CORTA AZAR
MILTON MACIEL
— Deu bode, cara. Não vai dar, vou
furar com a carona. Minha mulher está me entregando os papéis do divórcio agora
mesmo, na hora do café. Avisa lá que hoje não apareço no trabalho. Desculpa.
Olha: tem um ônibus que passa bem aí agora, olha... é às 8 horas.
E agora? O Alberto me levava de
carona, deixei o carro na oficina pra consertar. Tenho que correr pra pegar
esse ônibus das 8. Opa, mas agora já é 8 e 5, será que é aquele buzão ali na
frente?
Pior que era! Jorge correu, o
motorista riu, fechou a porta, acelerou. Bye, bye. Ônibus perdido. Dia de azar,
porcaria. Dia que começa assim só pode acabar mal.
Ligou pro chefe. Cara legal, disse
para ele tomar o das 9, não tinha problema.
Chateação, um cafezinho, pelo
amor de Deus! Olhou ao redor, não viu nenhum bar ou boteco. Lá na outra
esquina vislumbrou uma livraria. Parecia grande, podia ter café, quem sabe um
pão de queijo... foi lá.
A livraria tinha cafeteria, ele
tinha tempo. Pra não ficar chato, deu uma de leitor, passou a mão no primeiro
livro que alcançou, sentou-se com ele à mesa, sorveu o café desatento, abriu em
uma página qualquer.
A moça chegou com o pão de queijo
quentinho, colocou na mesa, sorriu para ele:
— Humm, Jorge Luiz Borges, muito
bom, não é? Dá uma peninha quando a gente lembra que ele morreu cego, não é?
Jorge levou um susto. Jorge era
ele, não esse outro tal de Luiz sei lá o que, como é que?... Aí percebeu que a
garota apontava para o livro aberto em sua mão, que ele olhava sem ler. Leu o
nome no alto da página: Jorge Luiz Borges. Puxa ainda bem que era desses
livros que tem o nome do autor em cada página par, ia ficar chato se ele
tivesse que virar para ver a capa. Concordou com a cabeça, enquanto mordia o
pão de queijo para não ter que falar. Não sabia quem era esse tal de Jorge
Luiz. Só que parecia que ele estava lendo o livro do cara com tanto gosto e
atenção, quando estava apenas pensando no divórcio surpresa do Alberto.
O moça loira continuava olhando
para o livro, sorrindo para o cara da boca cheia. Era simpática, a menina,
parecia gente boa. Servindo café, mas pelo jeito mais entendida de livro do
ele. Bem, isso não era nada difícil, afinal ele era um técnico em eletrônica,
não tinha obrigação de conhecer literatura, ora. Mas ficou meio sem jeito e
concordou:
— Muito bom
mesmo, veja só — e mostrou a página ímpar para a garota.
— Eu adoro o
Borges. E, entre os argentinos, gosto muito do Júlio Cortázar, também; o senhor
deve conhecer, é claro.
— É claro —
concordou Jorge, o não-Borges; um Jorge de Pelé, não de Maradona ou Messi.
Aí sentiu um
arrepio, a moça na certa ia perguntar sobre algum livro desse tal de Júlio.
Pensou: Júlio sei lá o que... Corta azar parece; é
bem isso que eu tô precisando, uma coisa pra cortar o azar, comecei mal este
dia danado, sem carona, perco o ônibus, perco o trabalho, quem sabe... Puta
azar. Corta azar, xô!
Mas a moça não
perguntou nada. O sorriso desapareceu do seu rosto, um esgar de
descontentamento o substituiu. Seus olhos estavam fixos no homem que se
aproximava, fazendo-lhe um sinal, devia ser chefe dela.
Ela entrou
atrás do balcão, foi tirar um novo café na máquina para o homem. Este se
aproximou por trás dela, passou bem rente a ela, Jorge viu que a mão dele
deslisou na coxa da garota, viu a retrair-se com se tivesse tomado um choque,
afastou-se, estendeu a xícara para o sujeito.
O homem sorriu
contente e se afastou levando a xícara com ele. Os olhos antes felizes da moça
agora estavam cheios de lágrimas que ela tentava conter.
Bem, de
literatura Jorge não entendia nada, mas de assédio e malandragem entendia tudo.
Aquele cara com jeito de chefe estava claramente assediando a menina da
cafeteria e ela não estava nem um pouco a fim dele. O arrepio e as lágrimas
disseram tudo. Disseram que ela estava indefesa, que não podia reagir,
certamente por medo de perder o emprego.
O último pedaço
de pão de queijo caiu no estômago de Jorge e explodiu como um bomba: se havia
coisa que o deixava furioso era ver alguém mais forte se aproveitando de uma
pessoa frágil. Levantou, agradeceu e passou o cartão, a moça mal erguia os
olhos, envergonhada.
Deu alguns
passos em direção à saída, viu que o homem da xícara voltou para a cafeteria,
entrou atrás do balcão, a garota tentou esquivar-se dele, não havia mais
ninguém no térreo, só aquele moço leitor de Borges que ia saindo.
Então o
homem-xícara deu um encoxada na garota, tentou beijá-la na boca, ela tentando
se desvencilhar, “Não, Seu Otávio, não”.
Para o tal
Otávio Não não era Não. Levou a mão esquerda para o traseiro da moça, preparou
o braço direito para levar ao rosto dela. Não chegou a fazê-lo, a dor não
deixou.
Entrando por
trás dele, o Jorge não-Borges tinha lhe apanhado o braço e torcido para trás
com a mão direita, a dor era terrível. Com o outro braço, passou-lhe uma
gravata sufocante, o homem-xícara bradou:
— Que é isso, o
que você tá fazendo, tá louco?
— Tô sim, muito louco. E muito puto também,
seu filho da puta. Pegando a menina na marra, sua funcionária com certeza.
O tal Otávio se
movia, tentava escapar do arroxo, não conseguia, reclamava:
— E o que é que
você tem com isso? Se mete por quê?
A moça chorava
descontrolada agora, o emprego estava perdido, o maldito gerente tinha
conseguido, o moço do Borges parecia furioso, parecia que ia bater no Otávio.
Merecia, mas ia sobrar pra ela depois. Ah, que desgraça o que estava
acontecendo...
— Me solta, seu
maldito. Me solta ou vai ser pior pra você. Ahh!!
O do Borges
apertou o torniquete no braço, o da xícara gemeu mais alto ainda.
— Pede perdão
pra moça, cafajeste, que pode ser que eu não te quebre o braço.
— Perdão, pra
essa aí?! Ela tava querendo, tá na cara.
— Paft! — Na
cara dele explodiu o tapa que a garota soltou com toda a força:
— Eu querendo,
seu nojento? Eu? Tudo o que eu tenho feito é fugir de você, dessas suas mãos
sebosas, desse seu bafo, dos seus apertos. Querendo eu? Eu tô querendo é morrer
com tudo isso, tô desempregada... Antes que você me mande embora, eu peço
demissão, não preciso mais aguentar sua tara maldita — e foi tirando o avental
e o boné, jogando-os no chão. Conscienciosa, contudo, tomou o cuidado de
desligar a máquina de café e tirou o cabo elétrico da tomada.
Jorge
não-borges obrigou o sujeito, o tal Otávio-xícara, a ajoelhar:
— Antes dela ir
embora, tu vai pedir perdão pra ela, seu merda. Pede! Agora!
O aperto do
braço foi ao máximo, o da xícara gemeu mais alto e arregou:
— Perdão, Dorinha,
perdão. Foi mal, não faço mais. Ai!
— Não faz,
porque eu vou embora daqui pra sempre agora mesmo!
— Não faz
porque ELE vai embora daqui pra sempre agora mesmo! — a voz que disse essas
palavras soava calma, densa, cavernosa, rouca.
— Doutor João!
— assustou-se Dora
— Meu sogro,
não é nada disso que parece, eu posso explicar... — o Otávio gerente
levantava-se, o do Borges tinha libertado o cativo.
— Quem é? — perguntou
o do Borges para a moça loira.
— O dono da
livraria, é sogro do Otávio.
Pois o sogro do
Otávio estava feroz:
— Você sabe
muito bem que eu lhe avisei: não faça isso de novo nunca mais. Fez. Está
despedido!
— Mas meu
sogro, eu posso explicar, isso é armação desses dois...
— Eu vi tudo,
imbecil. Estava parado ali atrás. Guarde as explicações pra sua mulher. Minha
filha, coitada. De mim ela vai é saber toda a verdade. E não se atreva a subir
para o escritório, não retire nada aqui da livraria. Nada. O que for seu, mando
entregar na sua casa. Agora fora daqui, cachorro. Fora daqui!
Otávio da
xícara, subitamente rebaixado a ex-gerente da Livraria Agena, saiu a passos
lentos, ainda aturdido, com o braço dolorido, a cara no chão, a encrenca ia ser
grande em casa, tempestade à vista. E desempregado...
Dentro da
livraria a moça ouvia o dono da empresa:
— Por favor, Dora,
ligue a máquina de novo, ponha o avental, minha filha, siga o seu trabalho.
— Mas... mas...
eu não vou ser despedida?
— Despedida?
Você vai ser é aumentada. Mais que merecido por ter aguentado quieta tudo o que
passou. Por que não me procurou para contar o que esse degenerado fazia?
— Ele é seu
genro, achei que nunca iam acreditar em mim.
— Pois aí é que
você se engana. Ela já fez isso outra vez, a moça foi embora sem contar nada,
descobrimos depois através da Janete da limpeza. E eu fraquejei, fiz o genro
jurar que nunca mais ia fazer isso e deixei a coisa como estava, foi meu erro.
Hoje, felizmente, esse moço estava aqui, fez a coisa certa, quero lhe agradecer
moço. Qual o seu nome?
— Jorge
Silveira.
— Nem sei como
lhe agradecer, Jorge — disse Dora — Ele não tinha nada com o caso, de repente
entrou ali e me salvou, foi demais... Ele estava com “O Aleph”, do Jorge Luiz Borges,
acabou nem levando.
— Ora, fiz o
que qualquer um fazia, não podia deixar aquele tipo fazer aquilo e ficar
quieto.
— Qualquer um?
Pois lhe digo que dificilmente algum outro homem faria isso. Foi o céu que lhe
enviou hoje.
— Não, foi um
pedido de divórcio da mulher do colega que ia me dar carona pro trabalho. E mais o motorista do ônibus, que riu na
minha cara e não quis me esperar. Aí perdi a carona, perdi o ônibus, fiquei
seco por um café, vi a livraria, arrisquei vir ver se tinha cafeteria. Não vim
procurar livro nenhum, o Borges foi por acaso. Por sorte minha, tinha café.
— Por sorte
nossa, meu caro. Dorinha, vá pegar o livro, dê para o nosso herói aqui,
presente da casa. Vai gostar de Borges.
Jorge Silveira
agradeceu, foi embora. Naquela noite começou a ler “O Aleph”. Não conseguiu
mais parar, amanheceu o sábado lendo o livro. Ainda bem que não era dia de
trabalho.
Na segunda
deixou o carro consertado em casa, saiu uma hora mais cedo a pé, ia pegar o
ônibus das 9 no ponto. Para fazer tempo, passava na livraria, que abria às 8. Aproveitava
e tomava um café, via se tinha mais livros do Borges, cara batuta esse
argentino.
Na livraria foi
direto à cafeteria. Lá quem estava era uma senhora mulata, gentil, simpática.
— Bom dia. A...
a Dora não trabalha mais aqui?
— A Dorinha?
Trabalha sim, mas agora é a nova gerente. Ainda bem, aquilo é um azougue, ô
menina inteligente, estudada, sabe tudo de livros, de escritores, formada em
Letras. Um desperdício aqui no café. Pra isso basta eu, que era da limpeza. Fui
promovida também. E por falar na Dorinha, olha ela aí.
— Jorge, você
aqui, que surpresa agradável.
— Pois é, li
todo “O Aleph”. Achei demais. Mal podia esperar a livraria abrir na segunda,
quero saber se tem mais livros dele aqui. Se tiver, levo todos. E o tal Cortázar,
quero saber sobre ele, você me mostra, me explica?
— Mas claro,
para meu salvador qualquer pedido é pouco — sorria cativante.
Só então Jorge
se deu conta que não tinha voltado à livraria por causa de Borges exatamente. Ah,
pois ia arriscar até a levar uma chamada do seu chefe, mas hoje ele ia ficar a
manhã na livraria, aprendendo Borges, aprendendo Cortázar, por quanto tempo
aqueles olhos que brilham, aquele sorriso que cativa, aquela menina sabida
tivessem atenção para ele.
E ele, muito
idiota, achando que aquele dia do divórcio do Alberto e da desgraça do da
xícara tinha sido um dia de azar. Ora, Corta Azar!
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