terça-feira, 30 de janeiro de 2024

NÃO MATARÁS

Ou: Se arrependimento matasse...

MILTON MACIEL

Fomos um trio adolescente “em cascata”: eu amava Melissa, Melissa amava Silvério e Silvério... também. Quer dizer, Silvério amava Silvério. Simples assim.

Esse interesse amoroso mantinha-nos unidos: faculdade – que nenhum de nós concluiu – festas, shows de rock, shoppings, praia. Tudo ali na nossa cidade, Sorocaba. Eu era caxias, estudioso e atleta (karatê). Melissa era linda, doce e artística (teatro, dança). E Silvério era...

Malandro. Nem nem. Nem estudava, nem trabalhava, mas aparecia sempre com uma grana boa, bancava muitas das despesas da gente nos restaurantes e boates. Essa grana não vinha da família dele, que não tinha onde cair morta. Como a minha e a da Melissa, aliás.

Melissa e eu passamos para o segundo ano; Silvério bombou no primeiro, é lógico. E, pouco depois, aconteceu a tragédia: quando Melissa apareceu grávida, Silvério se mandou, desapareceu. Ficou para mim o papel de consolar a outrora donzela, agora seduzida e abandonada, clássico papel dos folhetins romanescos.

Neles um pai severo expulsa a desavergonhada de casa e ela vai para o convento ou cai na vida, vai se virar na zona. Mas os tempos eram outros, felizmente; não existia pai severo, aliás nem pai existia mais, calcinado a cinzas de cremação quando Melissa tinha só 10 anos.

O problema era o sofrimento atroz da criaturinha. De alegre e de bem com a vida, apaixonada e em cio permanente, reduzida agora à ruína lacrimejante que eu via desagregar-se mais e mais, dia após dia. Pior: havia uma criança em jogo.

Nem ela, nem sua mãe, nem mesmo eu, mencionamos uma única vez a palavra aborto. Melissa sofria, definhava a olhos vistos, o tempo passava. E o feto crescia. Passei a temer também pela saúde do bebê em gestação, não só pela da mãe dele.

 

Meses passados, barriga avultando, uma ideia foi se formando em minha cabeça: eu amava demais aquela garota e a cafajestagem do Silvério tinha deixado o campo aberto para mim. Achei impossível que ela não tivesse se desiludido de vez com o ordinário. Então tive coragem e fiz minha proposta:

– Eu amo você demais, sempre amei. Caso com você, registro seu filho como meu, prometo lhe dar uma vida boa, fazer você esquecer toda esta desgraça que lhe aconteceu. 

A mãe dela ficou encantada com minha atitude e pressionou a filha. Que pensasse no futuro da criança, um filho da mãe... de mãe solteira. “O que não vão falar os outros”, clássica visão das mães antigas.

Melissa acabou aceitando. E eu deixando a faculdade, agora tinha que trabalhar. 

Eu, Tiago, o “bom rapaz” do pedaço, fui a emenda, a solução. Saiu o casamento band-aid, suturando as feridas por fora. Só no civil, é claro, com pouquíssimas pessoas numa discreta comemoração em casa. Sim, eu tinha acabado de alugar um apartamento pequeno para nós.

Aí o Bernardo nasceu e tudo mudou. Foi só festa, uma festa permanente para mim e para Melissa. Entreguei a ela, coração pulsando, a certidão de nascimento do molequinho, filho natural dela e meu. Ela chorou agradecida, me beijou com uma paixão que nunca tinha demonstrado. Tudo mudou.

E finalmente fomos felizes os dois. Seguiram-se dois anos de encantamento, minha paixão por ela mais viva do que nunca, ela agora parecendo gostar mesmo de mim.

Até que aconteceu aquilo, poucos meses depois do aniversário de dois anos do meu molequinho, a luz da minha vida, que eu chamava de Dado. E de Dadinho.

Apregoavam na cidade, aos quatro ventos, o show de uma banda de rock nova, que estava fazendo sucesso e viajando pelo interior. O vocalista, um cabeludo bonitão de nome Tony Love, era ninguém menos que o... Silvério!

E agora mais essa! Aquele patife de repente virava cantor – consegui ver uma música deles no Youtube, o cara cantava mal pra caramba, mas gritava e representava como poucos, fazia uma dança sexy de peito nu, deixava as meninas enlouquecidas. Nisso ele sempre foi bom, sempre fez das mulheres gato e sapato, Melissa foi só mais uma. Continuava o mesmo. Só que agora era o Tony Love.

Show marcado para sexta à noite. Quarta, Melissa chorando sem parar, dizendo para mim que ainda amava aquele homem, sempre o amara desde criança, precisava vê-lo uma vez mais, precisava mostrar-lhe o filho dele.

O filho dele era o meu molequinho, o meu Dado, a luz da minha vida, a quem eu registrara e criava como meu filho do coração. Demais pra mim!

Desilusão total com Melissa. Mas isso eu podia aguentar. Afinal, eu tinha passado tantos anos de dor de corno, vendo-a a rastejar para aquele patife do agora Tony Love. Love? Amor por quem? Só se fosse por ele mesmo.

Mas, que ele soubesse que era pai do meu Dado... Ah, isso era inadmissível. Era claro que eu não podia fazer nada para impedir Melissa de rastejar de novo aos pés dele. Mas eu podia impedir que ele pudesse escutar a verdade contada por ela.

Foi assim que decidi que ele, simplesmente, não poderia escutar. Nada. Nunca mais escutar nada. Para o que eu precisaria impedi-lo também de respirar. Para sempre.

Tomei a decisão.

O show seria num velho prédio que já fora teatro, adaptado precariamente para shows e bailes. Uma parte ainda meio em obras. Fácil demais de entrar e sair dele pelos fundos. Fiz isso mais de uma vez nos dois dias seguintes. Ninguém me viu. Estudei bem o andar de cima, onde ficaria o camarim improvisado do vocalista.

Na sexta eu esperaria por ele ali, escondido no escuro. E o induziria a uma falta de ar permanente, somente com o uso das minhas mãos e das minhas técnicas de karatê e Krav Magá. Pra que eu ia precisar de armas? Só pra deixar mais pistas e fazer um serviço sujo, manchando tudo de vermelho? Sangue, que nojo!

Tão mais fácil quebrar um pescoço, um segundo apenas, sem sinais externos, sem sangramentos...

Sem dor também, o que era a parte chata da coisa, o desgraçado nem ia ter tempo de entender que estava morrendo. Paciência, não se pode ter tudo o que se quer.

E tudo correu certo no meu planejamento. Inventei pra Melissa que eu ia embora pra São Paulo, que não aguentava aquela situação toda, me despedi do meu Dado, fui sozinho para a rodoviária de taxi.

Perdi o ônibus, naturalmente. Era a madrugada de sexta. Fiz um tempo nas redondezas, depois fui para o prédio do velho teatro e entrei antes das oito pela porta da obra, nos fundos. Não tinha ninguém por lá.

Aliás, não teve o dia inteiro, a obra estava paralisada há tempos. Passei o dia todo ali, sem comer nada, bebendo água no banheiro de cima, aquele que ninguém usava. Aproveitei para revisar vezes sem fim o meu plano de ataque.

O maldito entrava no camarim, preparava sua maquiagem pesada de metaleiro. Aí eu aparecia do nada, partindo rápido pra cima daquele pescoço mole. Ploct! Ele talvez nem tivesse tempo de me reconhecer.  E eu ainda tinha o gostinho de acabar com o show dos caras: quando viessem procurar o vocalista atrasado...

Show marcado para as 11 da noite. O Tony Love chegou atrasado de saída, o filho da puta. Entrou no camarim às onze e meia, manguaçado, bêbado, de olho arregalado como quem cheirou todas as carreiras. Melhor que a encomenda!

Mas aí entrou água no meu plano. No segundo seguinte, o cara puxa pra dentro do camarim uma menininha bem nova, carinha de 13 a 15 anos. Uma dessas fãs maluquetes, com certeza. Ele fechou aporta e se atracou com ela. Depois de uns momentos de amasso, quando ele quis terminar o serviço, a garota entrou em pânico e começou a se debater, gritando que não.

Pois o bandido embolachou a menina, encheu a cara dela de tapas e fechou-lhe a boca com a mão. Eu ia presenciar um estupro! Não, aquilo era demais pra mim, por mais que atrapalhasse meu plano tão bem feito. Eu ia ter que evitar o estupro. E, com a raiva acumulada de tantos anos, mais a raiva ante a covardia do desgraçado, ia matar o cara com uma testemunha vendo tudo.

Que situação!... Um plano tão bem elaborado e tão bem cumprido e agora aparecia aquela criança infeliz para atrapalhar tudo. Bem, eu não tinha alternativa, tinha que agir.

Pulei rápido dentro do camarim e dei uma única pancada de cutelo na nuca do estuprador. O Tony Love desabou como um saco de batata, totalmente inconsciente. A garotinha parou de gritar, olhou bem na minha cara, compôs sua roupa, balbuciou um “Obrigada, Deus lhe pague” no meio do choro e saiu correndo.

E eu fiquei ali, sem saber o que fazer. Se matasse o mequetrefe, ela certamente conseguiria me descrever para a polícia. Será que o faria? Resolvi arriscar assim mesmo. Pior era deixar aquele maldito saber que o meu Dado era filho dele. Nada podia ser pior do que isso. Eu tinha que seguir em frente e acabar com tudo aquilo.

Ergui o cara desacordado do chão, sentei-o apoiado à parede e peguei aquele pescoço nojento. Aí lembrei que aquela boca, aquelas mãos, aquele corpo, tinham se servido infindas vezes da minha Melissa. E que ela gostava... O ódio aumentou ainda mais.

Coloquei a mão na nuca, os dedos na orelha esquerda, a outra mão no pescoço. Agora era só puxar pra cima e torcer. Pou! Quebrado...

Fiquei assim um tempo infinito. Um golpe de mestre de Krav Magá, perfeito. Um segundo, morte rápida, sem marcas, sem dor. 

O que faltava ainda? Caramba, o que estava me segurando? Aquele desgraçado podia acabar com a minha vida feliz, podia comer minha Melissa de novo, vai ver embuchava ela outra vez, fazia mais um filho e largava por aí, pra outro trouxa sustentar.

E eu não conseguia terminar o serviço... O cara continuava ali, desmaiado à minha disposição. E eu parado, congelado, pensando, pensando...

E acabei por chegar à conclusão inevitável:

Não, eu nunca poderia tirar uma vida humana, nunca poderia matar alguém, nem mesmo esse odioso indivíduo, agora reconhecidamente até mesmo um estuprador de criança.

Sim, essa era a terrível verdade: eu não podia matar o Silvério, aquele saco de esterco desacordado, com cheiro de álcool, com aquele pescoço ensebado pedindo pra ser quebrado... Não, não podia ser eu o seu executor. Maldição!

Então, quando ele começou a dar sinal de que iria despertar, eu simplesmente saí do camarim e fui embora do teatro. Uma sensação horrível de fracasso, de fraqueza, tomando conta de mim. O desgraçado estava livre...

 

Tão livre que, soube-o no dia seguinte, o show de rock aconteceu com duas horas de atraso e foi um sucesso.

Tão livre que, quando eu reapareci em casa no domingo, de regresso de minha “viagem” a São Paulo, tudo o que eu encontrei foi uma carta da Melissa. O abismo terminava de se abrir.

Não gosto de rememorar as palavras, pedia perdão muitas vezes, dizia que eu não merecia que ela fizesse aquilo, que eu fora tão bom para ela e para o seu filho. Mas ela não podia resistir, tinha fascínio, obsessão pelo “Tony” (chamava-o assim na carta!). Mas o pai verdadeiro era o Tony e ele tinha reconhecido e aceitado o filho! E confessado que a amava demais e que iria fazer de tudo para recompensá-la pelo abandono imerecido.

E eu? Eu merecia o abandono? Odiei Melissa pela primeira vez na vida e o urro que saiu da minha garganta era mesmo de um animal ferido: meu Dadinho me era roubado, brutalmente levado de minha vida para sempre.

Desabei. A vida acabou pra mim. Tudo o que eu queria era sumir daquele lugar, daquele apartamento que tinha sido o meu ninho de amor. Aceitei um emprego de motorista de caminhão; e a frota e a vida me arrastaram para o Nordeste do Brasil.

 

Os anos passaram, a ferida fechou sem sarar, acabei virando caminhoneiro sem querer e sem gostar. Mas qual a diferença? Eu não gostava de nada mesmo. Juntei dinheiro, consegui financiar e pagar um caminhão novo e segui andando por esse país.

Uma sombra, um homem sem raízes, uma interrogação sem resposta: o que seria do meu menininho? Com certeza já não lembrava de mim, chamava aquele desgraçado de pai...

Passaram-se sete anos, ele estaria agora com nove, quando um dia aquilo aconteceu, o impossível aconteceu.

Onze da noite parei num posto na Via Anhanguera, em São Paulo, para reabastecer e comer alguma coisa. No restaurante só havia um casal numa mesa ao fundo. A mulher de frente para mim era já velhusca, o homem estava de costas. Mesmo assim senti um estremecimento e procurei uma mesa próxima à deles. E, de propósito, sentei-me de costas para as costas do homem, mas conseguindo ouvir tudo o que eles diziam. Por que razão, caramba, eu estava tomando aquela atitude tão estranha?

Pedi o comercial da casa e fiquei esperando. E escutando a discussão do casal. Que era feia!

– Você é um desgraçado mesmo. Perdi minha melhor mulher por sua causa. Preciso duas novas em troca da Rose.

– Como eu podia saber que ela ia morrer, porra! A overdose foi coisa dela.

– E a overdose de pancada foi coisa sua, seu covarde. Ela chorou, bebeu e cheirou durante um dia inteiro, depois que você deu mais aquela surra nela e foi embora.

– Ela encheu meu saco querendo saber do moleque, como sempre. E estava escondendo dinheiro da féria da semana no sutiã. Meu dinheiro!

– Seu dinheiro! Você é o gigolô mais desgraçado que eu já vi, depenava a coitada até à última, não tem limite a sua ambição. Você matou a sua galinha dos ovos de ouro. Sua e da minha casa também. Não se arranja uma Rose com facilidade, foi das melhores que eu já encontrei em toda minha vida de cafetina.

– Mulher minha tem que trabalhar duro, hoje já não tenho tantas nos puteiros bons, como o seu. Tenho duas na rua agora. A Rose era a que me dava mais grana mesmo. Essa desgraçada não tinha nada que morrer, porra.

–  Você era bruto demais com ela, seu monstro. E essa coisa de tirar o filho dela pra ela lhe dar toda a féria, isso foi demais pra coitada. Aquele garotinho era tudo pra ela. Onde está o menino?

– Deixei num orfanato em Campos faz uns dois anos. Nunca mais vi.

– Nem ela. O pior é que ela ainda era apaixonada por você quando chegou aqui. Ela me contou toda vida dela, disse que você embarrigou ela na faculdade e se mandou. Ela casou com um cara decente, um tal de Tiago, que assumiu o filho da barriga dela. E aí você aparece dois anos depois na vida dela, metido a roqueiro, e tira ela do marido. E pra quê? Pra acabar trazendo ela pro puteiro, tirar o filho dela e levar a criatura a beber e se drogar até morrer. Mesmo pra uma cabra velha como eu, você não presta mesmo.

A essa altura eu já estava tremendo inteiro. Aquele cara de costas pra mim era o próprio Silvério! O diabo em pessoa. E o que ele tinha feito para a Melissa e o meu Dadinho era mil vezes pior do que eu poderia ter alguma vez imaginado!...

Melissa estava morta, o Dado num orfanato... E o maldito ali, no bem bom, vivendo às custas da Melissa e de outras mulheres, que ele explorava como putas. Minha Mel... prostituída, drogada, morta de overdose 

E eu que não tinha tido coragem de matar aquele ordinário quando o pescoço imundo dele estava à minha disposição, para torcer que nem o de uma galinha!

O chão ainda dançava à minha frente quando me veio à mente a frase “Se arrependimento matasse”. Que irônico, agora o meu arrependimento era o de não ter matado aquele bandido. Se eu não tivesse vacilado com meus malditos pruridos tipo “Não matarás”, Melissa estaria viva, nunca teria sofrido os horrores da prostituição e da perda do filho, da saúde mental e da vida.

Se arrependimento matasse...

E concluí uma coisa nova: Sim, o arrependimento pode matar! Agora que Deus, ou o destino, ou o capeta, tanto faz, estavam me dando de novo a chance...

O arrependimento de não ter matado o Silvério levantou da mesa comigo. Calmamente, tecnicamente, levei minha mão à altura do pescoço do homem de costas. A outra pronta para envolver a nuca. A velha cafetina me olhou curiosa. Eu disse apenas uma frase. Ridícula:

– Com licença.

Girei e puxei para cima. O pescoço ensebado do Silvério estalou. Com nojo, larguei-o de cabeça sobre a mesa. Ele não soube do que morreu. E nem quem o matou. Falei para a mulher:

– Pode chamar a polícia. Não vou sair daqui.

Para minha surpresa, a mulher me respondeu fazendo uma pergunta:

– Como é o seu nome? Por acaso é...

– Tiago – respondi eu.

– Foi o que desconfiei. Reconheci pelas fotos da Rose. Sabe moço, isso tudo aqui parece coisa sobrenatural, esse encontro parece coisa do outro mundo. Você executou um bandido, tão bandido que até eu mesmo, uma madame velha, fiquei contente com a morte dele.

Sentei atônito ao lado da mulher, de frente para minha vítima. A cabeça deslocada dele estava dentro de um prato com resto de sopa, a barba rala respingada, olho entreaberto. Só senti nojo, mais nojo ainda. Não, não sentia nenhum arrependimento. Nenhum. Então a velha senhora falou mais uma vez:

– Ninguém viu o que se passou, moço. Só estamos nós aqui e o rapaz da cozinha, único que fica por aqui a uma hora destas, quase meia noite. E ele estava e está na cozinha, não viu nada, lhe garanto. Fique sossegado, eu não vou chamar a polícia, nem vou denunciar você. Vá-se embora daqui, moço, você tem um menininho pra resgatar de um orfanato em Campos, tomara que ainda seja tempo. Vá-se embora, pelo amor de Deus, não perca tempo!

– Mas o corpo... Vai complicar pra senhora.

– Não vai, não. Eles vão ver que eu não tenho nem essas mãos enormes, nem essa força, nem essa perícia de quem fez isso. E o homem que eu vou descrever pra eles... um japonês enorme, de cabelo oxigenado... – e a mulher soltou uma gargalhada alegre.

 

Dirigi como um autômato madrugada adentro, correndo no limite da prudência, até chegar, nove da manhã, em Campos de Goytacazes. Minha cabeça oscilava entre a ideia fixa de me entregar à polícia e a possibilidade de dar uma nova chance de vida ao meu menino, se o encontrasse.

Eu agora era um assassino. Mais dia, menos dia, eles podiam vir atrás de mim. Se eu já tivesse meu filho e eles me prendessem, que outro trauma violento para a criança não seria... Mas lembrei que, no Brasil, pouco mais de 10% dos crimes de morte são elucidados. E acelerei ainda mais.

No terceiro orfanato de Campos, a diretora me confirmou, vendo minha pasta de documentos, entre eles a certidão de casamento e a de nascimento do Dado, que havia, sim, um menino de 9 anos de nome Bernardo Assunção Silveira. Meu menino!

 

Ela, quase tão emocionada quanto eu, me levou a um pátio onde estavam uns cinquenta garotos. Eu percorria as faces de todos eles, tentando reconhecer num menino de nove anos a fisionomia daquele que eu perdera ainda quase um bebê, com apenas dois anos e pouco. Ele, certamente, não me reconheceria, teria crescido um tempo tendo aquele maldito bandido como seu pai.

Estava ainda paralisado por esses pensamentos quando um menino de cabelo castanho alourado, alto, espigado, gritou bem alto, do meio da turma de garotos:

– Pai!!! – e correu em minha direção. Tinha a mesma carinha suave de Melissa.

Eu caí de joelhos, entre incrédulo e agradecido, abri os braços e Dado se encaixou entre eles aos gritos de “Pai, meu pai!”. A diretora chorava compulsivamente.

Depois dos arroubos iniciais, ele correu para o alojamento e voltou com uma pequena sacola de pano. De lá ele tirou vários pertences infantis e uma fotografia amassada. Minha fotografia!

E aí ele contou que me reconheceu por causa da foto e da lembrança vaga que guardava de mim. Disse que sua mãe falava sempre de mim, que eu era o pai dele de verdade, mostrava fotos, falava que aquele outro era um homem mau que tinha raptado os dois, mãe e filho, para poder obrigá-la a trabalhar para ele, fazendo coisas que ela não queria fazer.

– O homem mau batia na gente, nela e em mim, eu tinha medo dele. Era um horror quando ele aparecia na nossa casa, onde eu vivia com minha mãe e um monte de tias legais, que me tratavam muito bem. Ele brigava com minha mãe, batia nela e ela depois bebia umas coisas ruins e cheirava um remédio, dizia que era pra sarar das feridas, pra ficar feliz de novo. Não ficava, ficava mal, cada vez mais triste.

Mas seu semblante entristecido se iluminou quando ele passou a contar:

– Um dia o homem mau me pegou e me trouxe para esta casa bendita, cheia de crianças. E eu, apesar da saudade da mãe, comecei a ser feliz de verdade. Aqui é muito bom, é alegre, eu estudo, brinco, jogo futebol, tenho amigos. Mas nunca mais vi minha mãe, algo aconteceu que ela nunca veio me ver. Tenho certeza que ela morreu, por isso nunca veio.

Ainda bem que ele tinha essa convicção, tornava mais fácil confirmar-lhe que estava certo. Falei que, de fato, ela nunca apareceu porque tinha morrido. E que o homem mau também estava morto, apagado numa briga de bar. Uma notícia entristeceu-o, a outra o fez feliz visivelmente. 

Dado me tomou pela mão, me levou por todas as dependências do orfanato, fez questão de me mostrar para todos os colegas, todos os funcionários, via-se o quanto estava exultante, transido, encantado demais com sua nova situação.

E ali eu compreendi que não podia defraudar essa confiança, essa alegria, esse visível orgulho de ter um pai tão grandão, tão fortão, como ele apregoava aos outros. Quando enfim saímos de Campos, embiquei o caminhão em direção aqui ao Nordeste e dirigi até ficar o mais longe possível do interior de São Paulo, onde tudo começara e terminara para mim.

A polícia de São Paulo que procurasse o matador do homem mau, usando as indicações da velha madame e do pessoal do posto. Tomara que ela tivesse mesmo dado indicações bem falsas.

Em Teresina vendi o caminhão, troquei por um menor e mais barato, não ia mais me aventurar às rotas do Sul mesmo. Sobrava dinheiro pra comprar uma casinha simples por aí. Depois, numa esticada de trabalho ao Ceará, passando umas poucas horas depois de Fortaleza, encontrei esta casinha aqui à venda, me agradei do lugar, achei que ia ser muito bom pro Dado viver e crescer aqui nesta cidadezinha tranquila.

 

Bem, deu certo, aqui estou eu trinta anos depois, sessenta e muitos bem vividos.

Meu Dado é um homem de qualidade, um caminhoneiro como o pai que um dia o encontrou e resgatou de um orfanato em Campos dos Goytacazes. E o Dadinho agora é o filho dele, meu primeiro neto.

Ensino-lhes os melhores princípios, principalmente o “Não matarás”. Espero que eles nunca tenham que trair esses bons princípios... Quero que acreditem sempre que o crime não compensa. Melhor assim pra todos, não acham?

 

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