quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

CORTA AZAR

MILTON MACIEL

— Deu bode, cara. Não vai dar, vou furar com a carona. Minha mulher está me entregando os papéis do divórcio agora mesmo, na hora do café. Avisa lá que hoje não apareço no trabalho. Desculpa. Olha: tem um ônibus que passa bem aí agora, olha... é às 8 horas.

E agora? O Alberto me levava de carona, deixei o carro na oficina pra consertar. Tenho que correr pra pegar esse ônibus das 8. Opa, mas agora já é 8 e 5, será que é aquele buzão ali na frente?

Pior que era! Jorge correu, o motorista riu, fechou a porta, acelerou. Bye, bye. Ônibus perdido. Dia de azar, porcaria. Dia que começa assim só pode acabar mal.

Ligou pro chefe. Cara legal, disse para ele tomar o das 9, não tinha problema.

Chateação, um cafezinho, pelo amor de Deus! Olhou ao redor, não viu nenhum bar ou boteco. Lá na outra esquina vislumbrou uma livraria. Parecia grande, podia ter café, quem sabe um pão de queijo... foi lá.

A livraria tinha cafeteria, ele tinha tempo. Pra não ficar chato, deu uma de leitor, passou a mão no primeiro livro que alcançou, sentou-se com ele à mesa, sorveu o café desatento, abriu em uma página qualquer.

A moça chegou com o pão de queijo quentinho, colocou na mesa, sorriu para ele:

— Humm, Jorge Luiz Borges, muito bom, não é? Dá uma peninha quando a gente lembra que ele morreu cego, não é?

Jorge levou um susto. Jorge era ele, não esse outro tal de Luiz sei lá o que, como é que?... Aí percebeu que a garota apontava para o livro aberto em sua mão, que ele olhava sem ler. Leu o nome no alto da página: Jorge Luiz Borges. Puxa ainda bem que era desses livros que tem o nome do autor em cada página par, ia ficar chato se ele tivesse que virar para ver a capa. Concordou com a cabeça, enquanto mordia o pão de queijo para não ter que falar. Não sabia quem era esse tal de Jorge Luiz. Só que parecia que ele estava lendo o livro do cara com tanto gosto e atenção, quando estava apenas pensando no divórcio surpresa do Alberto.

O moça loira continuava olhando para o livro, sorrindo para o cara da boca cheia. Era simpática, a menina, parecia gente boa. Servindo café, mas pelo jeito mais entendida de livro do ele. Bem, isso não era nada difícil, afinal ele era um técnico em eletrônica, não tinha obrigação de conhecer literatura, ora. Mas ficou meio sem jeito e concordou:

— Muito bom mesmo, veja só — e mostrou a página ímpar para a garota.        

— Eu adoro o Borges. E, entre os argentinos, gosto muito do Júlio Cortázar, também; o senhor deve conhecer, é claro.

— É claro — concordou Jorge, o não-Borges; um Jorge de Pelé, não de Maradona ou Messi.

Aí sentiu um arrepio, a moça na certa ia perguntar sobre algum livro desse tal de Júlio.

Pensou:  Júlio sei lá o que... Corta azar parece; é bem isso que eu tô precisando, uma coisa pra cortar o azar, comecei mal este dia danado, sem carona, perco o ônibus, perco o trabalho, quem sabe... Puta azar. Corta azar, xô!

Mas a moça não perguntou nada. O sorriso desapareceu do seu rosto, um esgar de descontentamento o substituiu. Seus olhos estavam fixos no homem que se aproximava, fazendo-lhe um sinal, devia ser chefe dela.

Ela entrou atrás do balcão, foi tirar um novo café na máquina para o homem. Este se aproximou por trás dela, passou bem rente a ela, Jorge viu que a mão dele deslisou na coxa da garota, viu a retrair-se com se tivesse tomado um choque, afastou-se, estendeu a xícara para o sujeito.

O homem sorriu contente e se afastou levando a xícara com ele. Os olhos antes felizes da moça agora estavam cheios de lágrimas que ela tentava conter.

Bem, de literatura Jorge não entendia nada, mas de assédio e malandragem entendia tudo. Aquele cara com jeito de chefe estava claramente assediando a menina da cafeteria e ela não estava nem um pouco a fim dele. O arrepio e as lágrimas disseram tudo. Disseram que ela estava indefesa, que não podia reagir, certamente por medo de perder o emprego.

O último pedaço de pão de queijo caiu no estômago de Jorge e explodiu como um bomba: se havia coisa que o deixava furioso era ver alguém mais forte se aproveitando de uma pessoa frágil. Levantou, agradeceu e passou o cartão, a moça mal erguia os olhos, envergonhada.

Deu alguns passos em direção à saída, viu que o homem da xícara voltou para a cafeteria, entrou atrás do balcão, a garota tentou esquivar-se dele, não havia mais ninguém no térreo, só aquele moço leitor de Borges que ia saindo.

Então o homem-xícara deu um encoxada na garota, tentou beijá-la na boca, ela tentando se desvencilhar, “Não, Seu Otávio, não”.

Para o tal Otávio Não não era Não. Levou a mão esquerda para o traseiro da moça, preparou o braço direito para levar ao rosto dela. Não chegou a fazê-lo, a dor não deixou.

Entrando por trás dele, o Jorge não-Borges tinha lhe apanhado o braço e torcido para trás com a mão direita, a dor era terrível. Com o outro braço, passou-lhe uma gravata sufocante, o homem-xícara bradou:

— Que é isso, o que você tá fazendo, tá louco?

 — Tô sim, muito louco. E muito puto também, seu filho da puta. Pegando a menina na marra, sua funcionária com certeza.

O tal Otávio se movia, tentava escapar do arroxo, não conseguia, reclamava:

— E o que é que você tem com isso? Se mete por quê?

A moça chorava descontrolada agora, o emprego estava perdido, o maldito gerente tinha conseguido, o moço do Borges parecia furioso, parecia que ia bater no Otávio. Merecia, mas ia sobrar pra ela depois. Ah, que desgraça o que estava acontecendo...

— Me solta, seu maldito. Me solta ou vai ser pior pra você. Ahh!!

O do Borges apertou o torniquete no braço, o da xícara gemeu mais alto ainda.

— Pede perdão pra moça, cafajeste, que pode ser que eu não te quebre o braço.

— Perdão, pra essa aí?! Ela tava querendo, tá na cara.

— Paft! — Na cara dele explodiu o tapa que a garota soltou com toda a força:

— Eu querendo, seu nojento? Eu? Tudo o que eu tenho feito é fugir de você, dessas suas mãos sebosas, desse seu bafo, dos seus apertos. Querendo eu? Eu tô querendo é morrer com tudo isso, tô desempregada... Antes que você me mande embora, eu peço demissão, não preciso mais aguentar sua tara maldita — e foi tirando o avental e o boné, jogando-os no chão. Conscienciosa, contudo, tomou o cuidado de desligar a máquina de café e tirou o cabo elétrico da tomada.

Jorge não-borges obrigou o sujeito, o tal Otávio-xícara, a ajoelhar:

— Antes dela ir embora, tu vai pedir perdão pra ela, seu merda. Pede! Agora!

O aperto do braço foi ao máximo, o da xícara gemeu mais alto e arregou:

— Perdão, Dorinha, perdão. Foi mal, não faço mais. Ai!

— Não faz, porque eu vou embora daqui pra sempre agora mesmo!

— Não faz porque ELE vai embora daqui pra sempre agora mesmo! — a voz que disse essas palavras soava calma, densa, cavernosa, rouca.

— Doutor João! — assustou-se Dora

— Meu sogro, não é nada disso que parece, eu posso explicar... — o Otávio gerente levantava-se, o do Borges tinha libertado o cativo.

— Quem é? — perguntou o do Borges para a moça loira.

— O dono da livraria, é sogro do Otávio.

Pois o sogro do Otávio estava feroz:

— Você sabe muito bem que eu lhe avisei: não faça isso de novo nunca mais. Fez. Está despedido!

— Mas meu sogro, eu posso explicar, isso é armação desses dois...

— Eu vi tudo, imbecil. Estava parado ali atrás. Guarde as explicações pra sua mulher. Minha filha, coitada. De mim ela vai é saber toda a verdade. E não se atreva a subir para o escritório, não retire nada aqui da livraria. Nada. O que for seu, mando entregar na sua casa. Agora fora daqui, cachorro. Fora daqui!

Otávio da xícara, subitamente rebaixado a ex-gerente da Livraria Agena, saiu a passos lentos, ainda aturdido, com o braço dolorido, a cara no chão, a encrenca ia ser grande em casa, tempestade à vista. E desempregado...

Dentro da livraria a moça ouvia o dono da empresa:

— Por favor, Dora, ligue a máquina de novo, ponha o avental, minha filha, siga o seu trabalho.

— Mas... mas... eu não vou ser despedida?

— Despedida? Você vai ser é aumentada. Mais que merecido por ter aguentado quieta tudo o que passou. Por que não me procurou para contar o que esse degenerado fazia?

— Ele é seu genro, achei que nunca iam acreditar em mim.

— Pois aí é que você se engana. Ela já fez isso outra vez, a moça foi embora sem contar nada, descobrimos depois através da Janete da limpeza. E eu fraquejei, fiz o genro jurar que nunca mais ia fazer isso e deixei a coisa como estava, foi meu erro. Hoje, felizmente, esse moço estava aqui, fez a coisa certa, quero lhe agradecer moço. Qual o seu nome?

— Jorge Silveira.

— Nem sei como lhe agradecer, Jorge — disse Dora — Ele não tinha nada com o caso, de repente entrou ali e me salvou, foi demais... Ele estava com “O Aleph”, do Jorge Luiz Borges, acabou nem levando.

— Ora, fiz o que qualquer um fazia, não podia deixar aquele tipo fazer aquilo e ficar quieto.

— Qualquer um? Pois lhe digo que dificilmente algum outro homem faria isso. Foi o céu que lhe enviou hoje.

— Não, foi um pedido de divórcio da mulher do colega que ia me dar carona pro trabalho.  E mais o motorista do ônibus, que riu na minha cara e não quis me esperar. Aí perdi a carona, perdi o ônibus, fiquei seco por um café, vi a livraria, arrisquei vir ver se tinha cafeteria. Não vim procurar livro nenhum, o Borges foi por acaso. Por sorte minha, tinha café.

— Por sorte nossa, meu caro. Dorinha, vá pegar o livro, dê para o nosso herói aqui, presente da casa. Vai gostar de Borges.

Jorge Silveira agradeceu, foi embora. Naquela noite começou a ler “O Aleph”. Não conseguiu mais parar, amanheceu o sábado lendo o livro. Ainda bem que não era dia de trabalho.

Na segunda deixou o carro consertado em casa, saiu uma hora mais cedo a pé, ia pegar o ônibus das 9 no ponto. Para fazer tempo, passava na livraria, que abria às 8. Aproveitava e tomava um café, via se tinha mais livros do Borges, cara batuta esse argentino.

Na livraria foi direto à cafeteria. Lá quem estava era uma senhora mulata, gentil, simpática.

— Bom dia. A... a Dora não trabalha mais aqui?

— A Dorinha? Trabalha sim, mas agora é a nova gerente. Ainda bem, aquilo é um azougue, ô menina inteligente, estudada, sabe tudo de livros, de escritores, formada em Letras. Um desperdício aqui no café. Pra isso basta eu, que era da limpeza. Fui promovida também. E por falar na Dorinha, olha ela aí.

— Jorge, você aqui, que surpresa agradável.

— Pois é, li todo “O Aleph”. Achei demais. Mal podia esperar a livraria abrir na segunda, quero saber se tem mais livros dele aqui. Se tiver, levo todos. E o tal Cortázar, quero saber sobre ele, você me mostra, me explica?

— Mas claro, para meu salvador qualquer pedido é pouco — sorria cativante.

Só então Jorge se deu conta que não tinha voltado à livraria por causa de Borges exatamente. Ah, pois ia arriscar até a levar uma chamada do seu chefe, mas hoje ele ia ficar a manhã na livraria, aprendendo Borges, aprendendo Cortázar, por quanto tempo aqueles olhos que brilham, aquele sorriso que cativa, aquela menina sabida tivessem atenção para ele.

E ele, muito idiota, achando que aquele dia do divórcio do Alberto e da desgraça do da xícara tinha sido um dia de azar. Ora, Corta Azar! 


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