri, e um muito! Acho qui vou quebrá a tripa gaiteira. Ha, ha, ha...

E, de fato, o cearense dobrou-se de tanto rir, quebrou mesmo a tripa gaiteira, soltou uma solerte gaitada.

– Barbaridade, cumpadre, o homezinho tá tendo um ataque de riso. Se tá rindo da gente, vamo cagá ele a pau, dá-le uma sumanta de laço, é falta de respeito.

– Deixa disso, cumpadre Onofre, o home até que é boa gente, ele tá rindo é do rumo da nossa conversa, que a gente não entende a língua dele nem ele a nossa. A regra de hospitalidade manda a gente tratá bem os estrangero que chega na nossa terra, não é mesmo? Pois então, vamo pedi pra ele voltá otra hora com o Juvenal e vamo oferecê umas canha, um amargo e um churraco pra ele, o que que o cumpadre acha?

- Bueno, acho que o cumpadre tem razão. Vamo isquecê essa trapalhada toda, mas vamo convidá ele pra mateá e pra churrasqueá com a gente um otro dia, quando o Juvenal pode fazê o trabalho do tal de intérprete, tá certo assim?

– Macanudo, cumpadre Onofre. Vamo falá pro home então.

E foi assim que falhou a primeira tentativa de aproximação entre as culturas de Santana do Livramento e do Cariri cearense. Por culpa das óbvias barreiras intransponíveis entre os dois idiomas pátrios.

Não há como não vir à nossa memória o trabalho pioneiro de aproximação dos povos, desempenhado, um dia, pelos irmãos Vilas Boas, no Xingu...

sexta-feira, 19 de julho de 2013

ODE A UMA DIA COMUM
MILTON MACIEL

Ontem não aconteceu nada,
Foi só um dia comum.

Ontem nada deu certo;
Porém, nada deu errado.
Se nada teve conserto,
Nada também foi quebrado.

Tive alegrias? Que nada!
Mas nada me incomodou.
Fiquei chateado? Que nada!
No entanto, nada mudou.

Nada de novo na esquina,
Nada fugiu da rotina.
Nada houve de horroroso...
Que dia MARAVILHOSO!!!


quinta-feira, 18 de julho de 2013

As Amantes do Português

AS AMANTES DO PORTUGUÊS   
MILTON  MACIEL

O português era conhecido em todo o bairro, o que era simplesmente um contracenso, porque ele havia chegado ali há menos de seis meses, tempo que levava de vida no Brasil. Mas Manoel José era mesmo um homem muito diferente. Diferente e diferenciado. A começar pela profissão: encadernador e restaurador de livros. E um senhor encadernador!

Pouco depois de se estabelecer com sua pequena oficina, foi oferecer seus serviços à biblioteca municipal. Levou amostras e fotografias. Todas as bibliotecárias adoraram e logo Manoel José teve muitas encomendas. Ainda bem que ele trabalhava mesmo muito bem, porque o que todas as bibliotecárias adoraram foi o Manoel José, não as suas amostras e fotografias.

Acontece que o encadernador português era um homem absurdamente bonito. Alto, forte, músculos bem delineados, porte atlético mais para o delgado, pele alva e cabelos pretos, longos e encaracolados ao natural E tinha os olhos... Ah, os olhos do português eram azuis claríssimos, como água-marinha, coisa raríssima de se ver numa pessoa.

As mulheres ficavam loucas pelo português, não só as bibliotecárias. Todas. Por isso ele ficou imediatamente conhecido no bairro. Porque chamava atenção demais onde aparecesse. Porque as mulheres se derretiam ou se excitavam. Porque os homens dessas mulheres ficavam possessos de ciúmes.

Logo correu o frisson pelo bairro, as mulheres dizendo que ele era o homem mais lindo do mundo. Os homens, naturalmente, dizendo que ele era viado. (Isso mesmo, com i, para não confundir com o Bambi e sua família). Todo homem com inveja de homem bonito diz que o cara é viado. Isso é clássico, chega a ser proverbial. Bonitão? É viado! A mulherada corre atrás? É viado...

Pois a mulherada corria atrás do português mais que mosquito da dengue atrás de calcanhar. E o português não era viado coisíssima nenhuma. Pelo contrário, era muito do homem. Mas, como não existe nada perfeito neste mundo incompleto, também o português tinha um defeito. Ele era CASADO!

Não, o problema não era ele ser casado. Para isso a mulherada não ligava. Uma corna a mais, uma corna a menos no mundo, não fazia diferença. A mulher dele que se lascasse, a maldita, por que só ela podia comer do bom e do melhor?

O problema verdadeiro, onde a coisa pegava, é que o Manoel José era FIEL! Por mais que fosse cantado, ele apenas reagia rindo, levava na brincadeira, desconversava, falava nas crianças e na esposa – Desgraçada!

Alguns poucos homens, uns 5 por cento,  se aproximaram, não exatamente para propor amizade ou defendê-lo das fofocas dos outros homens. Mas para ver se o levavam para a prevaricação. Faziam convites e ofereciam, desde umas lolitinhas fogosas até levar o portuga para a zona mesmo. Nada feito. Ele ria, desconversava, falava das crianças e da esposa – Hum, devia ser muito gostosa, precisavam chegar junto dessa portuguesa e conferir se ela afrouxava! Mas não teve jeito, o português não prevaricou. Logo, era viado mesmo! Levaram a confirmação para os outros 95 por cento. Fez-se a unanimidade. Que, segundo Nelson Rodrigues, é sempre burra.

As mulheres não se conformavam com a falta de atenção daquele Adônis. Suspiravam pelo Apolo, faziam propostas indecentes, umas passavam-lhe a mão na bunda, outras preferiam ir direto no vizinho da bunda, o vizinho da frente. Mas o português se esquivava, sempre gentil, ria, desconversava, falava das crianças e da esposa – Maledeta! bruxa, sarnenta!

E a mulherada já sabia, pelo relato das afoitas que apalparam o tal vizinho da frente, que elas encontraram substância, que ali havia coisa de respeito, consistente, avantajada, deitando por terra os outros rumores que os homens despeitados vivam espalhando: ‘É broxa!” Tava na cara – que dizer, na mão – que não era. “É pirulitinho, coisinha de nada!” Não era!

Desgraçado! Bonito demais, forte demais, casado, fiel (viado!) bem dotado (f da p!), grande profissional, honesto (p q p!). Aquele maldito tinha que ter um ponto fraco. Todos têm. Não dava nem para fazer piada de português com o sujeito. Era culto, inteligente, bem educado, tinha casa própria – e boa – não chegara de Portugal sem dinheiro como os outros, uma mão na frente, outra atrás.

Finalmente os homens e as mulheres chegaram a uma conclusão sobre qual poderia ser o fraco daquele homem tão tranquilo e, ao que tudo indicava, tão fiel. Agora sim! Estava na cara, o safado era um bom come-quieto! Não queria nada com elas, não aceitava transar com as que os homens lhe ofereciam porque... TINHA AMANTES! Essa era a explicação, só podia ser: as amantes do português! Quantas seriam? Muitas, é lógico. Um homem como ele!...

Vivia saindo de casa. Viajava quase toda semana. Dizia que ia a trabalho. A mulher, idiota, além de uma nojenta metida, acreditava. Imbecil! Ora, o português ia prevaricar, isso sim! Dessa forma, nem aquela tapada, nem os espertos vizinhos e vizinhas podiam descobrir nada. Safado! Sem-vergonha! Falso! 

Então era isso! E esse boato, repetido por mulheres e homens sem cessar, acabou virando uma verdade universal. O homem era lindo como um anjo, mas era falso como uma cobra. As encomendas secaram na biblioteca. Depois na Universidade, poucas faculdades lhe sobraram como clientes. As bibliotecárias estavam ofendidíssimas. Mas isso não fez diferença alguma, o homem saía, ia para outros bairros, viajava para outras cidades e trazia sempre mais encomendas. E ia ver suas amantes, o patife, claro! Só aquela pernóstica não via isso. Depois, porque sua grande qualidade foi ficando conhecida, começou a receber pedidos de outras cidades e até da capital da república. Maldito! O que tinha de falso, tinha de rabudo, vá ter sorte assim no inferno!

A portuguesa

A mulher do Manoel José era a Maria Joaquina. Uma unanimidade entre as mulheres locais: um nojo, um vomitório! Toda emproada, só porque não era feia. E daí? Era antipática como ela só. Sim, era elegante. Sim, se vestia muito bem. E daí, se era uma corna imbecil. Bem feito! E toda metida a sebo, só porque o mentiroso vivia falando bem dela para todo mundo. Que amava a esposa, o que! Um falso!Que raiva!

Uma convencida, só porque o menino e a menina dela eram os melhores alunos da escola. E daí, grande coisa!

Mas o pior é que a desgraçada, com menos de um ano no Brasil, já era primeiro violino da Orquestra Sinfônica.  Era claro que tinha o rei na barriga por causa disso. Esse pessoal metido com música clássica... tudo esnobe!

Mas Maria Joaquina tinha seu próprio defeito. Aliás, o óbvio: Era um poço de ciúme! Vivia examinando os bolsos, cheirando as camisas, examinando as contas de telefone do marido. Nada! Tudo sempre perfeito. Mas ela sabia das conversas da vizinhança: que o marido tinha amantes! Que viajava para vê-las. Maria Joaquina sofria com essa boataria toda. Recebia cartas e telefonemas anônimos, a maldade das pessoas era patética. Queriam porque queriam que a mulher descobrisse algo e isso viesse lhes lavar as almas maledicentes, justificar as línguas bífidas viperinas.

Envenenaram completamente a alma de Maria Joaquina. Mas não contavam com que ela tivesse tanta classe e finesse. Ela não demonstrava nada, nunca. Era como se não recebesse as cartas e os telefonemas, revelando as armações do canalha. Ficavam as mulheres e os homens se roendo por dentro. Tinham cólicas de impaciência. Engulhos de revolta. Aquela sangue de barata! Covarde! Corna mansa!

Mas nem para armar uma boa briga, uma gritaria, uns tapas, não importava quem batesse em quem, botar o mequetrefe para dormir no sofá da sala. Nada! Chegava uma carta cabeluda e viam a mulher receber o marido com beijos e abraços. Não, tem cada pessoa sem fibra neste mundo...

As duas amantes do português

Mas um dia Maricotinha chegou com a bomba! Tinha descoberto as amantes do português. E eram logo duas! Quem tinha contado tudo era uma tia dela, de mais de oitenta anos, meio surda, mas que era uma consagrada autoridade em termos de fofoca pesada. A velha tinha ouvido o filho dela, professor da Universidade, falar das tais amantes do português. A cobra velha foi manobrando como quem não quer nada, e cada dia ia tirando uma informação aqui, outra ali do filho incauto. E ligava em seguida para Maricotinha. Que corria os proclamas pela vizinhança. Que escalava quem ia recortar as letras das revistas, quem ia colar no papel, quem ia colocar o envelope na casa da antipática, madrugada alta.

Assim Maria Joaquina foi se inteirando aos poucos da realidade e da descrição das amantes do marido. Sofreu muito com a nova e dura realidade e mais ainda porque aquilo acabava dando razão àquela gente horrorosa, No fundo ela sempre estivera esperando por aquilo. Manoel José era bonito demais, como iria poder resistir a tanto assédio, afinal era só um homem e os homens... Sofreu muito mais, mas muito mais calada que antes resistiu.

Então chegou o grande dia. As amantes do português, que eram, as duas, professoras da mesma faculdade do filho da velha Felisbinda, iam estar juntas numa solenidade.  Por isso ele sabia tanto sobre elas, eram suas colegas! Por isso o português enganador tinha contato constante com elas, pois essa faculdade era aquela que ainda lhe dava bastante serviço de encadernação e restauração de livros. A toda hora ele ia buscar e entregar livros lá. Safado!

A velha Felisbinda ficou tão entusiasmada com a última notícia que arrancou do filho, que foi quase correndo para o telefone, e, cuspindo muito, de tão excitada que estava, deu todo o serviço para Maricotinha. Mas estava tão animada com a fofoca que, depois de destilar todo o veneno, esqueceu de segurar direito no andador e estatelou-se no chão. Nunca mais saiu da cama, até morrer, meses depois. Mas entrou para a história do bairro como uma autêntica heroína, uma combatente da grande causa, uma mártir, em resumo.

Então a grande noite chegou. As duas sirigaitas, as amantes do português, que eram, imagine-se só, muito amigas entre si, iam estar no palco do auditório da faculdade, na tal solenidade. Uma das vagabundas se chamava Shirley. A outra rameira era uma tal de Elisângela. Os sobrenomes não interessavam, uma vez que iam estar as duas no palco. Maricotinha não perdeu tempo com isso, tinha uma memória ruim, que estava começando a falhar ainda mais depois dos sessenta anos.

A filha e a nora de Maricotinha capricharam na carta anônima. O marido da filha caprichou no telefonema anônimo. E o padeiro, que levantava muito cedo mesmo, foi, como sempre, enfiar o envelope nas roseiras que sobressaiam ao muro baixo da frente da casa da enxerida. Ah, mas agora aquela nojenta ia perder aquela cara de nojo, aquela empáfia. Agora ela ia se escabelar e chorar! Choro e ranger de dentes, coisa boa, haha!
Maricotinha esfregava as mãos, comovida.

E Maria Joaquina mordeu a isca. Muito bem vestida, reconheça-se, pegou um taxi e foi até a tal faculdade. Localizou o anfiteatro, entrou, ficou quietinha lá no fundo. De lá foi ficando cada vez mais impressionada: o bairro inteiro estava entrando também. Reconheceu dezenas de pessoas de vista. A arqui-fofoqueira Maricotinha e a família em peso, o padeiro, o carteiro, o gerente do posto de gasolina, as vizinhas das duas casas ao lado. Maria Joaquina compôs-se ao máximo, não iria dar esse prazer àquela gente. Mas, ainda assim, eles estava jantando tudo aquilo, sabiam que ela estava lá, a velha Maricotinha, lá da frente, chegava ao desplante de olhar toda hora para ela usando binóculos de teatro, na maior cara-de-pau.

A cerimônia começou. Falou primeiro a diretora da Faculdade de Letras. Era de Letras a faculdade? Bem, isso o pessoal não sabia muito bem o que era mesmo, o padeiro pensou que era o lugar onde se ensinava caligrafia, o ajudante de marceneiro achou que era onde ensinavam a pintar letreiros de propaganda. Mas enfim, não vinha ao caso, porque, naquele momento glorioso, a diretora chamou as duas professoras para comporem a mesa de honra:

– Professora Shirley Escostegui Passos – Literatura contemporânea de Portugal

O aplausos foram gerais, exceto, é claro, do pessoal do bairro. Afinal aquela era uma das putas descaradas. Toma, corna mansa! Faz cara de superior agora! Pois a tal Shirley era um pedaço de mau caminho. Jovem, um corpão violão, uma bunda de cinema!

– Professora Maria Elisângela Donato – Literatura colonial brasileira

Uma explosão ainda maior de aplausos. Mas o pessoal do bairro arregalou os olhos, incrédulo. Maria Joaquina, também: a tal Elisângela era um tribufu! Magra e alta, meio velhusca, óculos de fundo de garrafa, um aparelho maior do que ela nos dentes. Português tarado, comia a mocinha gostosa bunduda e comia a velha esquisita sem bunda. Mas gosto é gosto, tara é tara e o importante é que a emproada a esta hora devia estar desmanchada por dentro, bem feito!

– Ela não tira os olhos da morena bonita! Toma, nojenta! – cochichou Maricotinha para a nora, que queria por que queria pegar o binóculo da mão da sogra.

Lá em cima chamaram mais um monte de gente graúda, professores, representante do governador e o escambau. O pessoal do bairro morrendo de impaciência que aquela xaropada terminasse, não viam a hora de chegar o desforço físico, agressão, a portuguesa emproada baixando de nível, rodando a baiana, reagindo como uma mulher normal, enfiando as unhas nas caras das duas vagabundas. Sangue!

Mas a coisa não acabava mais. Houve declamação de poesia, discurso de político, até que chamaram ao palco o professor Viriato, que tinha se atrasado porque sua velha mãe sofrera uma queda no dia anterior e ele estava com ela no hospital. Mesmo assim o filho único da velha Felisbinda não deixou de cumprir seu dever e veio fazer sua parte na cerimônia. A ele cabia o discurso de premiação e dirigir a entrega dos troféus e medalhas aos vencedores do ano, razão da grande solenidade. Agora sim, a coisa chegava ao fim, o próprio professor Viriato anunciou. A cambada do bairro toda se agitou, dezenas de cabeças se voltavam para trás a toda hora, esperando ver o momento em que a portuguesa ia levantar e partir para enfrentar as rivais. Aquelas duas putas! Iam ter o que mereciam também!

Então o professor Viriato chamou as duas vagabundas à frente da mesa, câmeras de televisão e luzes fortes se voltaram para ambas. Duas sorridentes alunas saíram de trás das cortinas do fundo e vieram colocar uma medalha no peito de cada uma das sirigaitas, que estavam inchadas de orgulho. Ordinárias! Quem te viu, quem te vê! Quem não te conhece que te compre! Por fora bela viola, por dentro, pão bolorento!

Então o professor falou suas curtas e objetivas palavras:

– Em nome da Egrégia Congregação desta casa e de todos os professores, funcionários e alunos desta faculdade, eu tenho a subida honra de entregar este, que é nosso mais importante prêmio anual, em reconhecimento ao que estas duas colegas abnegadas fizeram pela preservação e pelo ensino da nossa literatura e do nosso idioma. Recebam, nobres colegas Shirley Escostegui Passos e Maria Elisângela Donato, das mãos de nossa estimada diretora, o diploma e o troféu de AMANTES DO PORTUGUÊS 2013!

Os aplausos foram gerais, eufóricos, demorados, em pé. Menos, é claro, por parte do povo fofoqueiro do bairro, um monte de gente sentada, com cara de desemxabidos, clima de enterro, murchos de decepção. Então amantes do Português se referia ao IDIOMA?! Maldita velha Felisbinda! Fofoqueira miserável! Que morresse toda quebrada, infeliz! Dezena de olhos furiosos se voltaram para Maricotinha e família. O açougueiro, que estava ali a pulso, trazido pela mulher, fez-lhes um sinal, passando a mão espalmada pelo pescoço – Ah, mas eu corto!

Quando os aplausos silenciaram, contudo, não se fez silêncio na platéia. Uma mulher jovem, extremamente bonita, extremamente bem vestida, levantou de seu lugar no fundo e veio andando pelo corredor entre as cadeiras. E gargalhando. Ela olhava para certas pessoas na platéia, apontava o dedo para cada uma delas e não conseguia segurar a gargalhada. As pessoas não faziam nada, sentadas estavam, sentadas ficavam, abaixavam as cabeças, praticamente as enterravam no peito.

Aí a moça bonita subiu ao palco, junto com muitas pessoas que subiam também para cumprimentar as duas homenageadas da noite. Chegou-se às duas, tomou a mão de cada uma simultaneamente nas suas e falou bem alto:

– Muito obrigado, senhoras Amantes do Português. Eu lhes agradeço muito – e deu um beijo em cada uma.

Depois, deixando as duas professoras ainda perplexas, chegou bem na ponta do palco e falou para um grupo de pessoas que procuravam deixar a sala o mais rapidamente que podiam, empurrando-se, pisoteando umas às outras, trocando palavrões:

– Amantes do Português! Pois subam cá a cumprimentar as Amantes do Português, seus vermes. Suas mal-amadas! Seus paneleiros!

E a moça falava o português perfeito dos que tinham estudado na Universidade de Coimbra.

Agora tinha lágrimas nos olhos. Lágrimas de contentamento. E de arrependimento, Tinha muito o que confessar a Manoel José. Desconfiara dele mais uma vez! Ele não merecia... Tinha dezessete cartas anônimas para lhe mostrar. Suplicaria seu perdão. Não merecia aquele homem tão bom e tão honesto. E tão bonito, olhos de água-marinha... Ah, Manoel José!...

Foto: Kostas Martakis, cantor grego (calma, leitoras, o google não vai fugir, podem dar um google nesse nome mais tarde também. Deixem o maridão, o namoradão sair de perto, senão vão ter que aguentar, irritadas, o cara perguntando, enciumado: Quem é esse viado?!)