MILTON MACIEL
Av. Robert Kennedy, a beira-mar da praia de Ponta Verde, Maceió – 1999. O último de meus quatro anos em Alagoas, onde assumi uma Secretaria de Agricultura. Paro meu carro num sinal. Uma mãozinha pequena bate no vidro, do meu lado.
Dou esmolas por princípio, sempre tenho notas no carro para isso (Desde 2007 faço isso aqui em Miami também, onde – sinal dos novos tempos – não é mais incomum encontrar pedintes nos sinais: os homeless, os desempregados e os veteranos de guerra, geralmente com sérios problemas mentais).
É uma menina pequena, franzina. Ela bate no vidro e me faz um sinal que decodifico como sendo para eu parar: a mãozinha aberta, mostrando todos os dedos estendidos. Baixo o vidro, dou-lhe uma nota de 2 reais. Ela faz sinal com a cabeça que não. Então escuto a frase que vai mudar minha vida para sempre:
– Tio, me queira. Por favor! Tô com fome... Eu cobro só CINCO.
Então a brutalidade da compreensão me entra mente adentro: a mãozinha espalmada mostrava o preço do programa: cinco reais! Cinco reais para vender seu corpinho que, vim a saber pouco depois, tinha só DEZ anos de vida!
Fecho-lhe então a pequena mão, agora com uma nota de dez dentro, e lhe digo, disfarçando o nó na garganta:
– Se você está com fome, vá comer. E levanto o vidro, restaurando o ar condicionado, para que ela entenda que não quero o programa.
O sinal abre enfim e eu a observo pelos dois retrovisores. Ela corre, pula, grita algo para o rapaz que atendia na barraca de praia ao lado do sinal. Meu espírito de escritor me faz parar bruscamente. Desço, falo com o guarda ali perto, peço-lhe cinco minutos de carro mal estacionado, é uma emergência. Ele concede.
Sento na barraca seguinte à da menina, meio escondido por uma coluna de madeira. Observo-a. Vejo que ela pede comida e refrigerante, vejo-a comer avidamente, desesperadamente. É verdade que estava com fome! Mas noto algo estranho também. Ela tem uma bolsa sobre o colo e, a cada vez que o rapaz atendente lhe volta as costas, ela joga algo, que parece com a comida que tem no prato, dentro da bolsa.
Prato esvaziado, garrafa também, a menina dá ao rapaz a nota de dez e espera pelo troco. Sai outra vez pulando, agora num pé só, como uma criança. Mas volta ao “ponto”. Param outros carros no sinal, ela anda pelo calçadão junto a eles, bate nos vidros outra vez. O terceiro carro que ela aborda, com sua mãozinha espalmada, abre-lhe a porta de trás. E ela entra, vai mais uma vez fazer seu trabalho humilhante, desesperado, sofrido, cruel.
Vou ao guarda, excedi em muito meus cinco minutos, explico-lhe francamente o que quero. Ele me dá uma força, diz para eu ir em frente. Então vou à barraca onde a garota comeu e converso com o rapaz. Peço-lhe que me informe sobre a menina. Por sorte ele havia prestado atenção quando ela me abordou e lembrava bem de mim, foi solícito.
Assim fiquei sabendo que a criança tinha só dez anos e que se “virava” naquele sinal umas três vezes por semana. Então perguntei ao moço se ele havia notado que ela jogava comida na bolsa sobre o colo, enquanto comia. Ele fez sinal que sim. Apresentei-lhe minha brilhante conclusão:
– Ela leva comida para comer mais tarde, não é? Só não sei por que o faz escondida.
– Mais tarde o que, seu moço! Eu me viro de costas a toda hora porque ela tem vergonha, faço que não vejo. Mas ela leva comida é pros IRMÃOZINHOS dela. Tem mais quatro em casa e só ela é que garante a bóia pra todos. A mãe é variada, lesa das idéias, num sabe? Some no mundo e as crianças... Vixe!
Eu não podia saber, mas naquele momento estavam nascendo meus romances sobre prostituição infantil. No livro “A Espera e a Noivinha”, coloquei as mesmas palavras da menina de Maceió na boca de outra criança da mesma idade, Ritinha, com a cena ambientada na cidade de Barbalha, no Ceará, localidade que conheci quando, consultor do SEBRAE no Nordeste, dei consultoria a engenhos de açúcar em várias áreas rurais da região.
Nunca mais soube da menina, embora tenha passado a prestar muita atenção àquele sinal da Ponta Verde. Por alguma razão, ela mudou de ‘ponto’. Pouco depois acabou meu mandato e voltei para o Sul, desta vez não para São Paulo, mas para Santa Catarina. E foi ali, na praia da Enseada, em São Francisco do Sul, e em Joinville, que nasceram meus livros sobre a saga das meninas prostitutas em Sergipe, Alagoas, Ceará e nos garimpos do Pará. Dentro do gaúcho da fronteira que retornava ao Sul, vinha inteiro o Nordeste, que aprendi a respeitar e amar profundamente.
Mas eu estava inteiramente impregnado, indelevelmente marcado por uma mãozinha espalmada, sinalizando um preço absurdo em todos os sentidos. E por uma vozinha suave, tímida, quase sussurrada, inesquecível, que me disse:
– Tio, me queira. Por favor! Tô com fome... Eu cobro só CINCO.
Bendita hora em que eu aprendi, anos antes, que devia dar esmolas! (MM) Miami, Fev 10 2012
NOTA ATUAL:
Hoje, passados exatos 20 anos desse evento seminal em minha vida, os livros "Lolita de Aracaju, a mais jovem dona de bordel do mundo", "A Espera e a Noivinha", "A Bela Morde a Fera, autodefesa feminina" e "Como é caro ser mulher!" marcam os efeitos da pequenina mão espalmada no vidro do meu carro. "A Espera e a Noivinha", reescrito, é hoje "Escravizada", meu best seller na Amazon. E "Como é caro ser mulher!", ao ser lançado em breve em inglês (How expensive to be a woman!) celebra, como uma efeméride, a lucidez que aquela mãozinha trouxe à minha mente: minha conversão à causa do feminismo, que havia começado em 1984, quando organizei em São paulo o evento "Uma Nova Mulher para uma nova era", tornou-se densa, sólida, concreta, persistente, assumindo a forma dos livros, seminários e treinamentos que venho produzindo ao longo destes anos. (MM)