sexta-feira, 29 de maio de 2020

UM HOMEM ROMÂNTICO DEMAIS  
Microconto (*) nem tão micro assim   
MILTON MACIEL

Romântico incorrigível, sofro desilusões amorosas que doem demais. Compreendam: Eu poderia tê-la amado por toda a vida; mas, dias antes do casamento, o pai dela, rico industrial, foi à falência! Foi um golpe duro demais e meu pobre coração sonhador se partiu em frangalhos.
Hoje estou para casar com outra mulher, que amo apaixonadamente também. Mas, desta vez, mais escolado, tratei de ganhar a posição de contador da indústria do pai desta. Afinal, gato escaldado... É que sei que meu coração romântico não vai resistir se sofrer outra desilusão igual à primeira. O mundo é muito cruel com pessoas sensíveis como eu... 

(*) Meu microconto favorito é este: “Uma vida inteira pela frente e a bala veio por trás” – Não sei quem é o autor, mas é um gênio! Sem alguém souber – comprovadamente! – faça a caridade de me informar, por favor. Adoro reconhecer a genialidade dos outros. (MM)

quinta-feira, 28 de maio de 2020

MINHA AVÓ ERA HOMEM 
MILTON  MACIEL  

Pois é. Sim, é isso mesmo que vocês leram aí. Minha avó... era HOMEM. Já vou explicar. Sabe como é, todas as famílias têm seus segredos. Aliás, quando algum deles é descoberto, sempre é possível recorrer à velha justificativa:Isso acontece nas melhores famílias. Eu, infelizmente, não posso.

É que a minha não pode, de forma alguma, ser incluída entre as melhores famílias. Tenho uma irmã que deu o golpe da barriga num homem rico, já levando para a cama dele, na primeira vez, uma sementinha (Sabem, os bebês nascem de uma sementinha!) gentilmente fornecida por um namorado dela. Como ela fez o otário do meu cunhado acreditar que ainda era virgem (isso eu não vou contar hoje, outro dia eu falo), o cara nunca pensou em fazer um exame de DNA. Ele veio prontamente assumir a responsabilidade por ter feito mal à moça virgem de 20 anos (justiça seja feita, ela, de fato, foi virgem até os 13)  e casou logo, a tempo de a barriga não atrapalhar o casamento religioso. Véu e grinalda, é claro.

Mas não é por isso que eu estou excluindo a minha do rol das boas famílias. Tem muito mais coisa e a mau caráter da minha irmã, que continua aprontando das dela, não tem nada a ver com isso. Nós temos um segredo tenebroso, que é a razão maior da nossa vergonha. Não sei se vou ter coragem de contar aqui, mas pelo menos o lance da vovozinha eu não me importo que os outros saibam. Afinal, já faz tanto tempo e a velhinha já morreu mesmo. Bem, o lance foi o seguinte:

Um dia eu subi ao depósito de tralhas que a gente tem no segundo andar. É um bagunça familiar típica. Gerações de relaxados e porcalhões passaram por ali largando bagulhos e badulaques mil, sempre à espera do dia em que a grande faxina geral vai ser feita. Lá em casa deve haver umas mil camadas de sedimentos inúteis, só um bom arqueólogo poderia começar os trabalhos de remoção.

Bom, aquele era um dia de chuva e de tédio. De repente lembrei do museu dos Martini e resolvi dar uma xeretada. Assim do nada, não pensei em procurar coisa alguma, só xeretar mesmo. É claro que lá é escuro a qualquer hora do dia, amontoaram coisas até o nível do teto, lógico, lâmpada de luz fica sempre bloqueada. Então, quando eu entrei, no primeiro metro já dei uma chifrada de fazer gosto em algo suspenso do teto. Aí me desequilibrei e, pra não me estabacar no chão, dei um salto espetacular. Mas aí caí em cima de uma tábua solta, que girou pra cima e demoliu o meu joelho. Gastei todo o meu estoque de palavrões em questão de minutos, até a dor passar. Aí resolvi dar um jeito na maldita da tábua.

É, eu tenho que admitir aqui pra vocês que eu também contribuo para o mau nome da família. Por causa do meu mau gênio, sabe? Sou um ariano típico, fervo a 10 graus centígrados e quando me irrito, não consigo deixar de soltar as patas. Mas vamos voltar à tábua. Eu desci furioso, peguei uma lanterna grande e o machado. Eu estava tão enraivecido, que acho que passei uns quinze minutos dando machadada a esmo naquele piso. Ainda bem que a maior parte estava mesmo coberta de tralhas. Mas, onde havia um pedacinho de tábua de piso aparecendo, eu lasquei o machado com raiva um sem número de vezes.

Claro, tive que pagar o conserto, depois. O pessoal ficou uma fera comigo. Não por causa do estrago, mas porque tiveram que tirar toda aquela tralha mofada e fétida e espalhar pela garagem e pelas outras peças da casa. Minha irmã caçula não fala comigo até hoje, quase um mês depois. Mas isso não interessa, vamos voltar à tábua quebra-joelhos.

Pois é, quando eu fui obrigado a parar minha obra prima de demolição, porque estava tão suado e com tanta dor nos braços que não aguentava mais nem o peso do machado, eu sentei no chão, no lugar onde a agressora tinha estado. E aí, pra minha grande surpresa, eu vi uma caixa preta que estivera escondida debaixo daquela tábua. Apanhei-a com o coração na mão. Podia ter um tesouro lá dentro, jóias, moedas de ouro, sei lá! Pelo menos, nos filmes sempre tem. Que nada! Dentro só tinha um diário e um álbum de fotografias. Levei a caixa com seu conteúdo pro meu quarto, de qualquer forma aquilo era um descoberta arqueológica minha e, mesmo se não tivesse valor algum, não era idéia minha compartilhar meus achados com ninguém.

Mas quando comecei a ler o diário e a olhar as fotografias, eu levei o maior susto. Cara, a minha avó Tereza era HOMEM! É isso aí, no duro. A velhinha que eu conheci e da qual lembrava com tanto carinho, era um velhinho. A manobra aconteceu quando ela e o meu avô chegaram ao Brasil, vindos da Itália. Vinham fugidos da segunda guerra mundial, que tinha feito um arraso total na vila deles. Os dois eram muito amigos e embarcaram como clandestinos no mesmo navio. Aí sabe como é, meses de viagem, os dois juntinhos escondidos,  amontoados em baixo das lonas no porão de cargas, acabou rolando um clima. Você precisam ver como o sacana do meu avô contou isso no diário dele, páginas e páginas de apimentadíssima pornografia gay, com desenhos que ele fazia a toda hora, pra explicar melhor. 

No dia do desembarque, eles tinham que se misturar com o povo e mostrar os documentos de imigração. Que eles não tinham, é claro. Mas aí o mau-caráter do meu avô conseguiu roubar os passaportes de um casal de genoveses da 3ª. classe, deixando o cravo pros coitados, bem típico desta minha família de safados. Aí o carinha que ia ser a minha avó conseguiu surrupiar uma mala de mulher e aproveitou para se vestir com um dos vestidos que estavam lá dentro. Ficou de chinelas mesmo, lascou um lenço na cabeça, e os dois conseguiram desembarcar.

Assim começou a história da minha família no Brasil, os Martini. Que era o sobrenome dos genoveses, vejam só! Por aí você vê como essa família começou mal, com esses dois boiolas pilantras, não podia dar em boa coisa! Vê também que meus avós foram os pioneiros do casamento gay no Brasil. E eles mantiveram a farsa por todo o sempre. Vovô Albino e Vovó Tereza, nascidos, criados e casados em Gênova, Itália - Que mentirosos!

Com o tempo, como vovó fosse estéril, coitadinha, eles adotaram uma menininha (minha mãe) e dois menininhos gêmeos (meus tios). Que nunca souberam que eram adotivos, o que é incrível, porque tanta gente sabia das adoções.  E a coisa andou bem, vovozinha querida na cozinha e cuidando da casa, dos filhos e depois dos netinhos (olha eu ali!), e vovozão trabalhando na cidade.

Foi bem até o dia que a velha bateu com as dez de repente, coração. O velho estava viajando, os filhos já adultos tinham se mudado pra outra cidade, minha mãe sozinha ali não aguentou o rojão. Sempre teve medo de defunto, mesmo sendo a mãe não quis saber de chegar perto. Pediu que o cara da funerária viesse, levasse o corpo e tratasse de tudo, até dos documentos. O que ele fez, é claro, por uma boa grana. Agora imagina a surpresa dele quando tirou as roupas da velha para lavar o cadáver e deu de cara com aquele pacotão no lugar errado. A velha era HOMEM!

O agente funerário era esperto o bastante para saber que tinha tropeçado numa mina de ouro. Ficou bem quieto, esperando meu avô voltar. O velho nunca que ia querer que a família e a cidade toda ficassem sabendo daquele escândalo velho de décadas. De fato, depois que ele mostrou a meu avô as fotografias que fez, com a vovozinha vestidinha de mulher, com a parte de baixo exposta e com a vovozinha peladinha, aparecendo em primeiro plano aqueles penduricalhos murchos, o velho Albino ficou nas mãos dele. Começou a extorquir o vovozinho toda semana. Só que ele não sabia que vovô não era genovês coisa nenhuma, era um calabrês de sangue quente. Na terceira semana, ele marcou com o papa-defunto num lugarzinho mais conveniente e despachou o cara com dois tiros nas fuças. A polícia nunca ficou sabendo quem era o assassino.

Pois é, agora vocês sabem: O assassino foi o meu avô! Meu avô era assassino e homossexual. Já minha avó era bichona mesmo. Me diga se não é um baita segredo de família, desses que, quando se joga no ventilador, espalha coisa pra tudo que é lado. Pronto, contei tudo!

Bem, tudo não. O maior e o pior segredo da nossa família bem poucas pessoas conhecem. Eu vou contar pra vocês aqui em particular, porque confio na discreção de vocês. É um segredo de lascar, a gente tem a maior vergonha dele. Mas, bom, paciência, eu estou cansado de carregar essa cruz sozinho, peço que vocês me ajudem a levá-la um pouco. Mas sejam discretos, pelo amor de Deus. Senão eu vou ter que mudar de cidade, mais provavelmente eu opte por sair do Brasil. Não, é muita vergonha mesmo, até pra um cara de pau como eu. Sabem o que é?

Bem, meu irmão é DEPUTADO FEDERAL! É, é horrível mesmo, eu aceito a piedade de vocês. É muito vexame mesmo! O filho da puta (desculpe, mãe, é jeito de falar) já se reelegeu cinco vezes, portanto é dos piores que existem naquele covil. Sabe o que aquele ladrão arquicorrupto falou , quando votou "sim" num impeachment que houve por lá? Pois é, vejam só: "Pela minha honra (!), pelas criancinhas, pelo Papa, contra a corrupção!" 

Ah, a gente faz que não conhece esse sujeito, quando a imprensa procura alguém da família, nós todos negamos, ameaçamos processar, damos umas porradas nos caras, tomamos o maior cuidado pras crianças não descobrirem. Sabe como é, traumas de infância são coisas que a gente carrega pelo resto da vida.

É isso, desabafei. Mas agora, por favor, mostrem que são meus amigos. Não contem essa barbaridade pra ninguém! Pelo amor dos seus filhinhos! Jurem pelo que há de mais sagrado. Eu NÃO SOU irmão de DEPUTADO FEDERAL. NÃO SOU!!! NÃO SOU!!!

sábado, 16 de maio de 2020

A  PEQUENA WANG LI  丽  
MILTON MACIEL

A pequena Wang Li empunhou com coragem o carrinho de mão. Pai tinha que trabalhar na lavoura de arroz. Mãe ainda tinha que ordenhar mais cabras. Mas o leite para entregar ao caminhão de Zhang Wei já estava ali no latão, quente dentro do carrinho.

Muito pesado para os seis anos de Wang Li! Muito longe para seus pezinhos, mais de um quilômetro empurrando aquele tambor de leite, a roda do carro de mão chafurdando no barro do caminho, época de chuvas. E de frio, muito frio. A pequena Wang Li largou o carrinho, soprou bafo quente em suas mãos duras de frio. Depois retomou a marcha, com o típico estoicismo que as crianças do campo aprendem com seus pais na China. 

Com as chuvas, o caminhão de Zhang Wei só podia chegar até aquele ponto tão distante. E ninguém mais podia levar o leite de Pai e Mãe para Zhang Wei vender. Só a pequena Wang Li. Consciente de sua importância no processo de ganha-pão da família, a garotinha apressou o passo e ainda conseguiu sorrir, apesar do esforço enorme que fazia. Pai ia ficar feliz com sua filha!

Foi quando passou pela beira do pequeno lago que viu a libélula. O animalzinho se debatia dentro d’água, batia as asas e as patinhas, de borco sobre a superfície. O coração de Wang Li apertou. A libélula parecia estar muito cansada. Ia morrer. Que dó! Tão bonita...

Não, o pequeno inseto não ia morrer! Não enquanto ela, Wang Li, estivesse ali. Apanhou um graveto, o maior que encontrou por perto, e se aproximou da água. Não, muito longe! A distância era três vezes maior que a altura dela. Já contando o graveto.

Então ela viu o pedaço de tronco boiando ali na beira. Wang Li não sabia nadar. Colocou os pés na água e ela estava gelo puro. Mas Wang Li achou que aprenderia a boiar com o pedaço de tronco. O lago era fundo. Mãe sempre dizia para ela ficar longe da beira. Mas agora ela não podia obedecer Mãe. O animalzinho ia morrer. E, assim como só ela podia levar o leite para Zhang Wei, só ela podia salvar a libélula agora.

E a pequena Wang Li entrou resoluta na água gelada. Perdeu o fôlego, se assustou porque afundava, mas agarrou-se com força no tronco que boiava. O tronco não afundou. Wang Li era muito pequena e muito magra, o tronco nem se deu conta que ela estava agarrada nele. E ela, intuitivamente, começou a mover suas pernas e o braço livre, precisava chegar na libélula antes que ela desistisse de viver.

Mas  Wang Li não tinha muita força nas pernas e nos braços. E não sabia o que fazer com eles, por isso demorou muito tempo até conseguir chegar onde estava o inseto. A pequena Wang Li não tinha força, mas era muito forte. Sua vontade era uma só e isso a fazia lutar sem parar: ela ia salvar a libélula!

E conseguiu chegar até ela, com o corpo todo quase congelando. Ela sentia muito frio, seus dentinhos batiam. Mas ela sabia que a libélula também sentia muito frio. E que a libélula só podia contar com Wang Li.

Os lábios roxos se abriram num sorriso, a mão direita mergulhou por baixo da libélula e a ergueu triunfante. Levou a mão perto da boca e começou a soprar bafo quente no bichinho. E a libélula começou a dar sinais que reagia, começou a mover suas asinhas com mais intensidade.

Wang Li pousou o inseto no tronco e começou a duríssima jornada de volta à margem. Não sentia mais as pontas do pés, as mãos estavam duras, o corpo todo tremia. E ainda tinha que cuidar para que o tronco não girasse, para não levar a libélula para a água de novo.

Quanto tempo ela persistiu no seu esforço sobre-humano, a pequena Wang Li não podia saber. Mas Wang Li era uma lutadora. E ela e sua libélula chegaram à margem. E saíram as duas da água! Ficaram ambas sobre a relva, exaustas, enregeladas, o tímido sol que ameaçava sair não as podia aquecer. 

Foi quando a pequena Wang Li ouviu o barulho do caminhão de Zhang Wei, lá longe na estrada. O caminhão parou, esperou um minuto e foi embora!

Não, Pai não ia ficar contente com sua filha. A pequena Wang Li tinha fracassado! O leite estava perdido, Zhang Wei só passaria ali depois de dois dias. Os lábios roxos da menina se abriram para deixar sair muitos soluços. Wang Li chorava. Pai ia ficar triste. Mãe ia ficar brava. Wang Li merecia castigo. Ficou com medo. Mãe ia castigar Wang Li. Se pudesse, não voltaria mais para casa.

Mas não podia. Tinha que voltar e contar a verdade. Suportar o castigo. Que Mãe batesse não importava tanto. Que Pai ficasse triste por causa do leite perdido, por causa do dinheiro que ia faltar... isso deixava Wang Li desesperada.

Colheu a libélula outra vez na mão direita, encobriu-a com a esquerda, fez uma concha, voltou a soprar bafo quente nela. Achou que ao menos a libélula devia estar contente. Wang Li ficaria muito contente também, se não tivesse que voltar para casa levando a terrível notícia.

Fez um esforço inacreditável, ergueu-se do chão. Então lembrou que o leite no latão ainda devia estar um tanto quente, saia fumegante das tetas das cabras. Tirou a tampa do latão com enorme dificuldade, muito dura para a pequena Wang Li. Mas ela não desistia nunca e acabou conseguindo girar a grande tampa. O vapor fumegante saiu de dentro do latão.

Wang Li mergulhou ali suas duas mãozinhas enregeladas e sentiu o calor maravilhoso a lhe devolver os movimentos. Depois fez concha com as mãos e começou a beber o leite morno. Achou que isso lhe daria mais forças.

Abaixou-se, apanhou a libélula que ainda não tinha forças para voar e a afastou do carrinho mais um pouco. Não queria molhá-la. Então voltou ao latão e começou a tirar com as mãos em concha o leite morno e a jogar sobre seu corpo gelado e sobre seus pés endurecidos. Ah, que sensação maravilhosa!

Quando achou que havia esvaziado muito mais da metade do latão, experimentou erguê-lo. Não tinha forças para isso, mas tinha que tentar... Conseguiu! E, então, começou a verter vagarosamente o resto do conteúdo do latão sobre o resto do seu pequeno corpo sofrido,a começar pelo alto da cabeça.

Minutos depois, a pequena Wang Li caminhava vagarosamente empurrando o carrinho de mão. Agora estava leve, todo o leite tinha sido derramado!

Toda molhada, suja de barro e leite da cabeça aos pés, o cabelinho liso de leite empastado, os pezinhos nus sem os chinelos perdidos no lago, a pequena Wang Li chegou em casa. Chorava muito.

Mãe a viu primeiro. Entendeu que o leite havia caído do carrinho de mão, que a filha havia feito algo muito errado. Mãe começou a gritar com a pequena Wang Li, que chorou ainda mais. 

Mãe pegou a fina vara de bater, a garotinha tremeu ainda mais.

Mas Pai chegou por causa dos gritos. Mandou Mãe parar. O que tinha acontecido?

A pequena Wang Li contou a verdade. Mãe tinha lhe ensinado que não se deve mentir, mesmo quando a gente fica com medo. Então Wang Li não mentiu. Mostrou o monte de folhas que havia juntado no carrinho, ali dentro delas a libélula estava protegida, ainda não queria voar.

Mãe ficou mais furiosa ainda. Filha desobediente, tinha entrado no lago perigoso! E tinha perdido todo o leite por causa de um mísero inseto. Pegou de novo a fina vara de surrar.

Pai arrancou a vara da mão de Mãe. Quebrou a vara. Abraçou a pequena Wang Li. Pai tinha lágrimas nos olhos. Sua filha podia ter morrido, isso o deixava agoniado. Mas sua filha tinha feito tudo aquilo para poder salvar uma vida, a vida de um serzinho indefeso que sofria e ia morrer. Isso o deixava emocionado. E orgulhoso, muito orgulhoso.

Sua pequena Wang Li era uma mulher de coragem e de compaixão! E de grande inteligência também. Pai mandou Mãe aquecer um monte de água, sua Wang Li agora ia ficar por muito tempo dentro da água morna, se limpar, se aquecer, parar de tremer para não ficar doente.

Mãe compreendeu que estava errada. Pela primeira vez na vida pediu perdão à pequena Wang Li. Correu para juntar a água e a lenha, ia ferver muitas panelas para sua filha. Pai pegou Wang Li no colo, pegou coberta, envolveu a menina colada nele, aqueceu-a com seu próprio calor, beijava-lhe os cabelos sujos de leite.

Wang Li estava feliz: Pai não estava triste! Pai não se importara com o leite perdido. Pai não deixara Mãe castigar Wang Li. Pai protegia e aquecia sua filha. Pai bom, Wang Li gostava muito de Pai. De Mãe também. Menos, porque Mãe muito gritona e nervosa, Mãe batia muito em Wang Li.

Mas Mãe veio e tirou Wang Li do colo de Pai. Levou-a para a grande tina de água quentinha. E lavou-a cuidadosamente. E desenredou seus longos cabelos negros e lisos. E abraçou sua filha, porque sabia agora que ela podia ter morrido no lago, afogada ou por causa da água gelada.

Mãe agradeceu em sua mente que Pai tivesse quebrado a vara. Não, sua Wang Li não merecia apanhar! Nem agora, nem nunca mais. Mãe tinha apanhado muito, muito, na infância, achava que era assim que se educava filha. Mas o sorriso surpreso de Wang Li, ali dentro da tina de água quente, lhe dizia que estivera errada. Ainda era tempo, tudo haveria de corrigir dentro de si mesma. Pai era um homem bom. Carinhoso, como mãe dele. Ela, Mãe, não sabia dar carinho, não tinha aprendido. Mas não ia mais ser bruta com sua menina.

Nesse momento, enquanto Mãe abraçava o corpinho de Wang Li dentro da tina, algo entrou pela fresta da janela.

Era a libélula, que tinha voado enfim. E voou ao encontro de sua salvadora. Pousou na beira da tina, depois no braço da menina. Ficou ali muito tempo, mexendo as asas lenta e ritmadamente.

E, enquanto duraram seus curtos dias de inseto, a libélula nunca mais se afastou daquela casa. Nunca mais se afastou de Wang Li.

terça-feira, 12 de maio de 2020


AFLUÊNCIA - Como o consumismo desenfreado erode nossas vidas. E mata mais em época de pandemia.
MILTON MACIEL 

Casas enormes, televisões cada vez maiores, mais carros ainda, rostos mais jovens a qualquer custo – estes objetivos são freneticamente perseguidos pelos workaholics de classe média. Ainda que, para lograr isso, tenham que se esfalfar (estranhamente SENTADOS* dezenas de horas por semana) em detrimento de sua saúde e de suas relações familiares.

Especialmente porque o nível de tensão é sempre mantido altíssimo, já que a maior parte das aquisições é conseguida através do uso do crédito, criando toda uma geração de devedores compulsivos estressados, eméritos e eternos pagadores de juros vitalícios.

Algo que é ainda mais tensionante para as mulheres que trabalham, uma vez que são obrigadas a gastar, ao longo de toda sua vida, duas a três vezes mais que os homens de sua mesma idade – porque sujeitas a custos muito mais elevados, causados pelo maior complexidade do organismo feminino (custos biológicos), pelo arsenal de consumo obrigatório de roupas, acessórios e produtos e serviços de beleza (custos comportamentais) e pelo denominado “imposto da vagina”, que impõe às mulheres preços mais elevados que os dos mesmíssimos produtos vendidos para homens (custos mercadológicos)**.

Isso numa sociedade onde as mulheres têm jornada dupla de trabalho, ganham menos do que os homens para fazer o mesmo trabalho e são, em 50% dos casos, as únicas que sustentam a família, é muito mais do tensionante – é cruel.

“Estudos conduzidos em diversos países mostram que se você coloca um alto valor nessas coisas, você está muito mais sujeito a sofrer de depressão, ansiedade, dependências e desordens de personalidade. Pessoas nos países de língua inglesa têm o dobro da possibilidade de desenvolverem doenças mentais do que as pessoas que vivem na Europa continental.

Cuidado com o vírus da AFLUÊNCIA! Uma epidemia de consumismo descuidado está varrendo o mundo com a perseguição compulsiva de mais dinheiro e mais posses, tornando as pessoas mais ricas e mais... tristes!”

Este é o aviso cabal dado pelo psicólogo inglês Oliver James, em seu best seller “AFFLUENZA”*** (Afluência, em português, com o significado de abundância, fartura). O nome faz trocadilho com o vírus da influenza (gripe) e a palavra inglesa para afluência, que é affluence.

“Nós ficamos mais viciados em ter do que em ser e passamos a confundir nossas necessidades com nossas vontades”, conclui o autor.

E este é o caminho garantido para a INFELICIDADE.


É também o caminho para nos transformarmos numa sociedade que não apenas vive e ´se mata´ no trabalho em busca da afluência, mas também uma sociedade que literalmente se mata durante processo, porque de fato MORRE por causa da afluência.
Mesmo em tempos de pandemias, quando as moléstias infecciosas voltam a ter participação sensível no número de óbitos totais, ainda assim as chamadas “doenças da civilização” ou “moléstias da afluência” seguem sendo aquelas que mais matam no mundo. Doença cardiovascular, hipertensão, obesidade, intolerância à glicose, diabetes, dislipidemia e câncer seguem sendo os grandes aflitores e maior preocupação para as autoridades mundiais da saúde.

MOLÉSTIAS DA AFLUÊNCIA E COVID-19

As doenças acima citadas estão na base daquilo que torna agora os infectados pelo coronavírus particularmente suscetíveis ao desenvolvimento de casos críticos e fatais. Análises feitas com 5 700 casos de internação em Nova Iorque**** revelaram que as ditas COMORBIDADES  são exatamente as citadas acima: hipertensão, obesidade, síndrome metabólica, resistência à insulina, diabetes e doença cardiovascular prévia puxando o trágico cordão. Basicamente doenças metabólicas, resultantes de uma alimentação errada e excessiva e de uma sedentariedade cada vez mais patológica.

Ter uma ou mais dessas moléstias da afluência dobra a possibilidade de internações e mortes em pessoas com menos de 60 anos. E 88% dos pacientes internados, mostra o estudo, tinham pelo menos DUAS dessas comorbidades ao mesmo tempo.
Constatou-se que níveis elevados de glicose no sangue desempenham um papel importante na replicação do vírus e no desenvolvimento das tempestades de citocina.
Isso sem falar que já está comprovado que a obesidade é um fator de risco para qualquer moléstia infecciosa, pois faz baixar o nível geral de imunidade da pessoa.
É, amigo, cuidado! Afluência mata e pode matar um pouco mais agora.

REFERÊNCIAS
* Livro “SITTING KILLS, MOVING HEALS”, Dra. Joana Vernikos, pesquisadora e treinadora de astronautas da NASA - How modern sedentary lifestyles contribute to poor health, obesity, and diabetes, and how health can be dramatically improved by continuous, low-intensity, movement that challenges the force of gravity. 

** Livro “COMO É CARO SER MULHER!”, Milton Maciel - Custos biológicos, sociais e mercadológicos como barreiras à independência econômica das mulheres

*** Livro “AFFLUENZA”, Dr. Oliver Jones - There is currently an epidemic of 'affluenza' throughout the world - an obsessive, envious, keeping-up-with-the-Joneses - that has resulted in huge increases in depression and anxiety among millions.

**** High prevalence of obesity in severe respiratory syndrome coronavirus-2 requiring invasive mechanical ventilation - https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1002/oby.22831

ERRAVA  EU  
MILTON  MACIEL  

domingo, 10 de maio de 2020

DANTE'S PRAYER
Loreena Mckennit

When the dark wood fell before me
And all the paths were overgrown When the priests of pride say there is no other way I tilled the sorrows of stone I did not believe because I could not see Though you came to me in the night When the dawn seemed forever lost You showed me your love in the light of the stars Cast your eyes on the ocean Cast your soul to the sea When the dark night seems endless Please remember me Then the mountain rose before me By the deep well of desire From the fountain of forgiveness Beyond the ice and fire Cast your eyes on the ocean Cast your soul to the sea When the dark night seems endless Please remember me Though we share this humble path, alone How fragile is the heart Oh give these clay feet wings to fly To touch the face of the stars Breathe life into this feeble heart Lift this mortal veil of fear Take these crumbled hopes, etched with tears We'll rise above these earthly cares Cast your eyes on the ocean Cast your soul to the sea When the dark night seems endless Please remember me Please remember me