sábado, 31 de dezembro de 2016

NÃO  VOU LHE DESEJAR FELIZ ANO NOVO. Você não precisa.
MILTON MACIEL

Não vou lhe desejar boas festas, próspero Ano Novo e outros que tais. Você não precisa.

Até porque TODOS já lhe desejaram isso tudo. Como fazem sempre todos os anos. Só que esse pessoal todo, ou fez isso só da boca pra fora, ou é muito fraquinho em desejar coisas boas para os outros. Porque, convenhamos, você ouve esses votos e desejos provavelmente há décadas. Aí passa Natal, entra novo ano e... E os votos desse pessoal não simplesmente não funcionam!

Como sei de antemão que eu não vou conseguir ajudar você com os meus votos furados, então deixo de fazê-lo. Um a menos para encher sua caixa postal. Não é que eu não deseje que você se dê bem. Só que sei que, a menos que eu bote a mão no bolso e lhe escorregue uma grana preta, ou a menos que eu lhe dedique dezenas de horas de solidariedade e verdadeira AMIZADE, o que eu vou falar ou escrever são apenas palavras, nada mais que palavras.

 (Legenda da foto:: Eu quero que você gaste um monte, para provar que você ama sua família)

Palavras que todo mundo fala, boa parte das pessoas até que com sinceridade. Bem, pelo menos quando se dirigem a certas e determinadas outras pessoas. Para todas as demais existe Mastercard e elas que se virem!

Agora, convenhamos, você ler num anúncio que a Coca Cola ou o Banco Itaú ou Bradesco, lhe desejam um Feliz Natal é, no mínimo, risível. A Coca Cola deve estar desejando que você tenha BOAS FESTAS, ou seja, beba com sua turma um caminhão de refrigerantes e cervejas do grupo. Já o Itaú/Bradesco está mais para desejar a você um próspero Ano Novo, que é o jeito de eles poderem continuar com o canudinho na sua jugular, sugando uma considerável parte dos reais que você ganha – já que assim você vai poder continuar pagando para ele os juros de cartão de crédito e cheque especial e os ‘serviços’ bancários mais caros DO MUNDO.

O pessoal se embala todo com as palavras das mensagens de fim de ano. Harmonia, bondade, fraternidade, paz aos de boa vontade – seja lá isso o que for – mas continua sendo tudo um palavrório que veste uma tradição. De um lado esse tom natalino mais espiritualizado, do outro o desejo de ter resolvidos os problemas financeiros no ano entrante. 

No fim, o tal feliz Natal e próspero Ano Novo acabam se resumindo em uma grande Saturnália, que é a origem real dos festejos natalinos. Jesus Cristo passa a nascer no 25 de Dezembro, para substituir as festas pagãs do Sol Invicto, do solstício de inverno, do deus persa Mitra e do deus romano Saturno. Uma enorme Saturnália, da qual nasceu nada menos que o nosso carnaval!

E aí vamos mesmo para a Saturnália: nos esbaldamos nas compras, a ponto de congestionar horrivelmente as cidades grandes. Indústria comércio e bancos faturam como nunca. Os saturnalistas, de um modo geral, torram o décimo terceiro e se endividam um pouco mais, senão no Natal, já em Janeiro, que entra pesado com suas cargas tributárias e vencimentos de contas. E aí vem a saturnália pesada das comilanças e bebelanças (ah, a Coca Cola!) de Natal: mesa farta e cara, se der com algum produto importado, pega bem. E trocamos presentes porque TEMOS que trocar, é a LEI!

E a saturnália segue firme até estourar no grande rega-bofes da festa de Ano Novo.

O que fazer? Nós fomos manipulados dentro desse sistema, aprendemos isso tudo desde criancinhas, levamos isso tudo adiante quando adultos.

Mas agora, deixando isso de lado, vamos de novo ao assunto dos votos. Não vou desejar Boas Festas porque sei, que a menos que você esteja muito, muito pobre, vão acontecer os rega-bofes, toneladas e toneladas de comida cara vão virar excrementos dali a horas, pobre companhia de esgotos sobrecarregada!

Quanto ao feliz 2017, esse mesmo é que eu não vou desejar. Por que? Maldade? Não, INUTILIDADE! Meu desejo não tem o poder de fazer o seu 2017 feliz ou, ao menos, melhor. Porque só uma pessoa tem essa potencialidade: VOCÊ!

Claro, eu sei que fica bonito eu lhe desejar um grande 2017, assim como você diz desejar para mim. Mas, cá entre nós, que ninguém nos ouça: a  gente, que já é adulto, sabe muito bem que isso é só uma formalidade ditada por uma norma mercantilista de ocasião. Assim como a que temos no dias das mães e dos namorados. Atenção, pessoal: agora você tem que comprar presente, tem que falar palavras bonitas, tem que consumir. É a LEI!

Depois você pode voltar ao seu normal. O mundo não ficou melhor por causa dos seus votos, só teria melhorado se você, de sua parte, tivesse mudado muito, muito, para melhor, nesses curtos dias. E se isso acontecesse também comigo e com todos os outros. E a gente sabe que não mudou tanto assim!

Em 1º. de Janeiro, políticos corruptos vão continuar roubando, pastores desonestos vão continuar enganando seus dizimistas, padres pedófilos vão continuar assediando seus meninos. Homofóbicos,  estupradores e homens agressores bestiais continuarão imolando e matando suas vítimas inocentes.

Então eu vou desejar o que eu posso desejar no máximo para você. Não que eu acredite que esse meu desejo va ajudar em alguma coisa. Mas, mesmo assim, aí vai ele:

Desejo que você saiba DESEJAR. Desejar o certo, o correto, o ético, o melhor para você como ser humano integrado a uma sociedade. Desejo que você saiba desejar. E que, sabendo desejar, saiba COMO desejar. E sabendo como desejar, saiba como TRABALHAR para converter seu desejo em REALIDADE. Sim, porque não há saída mágica: é preciso TRABALHO e ESFORÇO. Sucesso é meramente conseqüência desses dois, não nos iludamos.

Então veja só que fórmula maravilhosa, toda ela dependendo apenas de você e, não, dos meus votos vazios:

Deseje bem, deseje o certo, trabalhe duro e firme para converter esse seu desejo em realidade ao longo do próximo e dos demais anos, tantos quantos forem necessários.

Se você tiver uma boa Saturnália, tudo bem, sinal que a grana deu para atender o costume, para comprar os presentes e os rangos, para obedecer fielmente a LEI. Depois você volta para a dieta e se vira pra pagar os juros.

Por isso tudo, eu me eximo de lhe desejar as tais boas festas e o tal próspero Ano Novo. Como disse, todo mundo já encheu você de tanto falar essas coisas, até mesmo uma pá daqueles hipócritas que o que querem mesmo é ver a sua caveira.

Eu não chego a lhe desejar, por ser inócuo, mais acho que ficaria contente de saber que você soube desejar o certo, o exequível, o realizável. E se deu bem trabalhando firme para realizar esse desejo, usando sua determinação, sua força de vontade, seu caráter, seus talentos.

Ou seja, FAÇA VOCÊ FELIZ SEU 2017! E parabéns antecipados por isso!

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

DESERTOS  MEDONHOS 
MILTON MACIEL 

Os ventos alíseos sopraram meus sonhos,
estéril deixaram-me a imaginação.
Tornaram só vácuo o meu coração
e meus sentimentos, desertos medonhos.

Nas trilhas de sonhos que se esboroaram,
sobraram só escolhos, retraços bisonhos
de seres vencidos de passos tristonhos,
espectros de almas que um dia se amaram.

Houve fel, deserção...
E - minha danação - 
os Numes traçaram
tal fim, pressuponho. 


quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

PRECE DE NATAL GAÚCHA
MILTON MACIEL 

Patrão Velho lá de riba,
Que mandas no firmamento,
Permite que eu te declare
Todo meu encantamento.
Eu, nesta noite, solito,
Sob o teu poncho de estrelas,
Olho encantado pra elas,
Puxa, que céu más bonito!
Eu me sinto mui pequeno,
Parado aqui no sereno,
Vendo essa grandiosidade,
Que é linda barbaridade!

Bueno, o pessoal da cidade
Celebra hoje o Natal.
Aqui a gente é bagual,
Não tem dessas festarias,
Às vez, lá pras rancharias,
Hay quem celebre. No entanto,
Aqui no meio do campo,
Só tenho por companhia
A minha fiel montaria:
Este bicho caborteiro
Meu único companheiro,
Que é meu cavalo tordilho.

Hoje é a festa do teu Filho.
Aceita, pois, meu Patrão,
Que aqui, desta imensidão,
Eu te faça, ainda que mal,
Esta prece de Natal.
Meio xucra, meio estranha
Deste guasca da campanha,
Que aqui, na noite ajoelhado
Sobre este solo sagrado,
Berço heróico dos Farrapos,
Honra quem, envolto em trapos,
Nasceu pobre como eu.
E como um pobre cresceu,
Pra ser exemplo pro povo.

II

Só que hoje hay um tempo novo
E algo novo errado hay,
Pois bem nas fuças do Pai
Exploram o nome do Filho.
O povo... é que nem novilho,
Que, na mão do espertalhão,
Dá até o último tostão.

E eu mui espantado fico
Ao ver que o pobre, contrito,
Ajoelha em nome de Jesus
Fazendo o sinal da cruz...
E dá seu dinheiro pro rico!

Até quando, Patrão meu,
Essa tropa de vagabundo,
Esse bando de fariseu,
Vai explorar todo mundo
Em nome do Filho teu?!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

ELA 
MILTON  MACIEL    
Há horas que esta imagem está me incomodando!

Não consigo esquecer esses olhinhos. Eu os vi pela primeira vez há poucas horas. A foto é de Vinoth Chandar. Chegou-me através do movimento 50 Million Missing, que busca pressionar os governantes da Índia quanto ao problema crônico da violência contra a mulher  e do generocídio feminino naquele país.

Ela é uma indianazinha. E ela reflete em seu rostinho todo o medo e toda a incerteza que acompanha a condição feminina naquela sociedade machista. Sim, esse problema é extremamente crítico na Índia. Mas eu não quero falar só de Índia agora. Eu quero falar de Mundo, eu quero falar de Brasil.

Eu não sei o nome dessa menininha com medo. Mas vou chamá-la de ELA. E vou usar ELA e seus olhinhos tristes e assustados para falar de TODAS as mulheres deste mundo. Portanto, também das do Brasil. Os olhinhos assustados de ELA são os olhos das mulheres que precisam temer por sua dignidade, por sua segurança, por seu direito ao respeito e à liberdade.

É muito triste, muito perigoso e muito desequilibrado um mundo onde metade de seus habitantes tem que ter medo físico da outra metade. Acho isso de um primitivismo a toda prova. Inaceitável.

O gênio de um Matisse, de um Fernando Pessoa, a sensibilidade de uma Isadora Duncan, o poema concreto de uma Estação Espacial orbitando a Terra, de uma Voyager 2 rompendo as barreiras do nosso sistema solar, e então... Então eu vejo os olhinhos de ELA. E tudo aquilo parece refluir para dentro de nossa barbárie coletiva.

Não é possível um mundo em que ELA tem que ter medo no olhar. Os olhinhos de ELA clamam por justiça. Clamam por paz. Clamam por não-violência. O olhar de ELA abrange o mundo inteiro, penetra até à medula cada um de nós. E os olhos de ELA exigem de nós que façamos algo!

Os que achamos que é inaceitável um mundo em que ELA tem que ter medo “dele”, nós os que pensamos assim, temos que fazer algo. Por que ELA não pode fazer sozinha. ELA foi treinada a se acreditar frágil e indefesa, desaprendeu que na natureza são as leoas que caçam e ensinam os filhotes a lutar.

E, em particular os homens que não aceitamos esse estado de coisas, que somos obrigados a reconhecer que o grande predador é o próprio homem, é hora de nos colocarmos corajosamente na linha de frente, hostilizando abertamente os covardes agressores e estupradores, forçando-os a receber justiça, seja de que forma for, até que o dia chegue em que os olhinhos de ELA não mais mostrem medo, mas confiança na vida.

sábado, 17 de dezembro de 2016

BENTINHO – Conto de um Natal ignorado
MILTON MACIEL

Lá fora, na noite quente, luzes e buzinas festejavam. Era Natal, mas Bentinho não tinha muito ideia do que era isso. Na certa alguma coisa boa que acontece para os outros, para os que passam dentro dos automóveis.

A luz ficou vermelha outra vez. O menino deu um pulo e começou a andar entre as fileiras de carros estacionados. Era o tempo de contar 30 e eles saiam outra vez apressados. Depois de um tempo muito maior que contar 30, a luz vermelha acendia outra vez. Contar 30 de novo. Nesses escassos contar 30, ele tinha que correr entre os carros e ver se algum estava com a janela aberta; ou se, coisa ainda mais difícil, aceitava abrir o vidro para ele. Em qualquer dos casos, tinha que ser rápido e desfiar suas pedidas tristes:

Moço, um trocadinho, tô com muita fome.
Por favor, é pra alimentar meus irmãozinhos.
Minha mãe é doente, moça. De verdade!
Senhor, por caridade, só uma moedinha.

O pior é que Bentinho nunca mentia. Tudo aquilo que ele falava era sempre verdade. Fome era o que ele mais tinha. Não podia tirar nada para si, tinha que levar todo o dinheiro para casa, para comprar comida para os irmãos ainda menores do que ele, que eram cinco. Mais velha que ele só Cidinha, 12 anos, a única que ia à escola. E sua mãe era mesmo doente. Doente de cachaça, era viciada! Não durava em nenhum emprego, vivia tomando porres, faltava. Quando estava sóbria, era uma pessoa boa. Mas a maldita da bebida acabava com ela. Acabava com todos eles.

Hoje Bentinho sabia que era um dia daqueles. Tinha que chegar com dinheiro, senão apanhava. E tinha, além disso, que chegar com a garrafa de cachaça, senão apanhava também. A mãe se descontrolava, parecia outra pessoa totalmente diferente, xingava, batia. Ele contou de novo as moedas no bolso do short. A cachaça, o mais importante, já estava garantida. Era só passar na birosca do Carvão, que ele vendida cachaça pra menor de idade sem o menor problema. Tinha também algo pra comprar comida. Mas precisava se garantir com os trocados da condução: três ônibus pra voltar pra casa, três pra voltar pro ponto amanhã.

Bentinho continuou mais duas horas no desfile entre os carros, o dia até que não estava ruim hoje. Uma senhora abaixou o vidro e lhe deu uma nota de 5 reais:

– Tome, meu filho, vá se alimentar direitinho.

Só aí Bentinho lembrou que havia tanta música e tanta propaganda pela cidade por causa de alguma coisa. Tinha mais gente e mais carros nas ruas também. Ele não tinha bem certeza do que era isso, mas mesmo assim assobiou feliz: uma nota de cinco reais, uma raridade! As pessoas normalmente só davam moedas, mas, mesmo assim, eram muito poucas as que davam algo. A imensa maioria mantinha os vidros dos carros fechados. Ou fechavam-nos rapidamente, quando viam que ele se aproximava.  Algumas, de vidro aberto, não lhe davam nada além de uma cara feia. Vez por outra ouvia algo assim: Não se deve dar esmolas. Ou: Dar esmola é sustentar vagabundo.

Ele, vagabundo? Tinha nove anos, trabalhava todos os dias, domingo e feriado inclusive, com chuva ou com sol, com frio ou com calor, toda a manhã e toda a tarde. E até de noite, se a féria estivesse muito ruim naquele dia. Não, ele não era vagabundo!

Mas agora já podia ir. E foi o que fez, saiu mais cedo do ponto, contente com a nota de cinco e as moedas. Passou na birosca do Carvão, pegou a cachaça. Apressou o passo para chegar em casa e ver o que Cidinha precisava comprar de comida praquela noite. Com certeza ninguém tinha comido nada em casa, era sempre assim até ele chegar com o dinheiro do dia. Cidinha, de 12 anos, tomava conta da casa e dos irmãos menores, fazia a comida quando tinham, lavava as roupas, mantinha o barraco limpo e asseado de dar gosto. 

Mas, quando Bentinho saiu da birosca com a garrafa, ficou surpreso ao ver Cidinha andando com pressa, quase correndo. Vinha com uma sacola bem cheia nas mãos, outra nas costas. Parou ao vê-lo e falou depressa:

– To fugindo de casa. Sabe aquele desgraçado do Tião, que se enfia no quarto da nossa mãe e ficam fazendo aquelas coisas e bebendo? Pois é, hoje a mãe tava dormindo de porre, então ele tentou me agarrar. Só que eu já estava preparada, ele já tinha tentado antes. Desta vez eu  fiz que estava com medo, mas fui me encostar no armário quebrado. Quando ele me agarrou, eu peguei rápido o martelo que eu tinha escondido ali pra isso mesmo. Aí virei-lhe uma martelada nos cornos com toda a minha força. Pegou acima da testa, acho que fez um buraco. O desgraçado caiu cheio de sangue no chão e começou a tremelicar os braços e as pernas sem parar. Parecia uma barata envenenada. Aí eu corri pra pegar as minhas coisas, quando ele levantar ele me mata.

– Mas pra onde você vai, menina?

– Pra rua! Pra onde mais eu posso ir? Mas vou ficar viva, pelo menos até aquele bandido me encontrar.

– Mas maninha, como é que vai ser com as crianças? E a mãe? A mãe vai ficar mais louca do que nunca. Mas o pior é: como é que você vai ficar por aí, a rua é horrível, perigosa.

– Olha, Bentinho. Por agora eu vou ficar na minha escola. Não tem ninguém lá, já é férias, eu vou pular o muro de trás e fico por lá, as portas das salas de aula não fecham direito, eu me abrigo numa, durmo sentada. Sei como entrar na biblioteca também, vai ser muito bom, vou passar o dia lendo. Tem um monte de banheiros, posso tomar banho, não vou passar sede. Só fome.

– Não, fome você não passa. Olha, vou dividir o dinheiro que sobrou da cachaça com você, tem uma nota de cinco, fica pra você. E eu sei onde é sua escola. Pode deixar que amanhã eu passo por lá e lhe deixo mais algum, antes de vir pra casa.

– Bentinho, você é um santo! Obrigada. Mas agora eu preciso ir, tenho que pegar aquele ônibus antes que o monstro venha atrás de mim. Espero você na escola amanhã, você me conta como ficaram as coisas em casa.

Bentinho entrou em casa por volta de 7 de noite, com cuidado. Viu que nenhuma das crianças estava lá dentro, na certa tinham fugido com medo de Tião. Foi quando avistou o mulato esvaído em sangue no chão, sacudindo os braços e as pernas de uma forma muito esquisita. Os olhos estavam esbugalhados, mas não acompanhavam Bentinho. No chão, bem perto, o martelo.

Bentinho sentou em frente ao homem e ficou olhando fixamente para a cara dele. Pensava em sua irmãzinha. Com só doze anos ela ia ter que enfrentar a rua em breve, ia virar prostituta com certeza, ou coisa pior: ladra e drogada. E tudo por causa daquele maldito ali no chão. Por que a martelada não tinha conseguido matar aquele desgraçado? Então Cidinha estaria salva. E tudo continuaria como antes. Ele trabalhava na rua, ela trabalhava em casa e ainda podia estudar, coisa que não interessava a nenhum dos outros irmãos, ele inclusive.

O menino olhou o martelo no chão. Olhou o homem que estava causando toda aquela desgraça, Cidinha condenada para sempre por causa daquele bandido. Então a ideia lhe veio súbita,  como um lampejo. Deu um salto da cadeira, apanhou o martelo. Empunhou-o com ambas as mãos. Abaixou-se e vibrou um golpe tremendo no crânio do homem. Fez uma barulho de coco quebrando. O homem parou imediatamente de sacudir as pernas. Estava feito! No quarto, a mãe ressonava.

Correu para a birosca de Carvão. Entregou a ele o martelo. Falou para todos ali ouvirem:

– Eu matei o Tião, ele estava tentando matar minha mãe. Peguei ele com esse martelo. Bati até matar. O assassino sou eu. Agora vou me mandar. Até.

E correu a esperar o ônibus, ia direto para a escola de Cidinha ali no bairro mesmo, ela precisava saber que estava salva. Podia voltar para casa, podia fazer comida para a criançada, podia seguir tomando conta de tudo. Podia continuar estudando e ter um futuro, pelo menos ela..

Ele? Bem agora ele era um bandido também, um assassino de nove anos. Nunca pensou que isso pudesse lhe acontecer. Mas não estava triste. Estava até feliz, tinha salvo sua irmã, a pessoa que ele mais amava neste mundo, de uma desgraça total, de uma vida horrorosa. Amanhã a polícia viria atrás dele, ele estaria no ponto, seria fácil encontrá-lo. Contaria a “verdade”. Ninguém ia achar ruim a morte de Tião, bandido com uma ficha corrida de metros. Já ele, era menor de idade, não podia ser preso. Talvez o levassem para uma casa de menores. Mas também era possível que não. Afinal, ele matara para defender sua mãe. Na birosca um homem velho desdentado lhe fizera um sinal de positivo com o dedão, e sussurrara: Esse moleque é um herói!

Lá fora, na noite quente, luzes e buzinas festejavam. Era Natal, mas Bentinho não tinha muito ideia do que era isso. Na certa alguma coisa boa que só acontece para os outros, para os que passam dentro dos carros fechados.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

CHAPEUZINHO VERMELHO E O LOBO MAU REVISITADOS
(Leitura para adultos)
MILTON MACIEL

A história de Chapeuzinho Vermelho com o Lobo Mau acabou ficando muito mal contada. Compreende-se: como foi preciso adaptá-la para as crianças, mistér foi retirar dela todos os elementos mais cruentos.

Uma revisão se impõe para a leitura adulta, no entanto, que restabeleça a justiça e traga a verdadeira história do lobo mau. A realidade é que esse tarado de fato comeu a vovozinha, mas só porque ela deu mole e ele estava num atraso de dar gosto, não encarava uma loba há meses. A velha também, há anos só na saudade do falecido, já meio esquecida da doce arte, as teias de aranha grassando abundantes, quando viu aquele lobão enorme deitando nela olhares de lobo mau, não teve dúvida: Vem cá garotão! E rolou o maior agito entre os dois. Sexo selvagem no duro, literalmente.

Só não foi ainda mais sensacional porque, no terceiro repeteco, a chata da netinha chegou, com um ridículo cestinho de doces e uma garrafinha de suco de uva. Nessa hora a velha e o lobo já estavam na terceira garrafa de vodca. Aí o lobo escafedeu-se para baixo da cama, a vovozona se recompôs e a Chapeuzinho (assim chamada porque a mãe a usava para aumentar o faturamento familiar pedindo esmolas nos sinais da cidade, correndo um chapeuzinho vermelho entre os motoristas) proferiu as hoje tão famosas perguntas:

 – Pra que essas orelhas tão grandes? Pra que esses olhos tão grandes? Pra que esses dentes tão grandes? Uma chata, uma abestada!

A velha, cheia de vodca, emputeceu! Começou a xingar Chapeuzinho aos berros, afinal os olhos e as orelhas eram da avó mesma, a velha era feia pra burro, pô!

Já os dentes eram de fato enormes, mas estavam no copo ao lado da cama, o lobo ficou com medo e exigiu que a vovó tirasse a dentadura quando começaram a rolar os primeiros beijos de língua.

Chapeuzinho ficou assustada com os gritos histéricos da velha e começou a chorar. Aí o lobo saiu de baixo da cama, com dó da menina, e resolveu consolá-la. A velha era tão feia que o lobo, perto dela, parecia um cordeirinho. Por isso a menina não se assustou com o lobo. Este então a levou para a varanda na frente da casa, sentou na cadeira de balanço da vovó, botou a menina no colo e começou a fazer carinho para acalmá-la. Foi quando passou por ali o caçador.

A garota já tinha uns dezesseis anos e era escolada dos sinais da cidade. Quando viu o caçador, que na verdade era o segundo dos cinco ex-maridos da vovozona, pensou logo em armar pra cima do lobo, pra tirar alguma vantagem. Saltou do colo e correu para o caçador, dando a entender que o lobo estava abusando dela. Aí o caçador se indignou e passou fogo no coitado do lobo.

Aqui é necessário comentar duas coisas. A primeira é que o caçador já vinha todo manguaçado da floresta, bebera todas na birosca dos Três Porquinhos. Por isso, sorte do lobo apavorado, errou todos os dois tiros que desferiu. Todos não, o segundo atingiu em cheio o copo com a dentadura da velha, estilhaçou os dentes, foi um estrago, a velha está desdentada até hoje.

A segunda é que a ira do caçador nada tinha a ver com a pretensa acusação de pedofilia que a mau caráter da Chapeuzinho insinuara contra o coitado do Lobo (que de Mau só tinha o sobrenome, corruptela de pronúncia, por parte daqueles caipiras rastaqüeras do lugar, do ilustre nome da família germânica de que ele descendia, os Maals de Nüremberg).

O furor do caçador veio de sua paixão incontida pelo Lobo, pelo qual há muito nutria um cego e não-correspondido amor. Em resumo, os tiros saíram do cano da carabina impulsionados por uma mistura de cachaça, rejeição, ciúmes do Lobo com Chapeuzinho e dor de corno.

Quanto ao Lobo Maals, teve que se esconder. Não por causa do caçador que, sóbrio, era uma moça em todos os sentidos. Nem por causa do pretenso caso de pedofilia, pois os moradores conheciam de sobra o bom caráter do Lobo e o caráter duvidoso de Chapeuzinho. O problema do Lobo foi a Vovó. A velha deu para persegui-lo, faminta, na base do quero mais, quero mais, desesperada. Aí ele teve que sumir por uns tempos. Deram-lhe guarida os Três Porquinhos, no imóvel que tinham na beira da cidade, à entrada da floresta, onde exploravam o lenocínio, o jogo de azar e a venda de bebidas alcoólicas e armas de fogo. Mas isso já é história para outro conto.

domingo, 11 de dezembro de 2016

O PRIMEIRO ENCONTRO
MILTON MACIEL

A moça linda, de esvoaçantes cabelos negros, enfiada em um algo esvoaçante vestido verde, falou ao chegar à entrada:

– Por favor, vocês poderiam me indicar daqui, discretamente, qual é a sua mesa 17?

Uma jovem de tailleur preto dirigiu-se à recém-chegada, para poder responder em voz baixa, atendendo à solicitação de discrição da cliente. Movia-se com uma leveza surpreendente, mais parecendo uma bailarina do que a hostess de um restaurante de hotel.

– Certamente, senhora. A mesa 17 é aquela em que está sentado o cavalheiro de malha cor de vinho. Aquele que está lendo o nosso cardápio.

A morena linda agradeceu à garota do tailleur, entregando-lhe seu melhor sorriso. Fez mais,  tornou-a confidente, sussurrando-lhe:

– Sabe o quê? Eu marquei um encontro com aquele cara, que eu nunca vi... Quer dizer, minha prima marcou um encontro dele comigo... E eu escolhi este hotel, porque me falaram muito bem do restaurante daqui – que eu também não conheço.

– Ah, a senhora vai gostar muito do nosso restaurante, pode ter certeza. Eu vou me encarregar pessoalmente de que nada lhes falte na 17. A senhora quer que eu a encaminhe até à mesa e ao cavalheiro?

Luciana sobressaltou-se:

– Não! (Meu Deus, eu dei um grito! – pensou) –  Não, quer dizer... desculpe. Ainda não. Bem, eu estou nervosa, sabe como é... primeiro encontro... E este meu vestido...

– Um lindo vestido, senhora. Perfeito, de muito bom gosto. E, se me permite comentar, lhe cai muito bem, ressalta seu corpo elegante. A senhora é uma mulher muito bonita.

– Eu sou uma mulher muito...insegura, isso sim! Mas, em todo caso, eu lhe agradeço o comentário, quem sabe me anima um pouco mais. Sabe, esse sujeito é muito especial, segundo a minha prima. E, agora que eu estou vendo como ele é... Bom, o cara é um gato! Deve estar assim de mulheres atrás dele.

– Parece muito distinto, é verdade. Mas eu acho que a senhora não precisa se preocupar com a concorrência de outras mulheres, não.

– Ah, menina, você sabe animar a gente. Eu queria que você fosse a minha psicóloga, não a minha garçonete. Qual é o seu nome?

– Luciana, senhora, hostess deste restaurante, para servi-la.

– Céus! Luciana! Eu também me chamo Luciana. Quem diria, nós duas aqui agora...

– Feliz coincidência, senhora. Mas...

– Sim, sim. Olha, vamos fazer o seguinte: Eu ainda não vou até à mesa. Estou vendo que o banheiro é bem aqui em frente. Então vou até lá e aproveito para dar mais um toque no cabelo, sabe como é... Assim tenho mais tempo para me acalmar.

– Como quiser, senhora. Se desejar, quando sair do banheiro, pode voltar aqui que eu terei muito prazer em acompanhá-la até sua mesa, como é do meu dever.

Mais descontraída agora, Luciana cliente olhou com mais atenção para a Luciana hostess: (Meu Deus, ela é uma bonequinha! Que coisa mais querida, uma loira tão bonita, uns olhos que parecem de mel. E que classe, que delicadeza. Deve ser uma profissional nota dez).

– Eu volto sim, não demoro – respondeu.

Entrou no banheiro, para fazer o que realmente queria; tirou o celular da bolsa e ligou para a prima:

– Laurinha, eu já estou aqui. Tô vendo o cara e ele ainda não me viu. Menina, ele é um gato, mesmo. Bem como você disse. Qual é mesmo a idade dele?

– 34, meu bem. Um cara bem de vida, bem resolvido, engenheiro. Está há muitos anos na nossa firma, mais do que eu mesma. E, como eu já falei, divorciado há pouco tempo e sem filhos. Vê se aproveita e lava a égua!

– Ai, Laurinha, que modo de falar! E quem garante que ele vai se interessar por mim?

– Eu garanto, sua frouxa! Eu! Eu que passei semanas fazendo a maior campanha, a maior propaganda de você pra ele. Fui com tudo pra cima dele.

­– Nossa, com tudo pra cima dele, só pra falar bem de mim?

– Não, sua boba, eu fui com tudo pra cima dele pra falar bem de MIM! Falar e o resto tudo... Eu fui pra cima dele por que eu estava a fim de ir pra baixo dele. Aliás, sempre estive, mesmo quando ele era casado.

– Menina, você é demais...

– Pena que ele não tenha achado isso nunca. Nem antes, nem depois de divorciar. Se há um cara que não cedeu aos meus encantos e tramoias foi esse aí. Quando vi que não ia conseguir nada com ele, então resolvi passar o bastão para você.

– Que nem em corrida de revezamento...

– Não, sua tonta, o bastão que eu estou mencionando é outro, vê se me entende. E vê se consegue pegar por mim, já que eu não pude.

– Laurinha, você não tem jeito mesmo! Sua maldosa.

– Maldosa é ser amiga assim, passando o bastão pra você, fazendo sua campanha promocional? Ou seja, aumentando e mentindo a seu favor, como qualquer boa agência de publicidade faz?

– Não, não, desculpe, eu me enganei. Eu quis dizer maliciosa e disse maldosa. Eu sou uma besta mesmo.

–  Ah, bom, isso você é mesmo, porque já está aí faz tempo e ainda não foi pra cima do cara. Está esperando o que? Que apareça uma perua na mesa ao lado e pegue o bastão pra ela? Vai lá, sua covarde, corre e pula em cima do cara. Anda! Tchau, se manda, tô desligando pra você não poder enrolar mais.

Luciana olhou-se um longo tempo ao espelho, depois, com um fundo suspiro, decidiu que era hora de ir à luta. Passou resoluta pela hostess, fazendo-lhe um sinal. A moça loira, de tailleur preto elegantíssimo, acompanhou-a, sorridente. Chegando à mesa 17, desempenhou a contento seu papel:

– Senhor, aqui está sua distinta convidada. Tenham um ótimo jantar. E não deixem de recorrer a mim para qualquer coisa especial que precisarem.

O rapaz ignorou completamente a hostess loira, seus olhos estavam arregalados, contemplando a belíssima figura de sua convidada:

– Oi, eu sou o Silvio. Silvio Vieira, engenheiro e facilitador de eventos. Muito prazer.

Puxou delicadamente a cadeira para que ela sentasse e, dali em diante, começou um longo diálogo de mútuo encantamento. Falaram de si, de seus gostos, de suas aspirações e até de seus problemas, famílias incluídas nisso. O engenheiro estudara tecnicamente o menu do restaurante enquanto esperava, fez diversas sugestões, chegaram a um denominador comum e desfrutaram de um jantar realmente fora de série, com um bom vinho e uma sobremesa a caráter.

Depois de uma hora e meia já se sentiam muito à vontade um com o outro. E francamente entusiasmados, também. Luciana desculpou-se por precisar ir ao banheiro e levantou da cadeira, com a ajuda bem-educada de seu companheiro de mesa.

A moça quase correu para chegar ao banheiro, já tirando o celular da bolsa. Era tão certo que a prima Laura estaria esperando que ela ligasse, como era certo que ela ligaria ali do restaurante de novo:

– Ah, menina, o homem é tudo o que você falou e mais um pouco! Sensacional. Estou adoraaaando!

– Eu não falei?  Fica me devendo essa.

– Ah, priminha, devendo e muito...

– E o bastão? Já pegou?

– Pára, sua tarada! O meu nome é Luciana, não é Laura, tá. Eu tô falando sério, se o cara for metade do que me parece, eu vou me apaixonar em dois tempos. E olha, tem mais: Eu acho que ele também gostou mesmo de mim. Isso é o melhor. Você precisa ver como ele está entusiasmado. E falando daquele jeito, aquele jeito mole, arrastado, como você sabe que os homens ficam, quando estão a fim da gente.

– Ora, a fim de você qualquer homem vai ficar, sua gatona. Qualquer um vai querer te comer, grande novidade.

– Não é isso, Laurinha, eu acho que ele está a fim de mim de uma maneira diferente, séria. Você precisava estar aqui para ver o comportamento dele, o jeito como ele me olha o tempo todo, sem parar. Eu acho que desta vez desencalho.

– Sua bobinha, você pode estar tudo, menos encalhada. Com 25 anos só, linda assim, que bobagem...

– É, mas desencalho de sair só com tranqueiras, só com homem que não presta pra nada, como tem sido minha história nos últimos tempos. Você sabe, você acompanha...

Continuaram nos celulares enquanto Luciana sentava ao vaso, retocava a maquiagem, ajeitava o cabelo.

Enquanto isso, o engenheiro sucumbiu também à tentação do mal du siècle, o celular. Calculou que teria uns bons 5 minutos para falar, até que a morena fascinante retornasse do banheiro. Estava entusiasmado demais para se conter:

– Alô, Gastão? Puta, cara, que baita mulher que me apareceu aqui! Você não faz ideia, aquela maluca da Laurinha me fez uma enorme propaganda dessa prima dela, mas eu não acreditei é claro. Justo a Laurinha! Mas cara, pois não é que aquela doida estava certa. Esta Luciana é demais, cara, é tudo de bom e mais um pouco. Um tesão: pernão, coxão, bocão, uns olhos pretos... Não, a bunda não deu pra ver direito, a roupa, sabe como é. Mas parece que não vai ficar devendo nada ao resto. Mas cara, não é só isso, não. A mulher é muito mais... Tem substância... Tem estudo, é fonoaudióloga, fala muito bem, é inteligente, boa família. Ué, que mal tem se eu me interesso pela família dela? Ah, cara, não escracha. E se a coisa der certo? Você sabe muito bem que, depois que eu me divorciei daquela escrota da Marina, eu evitei todo e qualquer contato com mulher que não fosse só uma comidinha rápida e depois hasta nunca, baby! É, cara, é sério, sim. Pra você ver que eu estou fazendo algo que nunca faço, ligar pra um amigo pra narrar o jogo ao vivo. Bom, eu vou desligar que logo, logo, a Luciana está de volta e eu vou continuar mergulhando naquelas águas profundas. Não sei se não vou me afogar, cara. Não sei não...

Foi quando estava desligando o celular que ele ouviu uma voz musical à sua frente e levantou o olhar. "Meu Deus, anjos existem!!!" Ficou paralisado por um instante, depois ergueu-se de um salto e perguntou, com a voz alta demais e estranhamente trêmula:

– Quem é você??!!

– Sou a hostess do restaurante, senhor, já falei com o senhor hora e meia atrás.

"Meu Deus, anjos falam!!! Não: cantam!" A moça loira, de elegante tailleur preto, sorria-lhe alvos dentes nacarados e colocava sobre ele um par de olhos de mel e abismo, que cintilavam como se tivessem luz própria. A voz musical, novamente:

– Vim ver se está tudo a contento do senhor e de sua companheira. Qualquer coisa a mais que possam desejar...

Silvio engenheiro gaguejou:

– Não... Não, tudo ótimo. Qual é...o seu no...no... nome?

– Luciana, senhor, à suas ordens.

– Luciana também! Puxa.

– Sim, o mesmo nome de sua convidada, uma moça tão fina, tão bonita. Parabéns pelo bom gosto, senhor. Vi que ela foi ao banheiro, passou por mim. Já deve estar voltando.

– Si... Sim. – E ele deixou-se cair pesadamente sobre a cadeira, enquanto ficava a contemplar a hostess loira que se afastava, tentando descobrir a razão da incoerência de não ver um par de asas emanando daquelas costas perfeitas.

A outra Luciana chegou.

Ficou esperando que o homem puxasse a cadeira para ajudá-la a sentar à mesa, mas ele parecia nem ter notado seu retorno. Ela mesma manobrou a cadeira e sentou. E notou que o companheiro parecia como que apatetado, com o olhar distante, vago, como em transe. Que raios teria acontecido enquanto ela estava no banheiro?

Não descobriu durante a meia hora seguinte, na qual o diálogo, antes de encantamento e sedução, de abertura e sinceridade, tornou-se vago e entrecortado. A sobremesa, que o engenheiro recomendara com tanto entusiasmo, chegou e ele nem tocou nela. A conversa descambou para o trivial e o óbvio e Luciana correu de volta para o banheiro, para comentar com o técnico do seu time no jogo, a tal corrida de bastão.

– Laurinha, socorro! O homem endoideceu, virou um zumbi, alguém fez uma lobotomia nele quando eu vim ao banheiro antes.

– Que história é essa, minha nega? Como assim, virou um zumbi?

– Ai, Laurinha, que decepção, que vontade de chorar. O cara se arrependeu, algo aconteceu na cabeça dele, todo aquele entusiasmo comigo passou. Ele está esquisito, distraído, parece que perdeu o rumo...

E ficou mais alguns minutos descrevendo tudo com minúcias para a prima.

Quando Luciana fonoaudióloga foi para o banheiro de novo, o engenheiro ligou sua calculadora mental e deu-se mais 5 a 7 minutos de tempo extra. Então, enquanto sua companheira ia ao xixi, o engenheiro foi para céu. Atrás de um anjo.

Correu na direção da entrada do restaurante. Lá estava o anjo loiro! E o rapaz tinha pouco mais de 5 minutos para fazer alguma coisa. Tinha que ser objetivo, matemático. Por isso já chegou falando de longe:

– Você não é a esposa do Maldonado?

– Desculpe, senhor. Deve ser engano seu, eu não sou casada.

– Não! Mas por quê?! – a pergunta, quase gritada, era ilógica, descabida, inconveniente e nada ‘engenheira’.

Por quê?!... – a moça loira ficou sem saber o que dizer. Mas pousou seus olhos de mel sobre os olhos esverdeados do engenheiro com atenção, pela primeira vez.

O engenheiro chamou a cavalaria, tinha pouco tempo, tocou o cavalo em cima, apelou:

– Bem, e o seu namorado, ele não fala em casamento?

O maître, que passava por ali providencialmente, entrou na conversa:

­– Que namorado, moço? Quem dera!

– Paaai!!! – protestou, veemente, o anjo loiro.

– O senhor é o pai dela?! E ela não tem marido, nem namorado? Que maravilha!

– Maravilha?!! – protestou outra vez o anjo de tailleur, olhando para o engenheiro indignada.

– Maravilha, sim. Se é assim, e o senhor é o pai da noiva, eu lhe faço o pedido direto agora: o senhor me concede a mão de sua filha em casamento?

O maître riu abertamente, olhando para aquele maluco à sua frente:

– Olha que conceder eu até concedia, só que eu não mando nada nessa menina desde que ela era uma moleca, isso sempre tomou as rédeas nos dentes. Agora o duro, o que eu queria ver, é o senhor convencer essa tal de feminista a casar algum dia.

– Bem, eu pensei que o mais difícil era conseguir a aprovação da família. Agora que já tenho isso, com ela pode deixar que eu me entendo.

–  Ah, se entende?! – falou, furiosa, o anjo feminista – Pouco convencido, não?

– Eu lavo os pratos, eu lavo a roupa, eu não pergunto onde você vai.

O pai, os outros garçons, o pessoal que passava por ali, todos riam divertidos com a cena surreal.

Mas o engenheiro, apressado, continuava sua obra mestra de convencimento:

– Eu cuido das crianças.

– E quem lhe disse que eu quero engravidar?

– EU engravido! Bom, se não der, eu adoto.

– Ah, adota... Bem, adoção sempre foi uma coisa que eu pensei um dia fazer. Engravidar, não. Você seria capaz de não ter filhos naturais e ter filhos adotivos?

– Com você eu sou capaz de ter filhos adotivos, biônicos, marcianos, robóticos. Ou nenhum, se você não quiser.

Então a moça loira encarou fundamente os olhos esverdeados daquele homem tão diferente e seus olhos de mel estremeceram pela primeira vez. E, a partir desse momento, também ela foi atingida pelo mesmo estado de quase transe em que o homem entrara. Os dois olhares flutuaram um para dentro do outro e todos ao redor desapareceram como por passe de mágica. 

Os engenheiros sabem que existe a compressão do tempo. Naquele minuto final, que precedeu a volta da primeira Luciana à mesa 17, passaram-se anos, décadas, éons; durante eles, o homem e o anjo se conheceram, se reconheceram, se reencontraram, se transfundiram, se amalgamaram. Quando retornaram ao mundo real, viram que ele não era mais o mundo real, nem era mais o mundo deles.

O engenheiro pegou a mão do anjo, levou-a ao maître, e ambos o abraçaram longamente. Depois, de mãos dadas, os dois saíram para o estacionamento, entraram no carro do rapaz e, apenas com a roupa do corpo, iniciaram a longa viagem que os levaria para o Nordeste, mais exatamente para a praia de Canoa Quebrada, no Ceará. Não sabiam bem o porquê, mais sabiam que era ali. Ali estava o real mundo deles a esperá-los. O resto era futuro, e o futuro não os interessava nem um pouquinho, porque tinham um longo presente a construir.

Na mesa 17, uma morena lindíssima esperava, sem nada entender. Tudo indicava, porém, que a vida lhe havia mandado mais uma tranqueira, desta vez com requintes de crueldade. E, inclusive, com uma conta de restaurante para pagar. Ah, Laurinha e suas indicações! Ela ia ter que ouvir poucas e boas.


Angustiantes minutos depois, o maître apareceu. Veio trazer-lhe pessoalmente a conta. Para surpresa e alívio de Luciana morena, com 50% de abatimento. O maître, solidário e generoso, confirmava com esse gesto a fuga do engenheiro na hora de pagar a conta. Ah, aquele golpista miserável, devia fazer isso com muitas garotas incautas, fazia-se de interessado, iludia as idiotinhas, comia e bebia do melhor num restaurante bem caro e depois se mandava, deixando o cravo para a vítima da vez! Ah, Laurinha, Laurinha! Nunca mais!

Precisava de socorro urgente. A loirinha! Sua psicóloga de restaurante, o anjo capaz de levantar seu ânimo. Perguntou por ela ao maître. Este, porém, deu-lhe uma resposta que terminou de devastá-la:

– Nossa hostess acaba de ir embora, senhorita. Motivo inesperado, de absoluta força maior.

Conformou-se, enfim, a morena linda. Não era mesmo sua noite. Bem, pelo menos pagaria só pela parte que comera e bebera. Entregou o cartão, o maître acionou a maquinha, ela digitou a senha, pegou sua bolsa e despediu-se, agradecida.

E, enquanto contemplava com dó aquela moça tão bonita de vestido verde ir embora desolada, o maître pensou:

“Coitada, que azar. O rapaz não devia ter feito esse papel tão feio com ela, deixar a conta para ela pagar. Bem, pelo menos isso não é uma traição amorosa, afinal ele não é namorado dela ainda. E, pensando bem, o moço estava tão passado, tão nas nuvens por causa da minha filha Luciana, que não podia mesmo lembrar de pagar a conta. Afinal ele simplesmente apagou a Luciana morena de sua mente.”

Por um curto momento, atipicamente sentou na cadeira que a morena linda havia ocupado e relembrou:

“Uma louquinha, essa minha filha. Louquinha adorável. Saiu à mãe completamente. Fonoaudióloga formada, nem quis exercer a profissão. Disse que preferia gente barulhenta ao seu redor. E veio trabalhar no restaurante de luxo onde o eu era o maître. Um sucesso! O pessoal da casa e os clientes simplesmente babam por ela. Mas é louquinha como a mãe. Aliás, a mãe é pior. Afinal, a filha fugiu com um completo desconhecido que, pelo menos, ainda não era namorado da outra. E a mãe dela, que fugiu na festa do seu casamento, com um completo desconhecido, que era só um dos garçons que foi servir na festa!”

Bendita loucura. De ambos. Esse garçom, graças a Deus, tinha sido ele mesmo.

Pediu licença e saiu antes de a noite acabar, sentiu um aguilhão de saudade, precisava voltar correndo para casa, abraçar e beijar sua doidinha de toda uma vida. E contar para a louquinha-mãe a grande novidade: que a louquinha-filha acabara de fazer o mesmo que ela, havia fugido, sabe-se lá para onde, com um completo desconhecido.

Uma hora depois, após amarem-se com a mesma suave paixão de sempre, abriram um champanhe e brindaram felizes:

– Às mulheres loucas e fujonas desta família – propôs o pai, erguendo sua taça.

– Ao sucesso amoroso dessas mulheres – respondeu a impetuosa mãe, batendo sua taça na dele – Porque você bem sabe...

– Que vai dar certo para a louquinha-filha também, é claro! Deus abençoe aqueles dois malucos, onde quer que estejam agora. Que eles estejam começando a viver uma loucura tão maravilhosa como a nossa.

Deram-se as mãos, encantados e confiantes. O maître, como sempre fazia cada vez que se sentia feliz demais por amor, pediu perdão mentalmente, mais uma vez, àquele pobre marido-noivo abandonado em plena festa de casamento, tantos anos atrás.