domingo, 23 de setembro de 2018


LECTINAS DOS CEREAIS PODEM CAUSAR RESISTÊNCIA À LEPTINA
MILTON MACIEL
(excerto de ‘A SOPA QUÍMICA, Nossa Alimentação Suicida)

      Uma nova linha de investigação científica dos pesquisadores da Universidade de Lund, Suécia, está apontando para a possibilidade de uma interação negativa das lectinas presentes nos alimentos da dieta contemporânea com o funcionamento da leptina, nosso hormônio da saciedade. Observações anteriores, como o estudo de Kitava, demonstraram cabalmente que as chamadas ‘moléstias da afluência’ são totalmente inexistentes entre grupos humanos que, ainda hoje, seguem os padrões de uma dieta natural paleolítica, recusando-se a passar para a prática da agricultura e, consequentemente, deixando de usar os alimentos do neolítico que esta produz.

   Há, portanto, evidência que as doenças da afluência, como as cardiovasculares, a obesidade e o diabetes, devem ser ocasionadas por algum fator que é específico das sociedades agrárias. O grupo de Lund propõe que a dieta predominantemente baseada em cereais é esse fator específico.

   Como um grande número de investigações arqueológicas, às quais se aplicou a biologia molecular evolutiva, permitiram demonstrar, o sistema humano de leptina não está ainda especificamente adaptado a uma dieta baseada em cereais. A resistência à leptina dela decorrente é um claro indicativo dessa inadaptação.

  O estudo de Lund sugere que as lectinas, proteínas de defesa dos cereais e leguminosas, são os constituintes da dieta agrária suficientemente agressivo  s para causar a resistência à leptina, que é, como já vimos, uma insensibilidade adquirida a altos níveis de leptina.

  A leptina, produzida pelas células adiposas, leva ao hipotálamo o sinal para que do cérebro saia o comando para que o indivíduo pare imediatamente de comer. O mesmo comando habilita a estocagem do excedente de açúcar como gordura nova a ser guardada nos adipócitos, o que ajuda a proteger os tecidos periféricos não-adiposos dos efeitos tóxicos da sobrecarga lipídica intracelular.  Mas os efeitos da leptina não se resumem apenas a conduzir o sinal químico que ordena a saciedade e manda estocar a gordura nos adipócitos.

   Ela também serve para regular o crescimento dos ossos e dos vasos sanguíneos, afeta o sistema imunológico e o sistema reprodutor. É, portanto, um hormônio muito mais importante do que se imaginou a princípio.

   Quando seu efeito de produzir saciedade foi descoberto, acreditou-se que, enfim, estava ali a cura para a obesidade. Bastaria fazer aplicações periféricas do hormônio e as pessoas iriam logo perder apetite e peso. Isso, pelo menos, era o que acontecia com cobaias de laboratório.

   Mas isso não funcionou com os humanos. Injetar o hormônio da saciedade em pessoas obesas não produzia o efeito desejado. A observação desse fenômeno foi seguida pela descoberta que os obesos (e mesmo pessoas com sobrepeso que ainda não chegaram à obesidade) tinham taxas de leptina muito mais elevadas no sangue do que pessoas de peso normal. E essa presença confirmada do hormônio da saciedade em altos níveis simplesmente não estava resolvendo o problema, ou seja, a pessoa não se sentia saciada e comia ainda mais. Aplicar mais leptina nessas pessoas não produz resultado algum.

   Contudo, produz resultados nos roedores, incluídos os gorduchos entre eles. Ora, roedores são eméritos comedores de grãos e suas farinhas. Conclui-se, que eles já tiveram tempo de se adaptar ao fator lectina dos cereais, coisa que os humanos ainda hoje não conseguiram. Isso é fácil de entender quando se considera o quanto a vida desses animais de laboratório é curta quando comparada com a vida humana média.
                                                                                                                            
   Desde que a agricultura e a criação foram desenvolvidas, passaram-se no máximo 500 gerações humanas. Em alguns lugares do planeta, a agricultura chegou muito mais tarde ainda, o equivalente a apenas 100 gerações. Ora, isso é muito pouco tempo para que se dê uma mutação genética num genoma de 125 mil gerações.

   Mas, para os roedores, alguns poucos milhares de anos significam vários milhares de gerações. Isso explica por que razão eles podem responder à leptina aplicada perifericamente: já tiveram tempo suficiente para se adaptar aos grãos e suas cargas tóxicas de inibidores de tripsina e de lectinas defensivas. Nós, os humanos, ainda não tivemos esse tempo.

   A pesquisa de Lund mostra que essa falta de adaptação tem a ver com a ação das lectinas sobre o sistema da leptina. O estudo da evolução molecular da leptina mostra que o gene humano da leptina não mudou significativamente desde a emergência dos nossos ancestrais hominoides, há milhões de anos. E, enquanto roedores e aves conseguiram desenvolver uma adaptação bem sucedida às sementes de gramíneas e leguminosas, nós ainda não tivemos tempo – não tivemos um número de gerações sucessivas suficiente para permitir a mudança completa da resposta genética, gerando adaptabilidade.

   Os estudos da evolução molecular da leptina comprovaram que a diferença de resultados quando da aplicação de leptina em humanos e em roedores de laboratório é devida à existência de adaptação por parte desses animais, ao passo que a adaptação humana ainda não aconteceu.

  Ou seja, embora o mecanismo de busca de adaptação a uma dieta que depende maciçamente de cereais esteja evidentemente em andamento, ele é, todavia, lento demais.

   Um dos mecanismos através do qual agem as lectinas dos grãos e também dos laticínios, ainda mais os fabricados a partir de vacas alimentadas com grãos (rações atuais com milho e soja; farelo de trigo), parece ser a ligação ao receptor de leptina.

   Isso porque a leptina não é glicosilada, mas o receptor de leptina o é. As lectinas aderem à partes de açúcar das moléculas na membrana de um receptor (da mesma forma altamente prejudicial que o fazem nas células do intestino delgado) e alteram sua função.

   As lectinas dos cereais, por exemplo, são altamente específicas para eles e estão presentes abundantemente em nossa dieta atual. Elas são capazes de se ligar a estruturas glicosiladas nas células dos vilos intestinais, desvirtuando a barreira defensiva e invadindo a corrente sanguínea, onde serão tratadas como antígeno, provocando resposta imediata. Uma vez distribuídas pelo sangue, as lectinas dos cereais podem se ligar a estruturas glicosiladas de vários receptores, não só o de leptina, como também o de insulina, o receptor do fator de crescimento dérmico e o receptor de interleucina-2.

   As lectinas de cereais podem, portanto, causar resistência à leptina diretamente, ligando-se ao seu receptor e impedindo o recebimento normal do hormônio, que passa a se concentrar no sangue também. Mas o fato de as lectinas afetarem também os receptores de outros hormônios, como acima citado, faz supor que elas podem ter mais do que a ação direta sobre o receptor de leptina. Elas podem ocasionar outros tipos de transtorno hormonal e metabólico, que podem, por sua vez, ter influência indireta sobre a própria resistência à leptina.

A SOPA QUÍMICA – Milton Maciel – 3ª edição, IDEL, São Paulo, 2018 – pgs. 84 a 88)

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