terça-feira, 18 de junho de 2013

A  CRIANÇA DO SINAL    
MILTON  MACIEL    

Ao pressentir o triste fim de uma romança
De forma estrófica, banal, repetitiva,
Sabia eu que o que eu olhava era minha vida
Que se arrastava, vã, monótona, esquecida.
Que era eu, senão um náufrago à deriva,
Ou um demente, a girar em louca dança?

Por ser tão só, por ter perdido a esperança
E por viver sem ter qualquer expectativa,
Eu me abismava em meu sofrer, minha ferida,
A maldizer a minha vida destruída.
Assim estava, quando notei, muito ativa
A poucos metros de mim uma criança.

Ela corria entre os carros que paravam
Num sinaleiro, por um tempo diminuto.
Pedia esmolas, com a mãozinha levantada
E a recolhia quase sempre sem ter nada.
E. mesmo quando a xingava algum bruto,
Ela sorria para todos que passavam.

Eu mal a via, os meus olhos se fecharam,
Sentei, vencido, sobre o banco de uma praça
E esqueci a menininha que esmolava.
Quando os abri, eis que ela ao meu lado estava
E era tão meiga, tão pequena, era uma graça,
Que, ao olhá-la, as minhas lágrimas secaram.

Ela sorriu-me e seu sorriso era um encanto
E ela mostrou-me contente suas mãozinhas.
Eram pequenas, delicadas, encardidas
E pareceu-me ver ali duas feridas.
Nas duas mãos ela ostentava moedinhas
E então, correndo, afastou-se do meu banco.

Logo em seguida ela voltou para o meu lado
E, triunfante, ofereceu-me o que trazia
Em sua mãozinha direita: Era um sorvete
Que eu recebi, como do céu fosse um banquete.
E compreendi que sacrifício ela fazia:
Suas moedinhas para ver-me consolado!

Então olhei para seus pezinhos descalços,
Seu vestidinho roto em vários pedaços.
Pois, mesmo assim, todas as moedas do seu dia
Ela gastara para trazer-me alegria.
Então colhi a menininha nos meus braços
E vi que os meus problemas todos... eram falsos!

Tudo mudou, naquele dia, para mim,
E uma criança evitou meu triste fim.
Hoje eu sou muito feliz, estou casado,
Duas mulheres fabulosas ao meu lado.
Reconstruí a minha vida afetiva
E a menininha... é nossa filha adotiva!
ONOFRE E O VEGETARIANO   
 MILTON  MACIEL   

Pues nem le conto, vivente! O Onofre andava abichornado pelos canto,  más atropelado que cusco em procissão, más perdido que cego em tiroteio. Eu é que tirei ele dessa situação. Encontrei o índio velho no bolicho do Ademar faz dois dia e ele tava mesmo incomodado. Nem bem me viu, e antes mesmo que eu pudesse pedi uma canha, o turuna veio pra mim com essa pergunta isquisita:

 - Buenas, tchê! Me responde uma cosa: é verdade que existe vegetariano?

- Buenas. Que existe o que?!...

- Vegetariano.

- Mas bá, tchê! Que que é isso, esse nome más estranho? Vegeta... o que?

- Ta-ri-a-no! Vegetariano. Tá com cera nos ovido?

- Bueno, isso eu não ouvi nunca. Que que é essa cosa?

- Pues foi o Nicanor que me garantiu que existe. Más eu não acredito.

- E por quê?

- Bueno, ele veve pra cima e pra baxo, tu sabe como é. O índio velho não tem paradero, não isquenta banco, viaja más que tropero dos tempo antigo, dá más volta que bolacha em boca de velho desdentado. Más agora, quando ele me veio com essa do tal vegetariano, eu fiquei foi mui brabo com o desgraçado. Fiquei foi com vontade de le dá uns planchaço com o facão. Más ele me garantiu que viu gente assim numa das viage dele...

- E viage pra donde?

 - Pues foi lá pras estranja, prum lugar longe demás, um país de nome Curitiba, deve ficar a miles e miles de léguas daqui da frontera, de Santana do Livramento.

- Curitiba? Nunca ouvi falá. Vai vê nem existe, é só invenção desse farolero, tá só fazendo farol.

- Bueno, olha que tu pode tá com a razão. Esse Nicanor é mesmo mui farolero, veve contando umas história mui sem pé nem cabeça, a maior parte deve sê mesmo mentira. Foi como eu respondi pra ele:

- Ah, pára Nicanor! Tu ta atochando, contando vantage. Más nunca que um índio assim pode de existí!

E o Onofre continuou, fulo de raiva:

- Mas ele me garantiu, me jurô pelo que hay de más sagrado e no fim casamo uma pelega de mil numa aposta. Ele diz que existe, eu digo que não existe, ele diz que prova, eu digo que não prova, que é mentira dele. É por isso que to perguntando pra todo mundo que vejo, se eles acredita que existe o tal de vegetariano.

- Mas cumpadre, me diga o que é esse tal de bicho isquisito, com esse nome de xarope pra tosse.

- Bueno, agora tu é que não vai acreditá. Sabe o que o cabortero do Nicanor disse que é o tal de vegetariano?

- Desembucha.

- Pues é um índio isquisito que não come carne nunca! E não come carne porque não qué!

- Ah, más manda esse falsero contá otra! Más é claro que não pode tê home assim. Imagina, não comê carne porque não qué! É atochada dele, pode tê certeza.

- Pues não lhe disse! É claro que o patife tá mentindo. Diz que o tal do isquisito não come carne porque não qué, tá sentindo o cheirinho da costela na brasa e nem enche a boca de água.  Não fica com vontade de trinchá os dente numa chuleta, nuns miúdo de boi. Más diz que nem churrasco de ovelha o vivente come, por aí tu já vê.

- Barbaridade!

- Agora olha o pior: o índio não come carne porque não qué, não é que não possa comprá um bom quarto pra assá,  uma costela gorda pra fazê no fogo de chão. Pode comprá, tem a plata, mas não compra porque não qué!

- Mas entonces o loco não come otras carne, uma galinha que seja, cosa más sem graça, o então um tatu mulita o uma perdiz do banhado?

- Pues que nada! Diz que não come nada que seja de carne, nem um mondongo. Nem mesmo pexe, cosa más sem graça também.

- Que não come o que! Não existe! O então, se o Nicanor acha que viu, o índio tava era tomando o pelo dele, disse que não comia más foi comê iscondido.

- Bueno, quero vê é ele prová essa barbaridade. Não prova!

- Não prova!

- Pues não hay esse tipo de gente aqui em Santana. Nem em Dom Pedrito, nem em Bagé, que conheço algo das terra de fora aqui no Brasil. Também a castelhanada não tem desse pessoal. Nem em Rivera, nem em Salto, nem em Mata Ojo Chico, que é o que conheço do Uruguai, não hay gente estranha assim. E sabe o Juan Pedro, o esquilador, aquele de Tacuarembó, que é uruguaio? Pues também ele nunca ouviu falá de vegetariano no Uruguai.

- Entonces le garanto também eu, cumpadre. Sossega. Não hay vegetariano!

- Bueno, tu me convenceu. Não hay! E vamo tomá uma canha pra isquecê essa bobage. Como vai a cumadre?    (MM)

segunda-feira, 17 de junho de 2013

A  SENTINELA DO ONOFRE 
MILTON  MACIEL 

Bueno, esta aconteceu quando correu a notícia que o Onofre tinha morrido. Todo mundo um dia bate com as dez. O Onofre bateu com as duas – as duas guampa no chão! Falseô o pé numa escadita de nada, foi ajudá a pegá um rolo de fumo na pratelera de riba, no bolicho do Clemente, e paft! Lá se veio o índio velho, com todo aquele tamanho e peso e estatelou-se no chão. De cabeça! Diz que fez um barulho de porongo rachando tão forte que assustô os vivente tudo que tava por lá charlando e tomando canha. Mas nunca que ele acordô mais!

Bueno, por estas banda não tem médico, tu sabe, que dirá hospital! Mandaram chamá Siá Balbina, benzedera respeitada, uma tripa coalhera velha de quase cem ano, prá benzê e vê se dava pra salvá o home. Mas Siá Balbina, nem bem botô a mão na testa do Onofre, garantiu, com toda a sua autoridade, maior que a de qualqué dotorzinho da cidade: Tá morto, foi acertá as conta com o Patrão Velho lá de Cima; Pode velá e enterrá!

Entonces levaram o Onofre pra casa mesmo e deitaram o índio velho nuns pelego no meio do galpão. É que do jeito que o home era conhecido e relacionado, ia aparecê miles de gentes pra assuntá a sentinela, tomá umas canha, contá causo, mateá e comê uma boa costela. Nunca que o Onofre ia querê que no seu velório faltasse boa carne, bom chimarrão e muita canha!

Tanta gente veio que a viúva até se animô: mandô o Terêncio buscá a cordeona, o Ademar, o violão, e barbaridade! O vanerão correu solto até de madrugada, em honra do finado, que parecia más regalado que nunca, ali espalhado nos pelego, só ouvindo as vanera, as milonga, as ranchera. E, com certeza, arriscando um olho pra dentro das saia das china dançando, que ele podia enxergá lá do chão. Tu precisava vê a cara de feliz do índio velho. Oigalê, velório animado!

Quando se alembraram que tinha que enterrá o defunto, tão distraído tava todo mundo com o baile e com a charla, que o dia já tinha acabado há muito tempo. E a noite também. Não dava pra segui o enterro, já era mui de madrugada. E, pra maior dos pecado, desabô o maior temporal, horas e horas de chuva da grossa que era um causo mui sério.

Não dá, disseram uns, se abrí cova, enche de água na mesma hora, o finado não havéra de gostá, ia pensá que morreu afogadoNão dá, falaram outros, não se pode enterrá cristão em noite alta, vira boitatá! Não dá, disseram mais outros aindaaliás a maioria, que é pecado pará o baile agora que ta tão bom, o falecido não havéra de gostá.Concordaram todos.

Bueno, entonces seguiram com o baile e, como a toda hora chegava mais gente e as carreta com as guria e as china não pararam de cruzá pela portera a tarde toda, tiveram que tirá o Onofre do meio do galpão, que tava atrapalhando. E também que tava levando muita pisotada de bota e espora, que os índio já tava tudo mui mamado e dançava a  lo loco nomás, a toda hora eles tropicava e pisava em cima do defunto sem querê. Os mais borracho dançavam uns com os otro, crente que bailavam com mulher, achando que o poncho do otro vivente era o vestido da china. Por aí tu vê....

Aí não houve outro jeito, tiveram que jogá o Onofre do lado de fora, na chuva, pra mode ele não atapalhá o salão de baile – o galpão. Acomodaram o índio velho debaixo de uma carreta, no barro mesmo, que não valia a pena sujá os pelego. De manhã, antes de levá pra cova, jogava-se uns dois baldes d’água no bruto e pronto: lá ia s’imbora ele, limpito nomás, pra baixo dos sete palmo, todo feliz e orgulhoso da grandeza do seu velório.

Bueno, pensando bem, por que velório? Pois se não tinha vela nenhuma, nem gentes de rezas por ali, todo mundo mui animado bebendo, comendo e dançando. Tinha era um monte de lampeão a querosese e a única vela que acenderam, foi um toquinho pro Negrinho do Pastoreio, pra ele ajudá a achá a pá cavadera boa, pra hora de abri a cova, que  tava sumida. E claro que o Negrinho achô!

Mas aí aconteceu uma cosa que acabô com aquela alegria toda da morte do Onofre. Pois não é que o Terêncio, que o que tinha de bom gaitero tinha também de borracho, já tinha mamado uns dois litro de canha? Entonces teve uma hora que ele não agüentô más e desabô, com cordeona e tudo, no chão. Ainda tocô uma última marca deitado ali mesmo, mas depois se apagô. Dormiu que nem com um monte de pontapé nas costela acordava mais. Aí o Ademar largô o violão e foi vê se ainda podia corrê umas china, já que o ruim de sê tocador é que tu só pode ficá vendo os outro apertá as mulher e tu mesmo não pode fazê nada!

Entonces, como já devia sê pra lá de três da madrugada, o pessoal, sem a música pra dançá, acabô se desanimando e as canha foram fazendo mais efeito ainda, porque eles tava tudo de corpo quente e pararam de dançá. Não deu nem meia hora e todo mundo tava dormindo embolado por ali. A única coisa que lembraram foi que a viúva do Onofre deu uns grito com os home antes de dormí, que ela não queria sem-vergonhice na sentinela do marido, mandô os home desafastá das guria e das china. E eles que não se fresqueassem, que o Onofre na certa tava olhando tudo ali de riba. Bueno, deu certo, que os bagual e os maula se aquietaram e foram dormi mais pro canto dos arreio. As mulher se espalhô nos pelego do Onofre e nas carreta adonde vieram.

Entonces o dia amanheceu, mas nada do povo acordá cedo pra tocá o enterro do Onofre, que já devia de tá impaciente pra ir s’imbora pra nova morada lá em cima. Só lá pelas sete, com o sol já meio alto naquele verão, é que a indiada começô a levantá e a corrê pra trás dos tronco das árvore, pra descarrega as bexiga. As mulher, a viúva teve que levá pra perto de casa e elas formaram fila pra usá a casinha, cosa que muitas não agüentaram esperá e entonces se desapertaram por ali mesmo, no meio dos eucalipto.

Aí, é claro, o pessoal tava com fome e com sede, entonces botaram as chalera nas trempe de novo, pro chimarrão, fizeram fogo e já aproveitaram pra assá mais umas costela, que era aquilo o café da manhã naqueles tempo. Quando terminaram de mateá e trinchá os dente nas carne, era bem pra lá de nove e meia. Bueno, era hora de pegá o Onofre e levá pro campo em frente ao potrero, que ali é que iam fazê a cova do bruto. Mas o home tava sujo barbaridade, era um barro só, que nem dava pra vê o rosto debaixo de tanta lama. O bueno é que, ao menos, tinha parado de chovê.

O Aldrovando pegô dois balde grande e foi pro poço, puxá água pra lavá o defunto. Ô, água más fria aquela, tchê! Em pleno verão, parecia gelo. Coitado do Onofre, ia ficá incomodado de levá aquela água gelada pelas fuça. Mas não tinha otro remédio. O Gaudêncio veio ajudá e jogô o primero balde no defunto, depois de puxá ele pelas perna de debaixo da carreta O barro respingô pra tudo que é lado, a barba e a cara do Onofre ficô quase limpa, mas sujô uma barbaridade de gente que tava assuntando a lavação ao redor.

Aí o Aldrovando se achegô e falô: Desculpe, meu padrinho, mas é por boa causa. E jogô o outro balde de água gelada. Pra quê!

Pois nessa hora o Onofre deu um pulo, incomodado com a água fria, pos-se de pé na mesma hora e gritô um monte de palavrão. Cuepucha, que foi só paisano espirrando pra tudo quanto é lado!!!

Uns deitaram a corrê pro potrero, pegaram os cavalo sem arreio, pularam em pelo mesmo e saíram a galope berrando com as montaria, tudo trocada, não importava quem era o dono do cavalo. As mulher que estava por perto nem fugiram. Umas quantas desmaiaram na mesma hora, as outra tão ocupadas estavam em gritá, que não pararam mais de fazê isso, até que o Aldrovando, quase ensurdecido, sacô do revólver e deu seis tiro pro ar.  

Funcionô, que o cagaço foi maior e a mulherada parô de berrá! E os guasca que não tinha fugido ainda, pararam pra olhá o que era o tiroteio. E foi aí que o Aldrovando botô as cosa no lugar:

– Seus burro, suas égua, vancês não vê que o padrinho não morreu?! Que ta vivinho da silva aqui na nossa frente!

– Que eu não MORRÍ?! Mas que barbaridade cabeluda é essa, compadre? Me explica o que faz todo esse povo todo aqui na estância, numa hora dessas da manhã.

Compadre Gaudêncio, feliz da vida, correu a abraçá compadre Onofre e começou a contar o que tinha acontecido. O Onofre mal que acreditava.

– Sim senhor, iam me enterrá vivo, que barbaridade! Então eu dei uma chifrada no chão lá no Clemente, apaguei e vocês já acharam que eu tava morto, seus maula!

– Foi Siá Balbina, padrinho. Foi ela.

Mas nessa hora a gritaria recomeçô, que agora era a viúva que tava chegando, foram contá a novidade pra ela em casa, que ela tava se emperequetando toda pro enterro e tentando lembrá como é que se fazia as choradera e os grito na hora das pá de terra. Quando chegô e viu que o Onofre tava vivo, ela soltô as gritaria da despedida mesmo, que era o que ela tinha ensaiado.Se agarrô no marido e fez um tal berrero que o Onofre perdeu a paciência e deu-le um pisão com toda a força com o tacão da bota, enlameando todo o chinelo novo e amassando o pé da mulher. A viúva, qué dizê, a mulher do Onofre, deu um baita dum grito de dor e parô na mesma hora a ladainha.

– Caturrita! – ainda rosnou o Onofre entre os dentes.

Mas foi aí que ele se deu conta de toda a barbaridade, da cosa más estranha que tinha se passado com ele. E alegrou-se! Mandô acendê os fogo tudo de novo, que o gaitero tocasse (o do violão, nessa hora, tava na casinha), mando buscá más carne pro churrasco e más canha e aí foi o Onofre que mateô, charlô, churrasqueô e dançô o resto da manhã e a tarde intera com as china e com as guria. Tinha que festejá! E como! Pois se estivera a ponto de ser enterrado vivo...

domingo, 16 de junho de 2013

AURÉLIO NÃO TEM BUCETA (Que só ignorante pensa que é palavrão!)
MILTON  MACIEL

Que Aurélio não tenha buceta pode parecer óbvio, pensarão muitos, por tratar-se, evidentemente de um homem. Mas não é a qualquer Aurélio que quero me referir aqui. É ao Buarque de Hollanda, o Pai dos Burros, o DICIONÁRIO Aurélio. Esse Aurélio não tem  buceta porque a grafia correta, em idioma português, é bOceta – com O.

Nós é que temos o costume de, ao falarmos, trocar muitas vezes o o pelo u, mormente se o coitado do o é a última letra: ensino vira ensinu, caderno vira cadernu, e assim por diante. Da mesma forma, bochecha vira buchecha, boceta vira buceta e por aí vai. Logar virou oficialmente lugar, inclusive. Com o tempo, o mesmo vai acontecer com a dita cuja.

Então fica comprovada minha primeira afirmação: Aurélio não tem buceta!

Vamos agora à segunda: Buceta não é palavrão; Aliás, também não é nome feio. Senão, vejamos:

Para mim palavrão e anticonstitucionalissimamente, é oftalmotorrinolaringologista ou, pior ainda, a maior de todas as palavras registradas em dicionário de português (Houaiss) até hoje, a maior palavra de nosso idioma, um termo técnico com 46 letras, que descreve o portador de um tipo de silicose: 

pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico.

Pois o pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico é um coitado que desenvolveu uma silicose por inalar repetidamente fumaça com cinzas de vulcão. Vai ver cansou de cheirar pó, não fazia mais efeito.

Ora, convenhamos que pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico é mesmo um palavrão! Lembra até um daqueles enormes vocábulos que, em todo o planeta Terra, só podem existir em idioma alemão – vocábulos que, para serem pronunciados até o fim, exigem que o pobre mortal tenha que parar para tomar fôlego pelo menos umas quatro vezes, se não quiser cair duro, roxo, cianótico ou, quiçá, até mesmo para-vulcanoconiótico.

Boceta é palavrinha, é pequena e é delicada, com 6 letrinhas, não tem a nada a ver com o gigantismo de um oftalmotorrinolaringologista, de pantagruélicas 28 letras, um inegável, um ineludível palavrão.

Por outro lado, o machismo dominante de nossa cultura pespegou-nos a peça de que boceta é nome feio. Discordo. Para mim nome feio é Valdicrêisson, Anderssocreitão, Um-Dois-Três-de-Oliveira-Quatro, Hermenengarda Filisbinda, até mesmo o inocente nissei T. Oku Kaganawara, que, aliás, fazendo-nos lembrar como tudo é relativo, é um nome lindo lá no Japão.

Já boceta é linda.  Tanto como inocente palavra, não afetada pelos machismos e falsos-moralismos da cultura hipócrita, quanto na sua estética exterior da parte física feminina, mormente quando envolvida por seus naturais pelos, capazes de esconder eventuais excessos. Aí ela é o Delta de Vênus e seu inconfundível formato de escuro triângulo tem inspirado os artistas pelos séculos sem fim.

Ora, é fundamento da Filosofia, na Estética, que “belo é aquilo que se deseja”. Pois se mais de 3 em cada 4 homens e mais de 1 em cada 4 mulheres passam a vida inteira atrás de um (ou vários!) Deltas de Vênus, como conceber que ele não seja lindo, se é assim tão desejado?

Boceta etimologicamente parece provir de bouceta, uma pequena bolsa ou caixa. Ou seja, é uma bolsinha. Em Portugal ainda é comum que se use a expressão Caixa de Pandora e, mais raramente, Boceta de Pandora, para designar o recipiente do qual Pandora deixou escapar todos os males que afligem a humanidade.

O mito grego de Pandora tem paralelo no de Eva e a Serpente, de origem sumeriana. Em ambos o mesmo nojento machismo dos religiosos da Antiguidade (em nada diferente do dos nojentos fanáticos religiosos de hoje) dá um jeito de colocar a culpa na mulher por todos os males humanos.

Quando Zeus (Júpiter, para os usurpadores romanos) empreendeu sua longa guerra contra seu pai Kronos (Saturno, para os romanos usurpadores), todos os Titãs, da mesma estirpe de Kronos, aliaram-se a este. Com exceção de um só: o Titã Prometeu. Ele preferiu trair sua estirpe e manter-se aliado de Zeus, porque tinha o dom da profecia, sabia ver o futuro. E, nesse futuro, ele viu Zeus vencedor.

Quando isso de fato se concretizou, Zeus resolveu recompensar o aliado, dizendo-lhe para pedir o que bem entendesse. Ora, Prometeu o que fez, pegando o novel chefe dos deuses olímpicos pela palavra, foi pedir a Zeus que livrasse de punição a seu irmão Titã, Epimeteu. Zeus havia condenado todos os Titãs, exceto Kronos e Rea, seus pais, e Prometeu, ao banimento para o Tártaro, nas entranhas da Terra (Gaia). Apanhado pela palavra, Zeus ficou furioso, pois queria de toda forma se vingar de Epimeteu.

Contudo, já que era forçado a perdoá-lo, arranjou outra forma de puni-lo. A forma foi ardilosa e... belíssima. Pois foi então criada uma mulher “artificial’ (o mito não é muito claro quanto a este artificialismo, posto que Pandora era uma perfeita mulher, uma obra prima de Hefesto). Essa mulher, de incrível beleza, foi oferecida por Zeus a Epimeteu como esposa, como prova de que não havia mais ressentimentos.

Só que Pandora chegou trazendo consigo uma boceta (é a outra!). Essa boceta de Pandora era um misterioso repositório, dentro do qual havia algo guardado que NUNCA poderia ser revelado. Ou seja, Pandora JAMAIS poderia abrir a boceta (é a outra!). O mito aproveita para aludir à proverbial curiosidade humana, é claro que a travestindo de curiosidade feminina. E o que acontece é que Pandora não resiste e, um dia, bem escondida, ela abre uma pontinha de sua boceta.

E aí acontece a desgraça, tal qual planejada por Zeus: de dentro da bolsa, (ou caixinha, ou vaso, conforme a versão) saem todos os males que vão afligir a humanidade: a intemperança, a ambição, a cobiça, os ciúmes, a velhice e a doença. Pandora fecha a boceta rapidamente e lá ainda fica a Esperança: a última que sai, por isso a última que morre.

Ou seja, deram um jeito de botar todas as culpas numa boceta (em duas, para sermos mais exatos) pelos males dos homens. Da mesma forma culparam a coitada da Eva de ser uma tapada, que é enganada pela Serpente (Lilith), cedendo – também por causa da curiosidade. Aí ela tentou o homem e o desgraçou, resultando daí a expulsão do Paraíso. Ou seja, a boceta é culpado pelos males dos paus!

Ah, sim podemos dizer pau, sem problemas. Afinal, isso é coisa de homem, é coisa de macho. Não é palavrão! Começa que tem só 3 letras. Depois, pau é pau; é pedaço de madeira, antes de mais nada. Nem pode ser arrolado como nome feio, veja só!

Então o establishment machista fixou a coisa assim: pau pode, boceta não pode. Pau não é nome feio, boceta é nome feio. Pau não é palavrão, boceta é palavrão. E o pior é que fizeram as mulheres acreditar nisso! Ou seja, os cretinos machistas, que foram os que impuseram isso, vivem correndo atrás delas, quando não vai por bem vai por mal, e elas têm que acreditar que a coisa é feia, que é palavrão, que é inferior. Pois o Freud não inventou até a tal da inveja do pau, veja se pode! E as histéricas, lembram? Hister = útero. Psicologia machista, um portento do início do século passado. Que depois evoluiu, é justo reconhecer.

Então está na hora de encerrar este texto. O Aurélio não tem, mas ainda vai ter, a língua evolui. Não é palavrão, nem é nome feio. Na verdade, é Delta de Vênus, tem a beleza do desejado, fora a beleza anatômica em si. Então que as mulheres tenham orgulho de suas bocetas e parem de falar aquilo alilá em baixoxana, xoxota, periquita, pixirica e outros substitutivos que são, de um modo geral, palavras menos bonitas e soam mais como desculpas por serem portadoras de uma.

E não precisa falar vulva. É um nome mais sem graça ainda. Boceta tem vulva e vagina, é completa e é digna. E é bonita, como uma criação perfeita de Deus que é. Chega de hipocrisia! Fim de papo!

sexta-feira, 14 de junho de 2013

ESTRANHOS OS PERCURSOS DESTA VIDA DESCONTENTE 
MILTON  MACIEL 

Estranhos os percursos desta vida descontente
Eivados dos percalços de um tumulto ababelado.
São ínvios os caminhos que transitam pelo fado
Dos passos, perlustrando confusões em nossa mente. 

Em vão quer nosso espírito encontrar decriptado,
O enigma que a vida nos propõe diuturnamente.
O corpo das doutrinas está sempre decumbente,
Não nos explica nada por inútil, derreado.

E assim o ser se arrasta pela senda inutilmente,
Transido, entristecido, pelos fados alquebrado,
Perdida a esperança num futuro que é inclemente.

Porém mesmo que o fado seja tê-lo derrotado
Lhe resta o ser estóico, ter a fleuma persistente
Dos que tombam de pé, ante um destino amaldiçoado.
DE ARMAS E AVES. Ou: As Surpresas da vida
MILTON MACIEL  

Lentamente, o homem avançava sob as copas pouco densas, entre os troncos retorcidos da mata. Havia horas que fazia isso, totalmente imerso no sombrio de seus pensamentos. Andava a esmo, sem direção, sabendo apenas que se afastava mais e mais da estrada onde havia deixado o carro. Não tinha rumo algum a seguir, para ele estava tudo acabado
.
Levou mais uma vez a mão ao bolso do casaco. Ali reconheceu, metálico e frio, o corpo da arma que iria tirar sua vida. No carro havia deixado a carta. Pouco havia o que explicar. Na falta de alguém de seu a quem dirigi-la, no envelope escrevera apenas: Para a Polícia. Ao menos isso fazia: não queria que perdessem tempo investigando a causa de sua morte, que ficassem procurando culpados.

Talvez não faltasse nem uma hora para o sol se por, o céu já começava a mostrar os primeiros tons de laranja. Na mata, caiam mais fortes as sombras. Mais um pouco e seria o fim de tudo aquilo, o fim do seu cansaço. Decidira que daria o tiro fatal quando o sol se pusesse. Também não se importava com o que pudesse vir depois. Por mais que se esforçasse, nunca chegara à conclusão se havia vida depois da morte ou não. Agora isso não tinha mais importância. Algo houvesse, descobriria dali a pouco. Nada houvesse, tanto melhor, acabava-se tudo definitivamente. Pena que não encontraria a paz que almejava, antes disso, anula-se a consciência.

Estava imerso nesse pensamento quando algo lá em cima estranhamente distraiu sua atenção. Havia um ninho de pássaro uns dois metros acima de sua cabeça e ao redor dele rodopiava aflita uma ave bem pequena, piando alto. Resmungou: “Sai pra lá, sua idiota,você acha que, numa hora como esta, eu vou querer atacar os seus filhotes?” Deu alguns passos para trás, para afastar-se da árvore e tranquilizar a provável mãe. Mas notou que isso não acontecia. Ao contrário, a avezinha mostrou mais e mais aflição, seu chilrear, entrecortado por piados altos e estridentes, tinha agora como fundo um farfalhar de asas muito mais forte.

Olhando mais para o alto ainda, ele divisou de repente a causa daquela agitação toda. Um pequeno gavião pairava no ar, pouco acima da copa da árvore com o ninho. Certamente a avezinha fazia de tudo para tentar assustar o predador. Droga de vida, pensou o homem.Sempre injusta, sempre cruel. Essa coitada não tem a menor chance. Em minutos ela e seus filhotes vão ser despedaçados pelo bico feroz do gavião. Vão morrer, com eu vou morrer. Que remédio, é a vida! A tal de vida, a idiotice absurdal chamada existência.

O gavião arremeteu em seu primeiro ataque. Certeiro surgiu entre as folhas mais altas e seu impacto se fez sobre o corpo da avezinha, que voou para o alto, tentando defender o ninho. Penas caíram sobre o homem, que ficou profundamente consternado com o que via. Por alguma razão, contudo, o ataque não foi bem sucedido. A avezinha conseguiu aprumar-se de novo e voltou a voar em círculos sobre o ninho, piando em desespero. O gavião tornou a pairar acima da árvore, preparando o novo golpe.

Aí tudo aconteceu de uma forma totalmente inesperada para o homem. Quando deu por si, estava com a arma na mão, apontada para o alto, para aquele vulto escuro quase parado acima da copa. Alvo fácil, o homem deu no gatilho várias vezes, até que conseguiu acertar a ave de rapina, que caiu estrebuchando no chão à sua frente.
Tá morto, desgraçado! Se tiver vida depois, vai na frente, coisa ruim, vai abrindo asportas do inferno pra mim! Soltou um riso sarcástico, encostou o cano, ainda quente, na têmpora e apertou o gatilho. Que por-do-sol, que nada, é agora mesmo!

Clic! Fui tudo o que se ouviu na mata. Um pequeno clique. Todas as balas tinham sido disparadas contra o gavião. O homem sentou no chão desarvorado, contemplando o revólver descarregado em sua mão. Que idiota! Por que fizera aquilo? Que coisa mais estúpida, descarregar todo o tambor da arma em cima de um gavião e ficar sem uma única bala para enfiar em sua própria cabeça e dar fim a toda a tragicomédia que havia sido sua vida! Imbecil!

Mas nesse momento algo ainda mais incrível aconteceu. A avezinha, que havia sumido apavorada com o barulho dos estampidos, voltou rapidamente ao ninho. Agora ela chilreava mansamente para suas crias, que já não piavam assustadas. Depois de alguns instantes, a pequena ave voou para baixo, circulou o corpo imóvel do gavião e – algo totalmente inexplicável – passou a bater asas bem próxima à cabeça do homem. Aproximou-se o mais que pôde, sempre com um suave chilrear e, finalmente, pousou no chão a poucos centímetros dele, sem mostrar qualquer medo. Depois, saltou em sua perna e abriu um trinado diferente, animado, tranqüilo.

Que é isso, companheira? Não é possível que você possa entender que eu salvei vocês com o meu pau de fogo. Ou será? 

Seria uma resposta? Pois a ave voou até seu braço e ficou ali mais um tempo, olhando-o calmamente nos olhos. Depois voou de novo, circulou sua cabeça mais algumas vezes e voltou para o ninho, calando-se.

O homem ficou um longo tempo imóvel, sentado na chão, pensando em tudo aquilo. Ele tinha salvado aquela ave e seu filhotes, mas, por mais estapafúrdio que parecesse, aquela ave e o gavião tinham também salvado a vida dele. Afinal, ao menos por hoje, o plano de suicídio estava abortado. 

Então, subitamente, ele levantou com um salto, ergueu o braço e arremessou o revólver para bem longe, com toda a força, dentro da mata. Já estava escuro agora, silêncio total no ninho acima de sua cabeça. O homem voltou-se para o que sabia ser a direção da fímbria da mata e começou a caminhar resoluto. Ia tentar tudo de novo. Mas, não mais o suicídio. Pegaria o carro, sairia daquele maldito lugar para sempre e tentaria recomeçar a vida em outra região. Quando chegou ao limiar da estrada e viu seu carro, podia jurar que estava ouvindo de novo o canto feliz da avezinha. Seria possível?