sexta-feira, 9 de março de 2018


EXISTE UMA CRISE NA MÚSICA BRASILEIRA?
MILTON MACIEL, escritor

Sim. E não. Já explico.

Existe, SIM, uma brutal crise de qualidade na música brasileira industrializada. Essa que passa pela grande indústria fonográfica, pelas TVs, pelas rádios, pelos jornais e revistas. Indústria e mídia, na cruel luta pela sobrevivência ante a tempestade digital que as atingiu, nivelaram por baixo e investiram na mediocridade. Já volto a este assunto. Mas primeiro quero dizer que...

NÃO existe, não, uma crise na música brasileira produzida pelos músicos. Continuam existindo compositores geniais às toneladas. O mesmo se pode dizer de potenciais letristas. O problema é que eles, mais do que em qualquer outra época, têm duas grandes dificuldades. A primeira é a de se encontrarem, letristas e compositores, para formar suas duplas miraculosas a la João Bosco e Aldir Blanc, Milton Nascimento e Fernando Brant, Ivan Lins e Vitor Martins. A verdade é que os letristas escassearam muito mais do que os compositores. Há uma maré baixa na poesia e, em especial, nos poetas que se aproximam da música popular. A segunda dificuldade, obviamente, é que a música industrializada e a mídia fecharam as portas para todos eles.

Existe, portanto, um crise de qualidade, mas ela não é devida à falta de bons músicos. É devida à falta de oportunidade que esses bons músicos experimentam hoje, muito mais do que nos áureos tempos de glória da MPB e do rock brasileiro, dos festivais de música e das bandas pioneiras. Essa fase dourada nos legou Caetano, Chico, Gil, Taiguara e, depois, Guilherme Arantes, Legião Urbana e Cazuza. E duplas compositor/letrista como aquelas a que me referi acima.

Hoje o “deus Mercado” não nos permite sucedâneos aos grandes gênios envelhecidos. Axé, pagode, sertanejo ‘universitário’, rap, laivos de forró... É isso o que restou. Um mercado florescente de pessoas pouco cultas, milhões de consumidores ávidos de músicas rápidas, dançantes e de letras simplórias, picantes, eróticas quando não pornográficas, até mesmo violentas. Com o machismo e o desprezo à mulher mais explicitados do que nunca. Aliás, a mulher inculta consumidora desse tipo de música, letra, dança e espetáculo, não chega a entender o que se passa em frente às suas coxas roliças. Mais o culto à cerveja e ao álcool em geral, nas letras que celebram a masculinidade como a capacidade de ostentar-se bêbado.

Para simplórios, letras simplórias, músicas primárias. É muito mais econômico, é muito mais garantido o retorno para o capital investido, é material produzido para e consumido pela base da pirâmide cultural do país, incomparavelmente mais numerosa. Dessa forma a indústria e a mídia, que um dia já investiram na qualidade e viveram bem, hoje apelam solenemente para a mediocridade rentável. Não vou me dar ao trabalho de citar nomes dos artistas mais bem sucedidos economicamente hoje. Basta que o leitor olhe, durante uma semana, o que a TV, por exemplo, oferece às telas dos espectadores em casa.

Ao artista de maior qualidade sobrou o circuito alternativo: a pequena gravadora, a gravação própria, a produção independente (indie), que o converte em mais do que artista, o converte em camelô de sua arte. A Internet e os bares da vida estão por aí, felizmente. E toda uma geração de novos artistas musicais pode ao menos arranhar uma dura sobrevivência, alijada que está dos milhões do grande mercado.

Foi então que nós concebemos uma ideia simples: ir de encontro aos compositores solitários, que exsudam uma música de qualidade, mas encontram, na imensa maioria dos casos, uma barreira inicial quase intransponível: a falta de uma letra, de uma poesia verdadeira, que vista sua música de palavras e a torne uma canção de ainda mais alta qualidade, que a torne vívida, incomparável, inesquecível, imortal.

Num país que não consome música instrumental, não ter uma letra muito boa para uma música muito boa mantem o compositor completamente paralisado. Acumulam-se no computador, no gravador ou na cabeça dezenas e mais dezenas de temas musicais geniais. E daí?

Daí que, se investirmos em instrumentar esses músicos com uma capacidade genuína de gerar suas próprias letras, vamos resgatar dezenas, centenas, milhares de canções de seus baús paralisantes. E um número equivalente de bons compositores emergirão do ostracismo para as beiradas de um mercado que não poderá mais ignorar o sucesso que eles estarão fazendo em seus circuitos alternativos cada vez mais expandidos.

Qualidade chama qualidade. Bons compositores, de posse de boas letras, produzirão canções fora de série, inesquecíveis, que atrairão o público que hoje está marginalizado por falta de boa música nos circuitos comerciais.

Não tenho dúvida alguma que o resgate da poesia na nova música brasileira acabará provocando o renascimento de que tanto necessitamos. Um pouco do grande capital investido hoje, por indústria e mídia, só no mercado primitivo, começará a ver possibilidade de bom ganho nos novos artistas diferenciados. E o público de melhor nível responderá a isso, dando retorno financeiro aos investidores e vida melhor aos artistas criadores.

Vale igualmente o esforço de buscar poetas e diletantes e procurar interessá-los em criar letras para músicas, em instrumentá-los e prepará-los para isso, em estimulá-los a formar parcerias com os bons compositores.

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