COMEÇAMOS MUITO MAL!
MILTON MACIEL
1747: O primeiro livro brasileiro. Mas veio a proibição!
Sim, temos muitas livrarias
fechando em 2018. E redes de livrarias, as maiores, em situação de concordata,
arrastando para o limbo seus credores – em especial as editoras. Temos uma
crise de livrarias, embora não tenhamos uma crise de leitores. O número de
livrarias decresce, mas o número de leitores cresce. Nós estamos atrás de
causas para explicar esse fenômeno do mercado livreiro do país. Pois agora
estou disposto a começar exatamente do começo. Nosso começo como produtores de cultura,
de escritos, de livros e de leitura. E nós começamos muito mal!
No período colonial, enquanto em
todo o resto das Américas a cultura avançou rapidamente, Portugal, no afã de
manter-nos sempre colônia submissa e produtiva, proibiu ferozmente que
tivéssemos no Brasil imprensa e ensino superior. Isso só mudou com a chegada de
Dom João VI e a Corte portuguesa ao Brasil, em 1808. Que Deus o abençoe,
Napoleão Bonaparte!
A primeira instituição de ensino
superior que tivemos foi a Faculdade de Cirurgia da Bahia, em Salvador. Logo a
seguir, no mesmo ano de 1808, veio a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
São DOIS SÉCULOS E MEIO de atraso
em relação à América espanhola! Obrigado, Portugal...
E eram apenas faculdades. Só que os
colonizadores espanhóis tinham criado a primeira UNIVERSIDADE em terras
americanas, a Universidade de Santo Domingo, na atual República dominicana, em 1538. E a Universidade Nacional
Autônoma do México, em 1551.
Em 1808, quando foi criada a
primeira faculdade no Brasil, na América hispânica já existiam VINTE E TRÊS
UNIVERSIDADES! As primeiras da Argentina foram: Universidade de Córdoba – 1613;
e Universidade de Rosário – 1653. Não admira que eles leiam muito mais do que
nós até hoje!
Na America inglesa, mal chegaram
os primeiro colonos - na Jamestown de
John Smith e Pocahontas, 1609, Virgínia; na Nova Inglaterra de Peregrinos
(1620) e Puritanos (1629) – e já foi criada a primeira UNIVERSIDADE: a
Universidade de Harvard, em 1636, quase dois séculos antes da nossa
faculdadezinha de Salvador.
OS PRIMEIROS LIVROS IMPRESSOS NAS AMÉRICAS
Johannes Gutenberg inventou a
máquina impressora com tipos móveis por volta de 1450. Cabral chegou à ‘Ilha’
de Vera Cruz em 1500. Mas a primeira máquina impressora tipográfica só teve
autorização para funcionar no Brasil em 1808. 358 anos depois de Gutenberg!
Obrigado pelo pequeno atraso, Portugal. Até então era proibido fazer impressos
na colônia.
Contudo, muito antes de 1808,
imprimia-se livros aos milhares em toda a América Hispânica e Britânica. Para
se ter uma ideia, 32 anos antes, em 1776, ano da Declaração de Independência
dos Estados Unidos, só o livro Common
Sense, de Tom Payne, chegou a ter tiragens somadas de 400 000 exemplares. Quatrocentos
mil! Não
admira que eles leiam muito mais do que nós até hoje!
O primeiro livro produzido na
América britânica, o Bay Psalm Book, um
livro de salmos, foi impresso em 1640
em Massachusetts, apenas 20 anos depois da chegada dos Peregrinos a Plymouth. O
primeiro editor e tipógrafo das Américas, Stephen Daye, imprimiu 1700 exemplares
do livro por encomenda do primeiro livreiro da Américas, Hezekiah Usher.
(Extrema ironia: hoje, em 2018, 378 anos depois disso, a maior parte
dos autores e editores brasileiros têm que pensar duas vezes antes de se
aventurarem a publicar 1700 exemplares de um livro numa só tiragem!).
Na America hispânica, os jesuítas
foram os primeiros editores. Precisavam catecismos para fazer a cabeça dos
indígenas, aos quais concediam o beneplácito da alfabetização em castelhano. O
primeiro livro foi publicado no México em 1539, o “Breve y Más Compendiosa Doctrina Cristiana en Lengua Castellana y Mexicana”.
O primeiro livro publicado na
América do Sul foi “Doctrina Cristiana y Catecismo para Instrucción de los Índios
y de las Demás Personas que Han de Ser Enseñadas em Nuestra Santa Fé”. Foi em
Lima, atual Peru, em 1584. Na Atual Argentina, o primeiro livro foi impresso pelos
jesuítas em 1705. Na atual Cuba, em Havana, eles imprimiram o primeiro livro em
1707.
O PRIMEIRO LIVRO IMPRESSO NO BRASIL
É a história de um malogro. Nosso
primeiro editor e impressor foi Antonio Isidoro da Fonseca, um
tipógrafo português que, tendo impresso em Lisboa um livro de nome “O Judeu”, acabou
se dando mal com a Inquisição. Desgostoso e com justos receios, Isidoro fez as
malas: embarcou com suas impressora e caixa de tipos para o Rio de Janeiro e
abriu ali, em 1747, um “officina typographica”.
Imprimiu dois folhetos e, então,
aventurou-se a fazer um livreto, que viria a ser o primeiro livro do Brasil,
nesse mesmo ano de 1747:
“Relação
da entrada que fez o Ecxcelentíssimo e reverendíssimo Senhor D.F. Antonio do
Desterro Malheyro, Bispo do Rio de Janeiro, em o primeiro dia deste prezente Anno
de 1747 , havendo sido seis Annos Bispo do Reyno de Angola donde por nominação
de sua Majestade, e Bula Pontifica, foy promovido para esta diocesi.”
O glorioso autor do nosso primeiro
livro: Doutor Antonio Rosado da Cunha,
Juiz de Fóra e Provedor do Defuntos, auzentes, Capellas e Resíduos do Rio de Janeiro.
O glorioso primeiro livro foi
seguido por uma outra parte menor, pelo mesmo autor, com o título “Em aplauso
do Ecxelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Frey Antonio do Desterro Malheyros Digníssimo
bispo desta Cidade, Romance heroico”.
Percebe-se que o nosso primeiro Romance heroico é que inaugura a
tradição brasileira de “E o cordão dos puxa-sacos cada vez aumenta mais, mais ,
mais...”
Estas duas obras primas – primas no
sentido cronológico de primeiras mesmo – estão hoje acessíveis na Biblioteca Nacional,
basta procurar na Coleção Barbosa Machado.
Só que o Isidoro deu com os
burros n’água mais uma vez. Assim que as autoridades souberam das publicações
que esse mau súdito ousara fazer na colônia, ele foi chamado de volta a Lisboa
e obrigado a levar consigo de volta sua ‘officina typographica” para a
Metrópole. Dupla audácia: Dar veículo a que homens da Colônia difundissem suas
ideias. E contrariar os interesses comerciais dos impressores de Lisboa e da cidade
do Porto, que detinham o monopólio da impressão de textos de autores da Colônia,
como Santa Rita Durão, Basílio da Gama e os inconfidentes Claudio Manuel da Costa
e Tomás Antonio Gonzaga.
Ora, apesar de Isidoro colocar ostensivamente
na capa do livro “Com autorização do Senhor Bispo”, ele não tivera autorização nem
do Santo Ofício, nem do Desembargo do Paço – ambos apenas expressão da boa e
velha Censura, canônica e civil. Portanto, cautela e caldo de galinha, Isidoro:
ponha-se de volta à casa com sua Officina. Garantindo-se, assim, a soberania da
ordem régia de proibição de tipografias no Brasil.
Proibição que permaneceu até
1808, quando a primeira oficina tipográfica oficial chegou ao Brasil com os
navios da Corte e foi instalada na casa onde foi morar o Ministro do Interior
de D. João VI, o Conde da Barca, para depois ser integrada à Imprensa Régia.
Operada pelo Irmão Veloso, religioso mineiro e tipógrafo, que veio de Lisboa
com a Corte, a primeira publicação foi um folheto de 27 páginas e a Carta
Régia. Foi a inauguração da imprensa oficial no Brasil, em 13 de maio de 1808.
Chegou a imprensa enfim. Mas não
a imprensa livre. Porque, junto,
chegou a Censura, é claro. Então os primeiros livros ‘particulares’, isto é, não
impressos por iniciativa do governo, tinham que ser bem-comportados e
saco-puxativos. Como este, possivelmente
o primeiro livro “particular’ do Brasil colonial não proibido:
“Análise da justiça do comércio
de escravos com a costa da África”, onde o autor, o Bispo Inquisidor José Joaquim da Cunha
Azeredo Coutinho, explica, à luz das leis dos homens e das leis de Deus,
como é justa e necessária a escravidão.
Notável é a dedicatória do livro, onde o bispo
escreve: “A vós todos dedico esta obra filha
do meu trabalho e que só teve em vista o vosso bem; obra por cuja causa tenho
sido insultado e perseguido pelo ocultos inimigos de vossa pátria e pelos
desumanos e cruéis agentes de Brissot e Robespierre, esses monstros de figura
humana que estabeleceram a regra: ‘Pereça antes uma colônia do que um princípio’
– princípio destruidor da ordem social e cujo ensaio foi a florescente colônia de
São Domingos abrasada em chamas, banhada em sangue”. (Como aparece no livro
de Jorge Caldeira História de Riqueza no
Brasil, Estação Brasil, 2017, pg 196)
Evidentemente, o bispo se refere aos
princípios da Revolução Francesa, que via como inspiradores da revolução dos
escravos que levara à independência do Haiti, a segunda colônia a libertar-se
(em 1804) nas Américas, atrás apenas dos Estados Unidos (1776).
COMEÇAMOS MUITO MAL
Agora fica claro por que razões
escrevi no início que, em termos de cultura e publicações, começamos muito mal.
Estabelecido o paralelo com nossos vizinhos americanos do Sul e do Norte, isso
fica muito claro. Enquanto os colonos hispânicos e britânicos nadavam, séculos
antes, em um mar de universidades e publicações, nós amargávamos o fracasso de
Isidoro e a Pasárgada de nossos primeiros livros – onde só publicava quem era “amigo
do rei”.
Vamos continuar falando de livros
e livreiros, mas antes vamos ter que fazer mais uma parada obrigatória, num
campo chamado ESCRAVIDÃO. Que nos inspire em sabedoria e justiça Sua Excelência
Reverendíssima Dom José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho, DD Bispo Inquisidor
do Rio de Janeiro.
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