sexta-feira, 25 de novembro de 2016

HYDNA DE SCIONE  
MILTON MACIEL

O sacerdote abaixou o braço e os seis auxiliares puxaram as cordas ao mesmo tempo. De sob os panos brancos que as cobriam, surgiram duas verdadeiras obras-primas, as estátuas de Hydna e Scylias, de Scione – os maiores nadadores e mergulhadores de toda a história grega. Era o ano de 480 AC e eles estavam no grande templo de Apolo, em Delphos, para receberem a mais do que merecida homenagem.

Orgulhoso, o pai passou o braço musculoso pela cintura de sua bela e atlética filha de 18 anos e falou, sorridente:

– Um magnífico trabalho, sem dúvida, minha filha. Mas não faz justiça à sua beleza. Você é dez vezes mais bonita do que esse mármore formidável, digno de um Fídias. Acho que só ele teria sido capaz de representar você em todo o seu esplendor.

– Ora, pai, que importância tem isso, quando nosso feito recebe dos Anfictiões uma homenagem de tal envergadura? Por mim, podia ser apenas uma coluna de pedra e eu já estaria mais do que feliz e glorificada.

E, enquanto ali, em frente ao Górgias, sacerdotes e sacerdotisas entoavam hinos e moviam-se ritualisticamente, fazendo a consagração das grandes estátuas, Hydna voltou rapidamente ao passado recente, àquele dia da tempestade destruidora, a bordo de um dos trirremes da frota do rei persa Xerxes. Quando os ventos começaram a fustigar as embarcações e todos os grandes barcos da frota foram rapidamente ancorados à costas do Monte Pélion, Scylias comentou com a filha:

– Xerxes é um louco, mandando fazer esta manobra para o sul, ao longo desta perigosa costa da Eubeia. Era mais do que certo que nos defrontaríamos com alguma grande tempestade como esta que está vindo aí.

– Muito grande, pai?

– Sim, minha filha, arrasadora.

– Então pode ser a nossa grande chance.

– Sim, podemos fugir aos nossos captores durante a tempestade. Eles jamais pensariam que nós somos mais loucos que Xerxes e que podemos pular num mar tão revolto como vai ficar este em mais alguns minutos.

– Ah, mas nós somos, sim, pai. Nós podemos enfrentar qualquer mar, o senhor me ensinou isso desde que eu era criancinha. Não foi à toa que eu passei mais de dez anos de minha vida mergulhando em grandes profundidades e nadando mais de 5 furlongs (12 quilômetros) por dia, sempre em sua companhia.

– Minha menina, minha grande companheira, você é o orgulho do seu pai, a maior nadadora e mergulhadora de toda a Hélade. Agora mesmo, dias atrás, quando mergulhamos para recuperar o tesouro afundado de Xerxes, você demonstrou uma perícia e uma coragem que deixou todos os persas estupefatos.

– Nós DOIS fizemos um trabalho magnífico, pai. E recebemos uma boa parte do ouro recuperado.

– Que não vai nos valer de nada, porque agora somos prisioneiros neste navio. E permaneceremos nessa condição enquanto esta guerra não terminar. E o pior é que tudo indica que vai terminar com Xerxes esmagando toda a Hélade. Só nesta frota existem mais de 200 navios. Como os gregos poderão resistir?

– E pior ainda é que eles já se preparam para a grande invasão por terra, estão concentrados nas Termópilas, depois de terem arrasado o pequeno exército grego que lhes opunha resistência ali e matado o grande Leônidas de Esparta, com seus 300 heróicos espartanos.

– Eram mil e quatrocentos homens, filha, nunca esqueça que também heróicos foram os téspios e os tebanos, que se ofereceram para ficar com os de Esparta, sabendo que teriam morte certa, o preço que pagariam por retardar o avanço dos cem mil persas de Xerxes.

–  Tem razão, pai. Espero que a História não os esqueça. Graças ao sacrifício de todos eles, os gregos tiveram tempo de reunir seus exércitos e preparar a resistência. Mas com a chegada desta frota colossal, como será possível resistir aos persas, meu pai?

– Será totalmente impossível, Hydna. Temos que rezar aos deuses para que esta tempestade provoque danos muito sérios nestes navios deles. Veja, olhe só o tamanho das ondas que estão se aproximando. O dia está virando noite. Ah, que pena que eles tiveram tempo de ancorar solidamente seus trirremes antes da tempestade!

 – Se não estivessem ancorados...

– Ah, filha, se chocariam uns com os outros às dezenas, afundariam em grande número. E os que sobrassem ficariam danificados demais para combater. Ah, se os deuses nos ajudassem!

– Pai: e se nós ajudássemos os deuses?

– Como assim, minha filha?

– Bem. Nós já estamos decididos a pular no mar daqui a um instante e nadar até Artemísia, uns 6 furlongs, mergulhando primeiro, para ficarmos ocultos aos persas e nadando depois. Isso significa deixar todo o nosso ouro aqui, o que não nos importa, não é?

– Certo que não, filha. Mais importante é a liberdade. E a honra: somos gregos e, se logramos escapar, podemos revelar a nossos generais todos os planos dos persas. Só não estou entendendo o que você quer dizer com “ajudarmos os deuses”. Como isso seria possível, se nós é que precisamos de ajuda deles.?

– Ora pai, já que vamos pular nesse mar de agonia, não precisamos ter pressa dentro dele. Não vamos levar nenhum ouro certamente. Mas podemos levar nossas grandes facas de mergulho.

– Por Posseidon, minha menina! Você é um gênio! Sim, nós podemos mergulhar a cortar as cordas de amarra, de âncora, de um grande número desses grandes barcos.

– Nem precisa ser de tantos, pai. Cada um deles que ficar solto neste estreito vai parecer um touro furioso, batendo impiedosamente em muitos outros navios ancorados. E os persas nada poderão fazer. Veja, as primeiras ondas já estão começando a cobrir o convés. É hora de saltar! Vamos pegar as facas longas.

E agora, contemplando sua própria estátua em Delphos, a linda mergulhadora grega pegou carinhosamente a mão de seu pai e mestre. Ante seus olhos semicerrados desfilaram os minutos aparentemente infindáveis em que ela e Scylias mergulhavam e voltavam à tona para respirar, em meio ao mais terrível mar que já haviam enfrentado na vida. E a cada novo mergulho, em meio a uma escuridão quase total, no limite de suas capacidades respiratórias privilegiadas, mais uma grossa corda era cortada por ambos em conjunto.

Os persas, em pânico, não conseguiam entender porque tantos trirremes se soltaram, mas mais de trinta desses enormes barcos estavam agora à deriva, provocando violentos choques estrondosos, esfacelando-se e esfacelando um grande número de outros barcos. Um deles quase apanhou os mergulhadores, esmagando-os contra um barco ancorado. Não fosse a grande experiência de Scylias e ele não teria conseguido avisar Hydna a tempo de mergulharem os dois muito fundo, para escapar do choque iminente.

Mas escaparam. Não só escaparam das vistas dos persas, percorrendo uma grande distância sempre mergulhando, como nadaram na tempestade por mais cinco furlongs até chegarem a Artemísia. Ali a população os recebeu como heróis. Os planos dos persas foram revelados, dando tempo aos gregos de saberem que iam cair numa armadilha, pois outra frota persa avançava do norte para o sul. E Xerxes contava com espremer os navios atenienses entre suas duas frotas.

Mas frota do sul estava agora arrasada! Um único homem e uma única mulher, uma menina de dezoito anos apenas, haviam dado cabo de dezenas e dezenas de trirremes que foram a pique. E os que sobraram flutuando estavam tão danificados que levariam meses para serem recuperados.

Foi somente graças a essa intervenção dessa filha e desse pai heróicos, que a frota grega foi capaz, pouco tempo depois,  de derrotar a armada Norte de Xerxes na grande batalha final de Salamina.

Scylias olhou com ternura para sua menina, tão mais bonita que aquela estátua maravilhosa ali à frente deles, em Delphos. Sim, ela tinha razão. Eles é que tinham ajudado os deuses a ajudarem a Hélade inteira.


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

COMO É CARO SER MULHER !
MILTON MACIEL

SER HOMEM É MUITO MAIS FÁCIL 

Fisicamente, a menina não custava mais do que o menino (eu disse fisicamente, não vamos falar neste ponto de roupinhas ou cabelinhos, que são comportamentais) até que chegou à puberdade.

Aí botou peitos e menstruou. Pronto: começou a despesa! Já pode ficar grávida (Não, não pode!), já pode ter complicações hormonais, infecções, já precisa de absorvente, anticoncepcional, roupinha (de cima e de baixo) sexy, moda, pintura, cosméticos. Deus nos livre e guarde: começou o gasto sem fim, o desmonte impiedoso e cruel de toda uma vida financeira, o desrespeito gritante ao sacrossanto suor da mulher que trabalha!

Agora a menina ficou muito mais cara que o menino!

E vai seguir assim durante o resto da vida, até o fim, quando se descobre que um penico para uma velhinha, que uma bengala para uma velhinha, totalmente iguais aos dos velhinhos, custam 30% a mais. Só porque a velhinha é mulher! Ah, são as malditas causas mercadológicas, motivo da terceira sessão deste livro, o arqui-injusto imposto da vagina.

Bem no meio do caminho, entre a menarca e a velhice muito avançada, surgem o climatério e a menopausa.

– Oba! Não menstruar nunca mais! É  fim de todos os problemas!

Antes fosse. É o fim de alguns problemas, sim: risco de gravidez, por exemplo. Absorvente. TPM. Cólica. Mas... é o começo de outros problemas. E que problemas! Será que é trocar seis por meia dúzia?

Parece que o departamento de projetos da Mãe natureza resolveu pegar pesado com a mulher. Não lhe dá descanso nem na hora de parar de menstruar. Vai aos poucos trocando umas aflições por outras, deixando-as, por um longo tempo, na base do tudo junto e misturado.

Nós, homens, vivemos um declínio tranquilo da nossa fertilidade e da nossa virilidade, nossa possível andropausa ocorrendo mais tarde e de forma incomparavelmente mais suave do que as complexas fases de climatério e menopausa femininos. Os homens sempre viram no seu declínio o grande fantasma da impotência. Pois até nisso se viram privilegiados: foram inventados o comprimido azul e seus concorrentes. E hoje discute-se, acerrimamente, as conveniências ou não da reposição hormonal masculina. Prolongou-se ainda mais a vida útil do minhocão. E, convenhamos, o comprimido azul é bem barato.

Nós, homens, somos de fato fisicamente mais rústicos e muito menos complicados que as mulheres. À complexidade do útero opomos a simplicidade da próstata (que demora muito mais tempo para crescer e dar problema; e, se ainda morremos muito de câncer de próstata, é por puro machismo, por medo de tomar no... rabinho e perder a tão ciosamente defendida virgindade para um frio e desamante proctologista ou urologista).

Opomos a extrema simplicidade de um meato urinário à ampla complexidade, amplidão e delicadeza de uma vagina, e  mais um meato.adicional na mulher.

E opomos a simplicidade da nossa andropausa à absurda complexidade do climatério e da menopausa.

Não há como negar: ser homem é muito mais fácil, mais barato, menos doloroso e menos arriscado que ser mulher.

E, claro, incomparavelmente mais barato! Caro, mesmo, é ser mulher.

Uma coisa que me incomoda e que me leva a repetir sem cessar essa afirmação, é constatar que os homens não percebem as causas reais por trás dessa realidade. Pensam que é tudo uma coisa de gastar descontroladamente com roupas, sapatos, bolsas, cosméticos e até jóias. Ora isso é só uma parte do conjunto todo..
Estou me esforçando ao máximo – e abusando quiçá da paciência de quem me lê – para deixar muito evidente, neste livro, que há outras causas que não só as ligadas a uma errônea ideia de desperdício e luxo com roupas e acessórios.

Os custos biológicos e mercadológicos são igualmente muito grandes e os homens não os percebem. E grande parte das mulheres também, o que é mais estarrecedor.

Mais do que me incomodar, irrita-me sobremaneira ver que a há homens que não conseguem entender todos os sofrimentos inerentes à condição feminina. Ou os desconhecem, ou os conhecem superficialmente e, acima de tudo, quando os conhecem, não valorizam as pessoas que são submetidas a eles todos os dias de uma longa vida.

Não reconhecer o valor de uma pessoa que vai à luta diariamente em sua dupla jornada de trabalho, enfrentando condução, trânsito, escritório, loja ou fábrica, colegas de trabalho, concorrentes, chefes, salários ou ganhos baixos, responsabilidades, horários, broncas, panelas, filhos, escolas, doenças em família e muito mais – tudo a bordo de um corpo que massacra com TPM, ou menstruação e cólica, ou corrimento e coceira, ou gravidez, ou amamentação, ou fogachos de climatério, ou cansaço e astenia.  E que, ainda por cima, tem que estar coberto por lingerie e roupa da moda, que não pode ser repetida no trabalho ou na festa, o sapato e o saldo bancário apertados, o cartão de crédito e a cintura de pneuzinhos estourando os dois... Ah, e ainda por cima, chegando em casa e tendo que dar muita atenção ao parceiro, ao tal dono do minhoco sempre faminto, virar gata sedutora e tirar um tesão, sabe-se lá de onde, para encarar a tarefa final do roteiro do dia, antes de ir dar mais uma olhada nas crianças.

Acho de uma grossura extrema não saber reconhecer e acompanhar a via crucis de sua companheira quando ela começa a enfrentar o climatério, quando em meio aos transtornos e sofrimentos que cercam a menopausa, uma mulher vai chegando ao seu ponto de maior valor na vida, a maturidade.

Caramba, com é difícil tudo isso! Só porque, ao nascer, a opção foi uma vagina...

Como gaúcho que sou, depois de conviver com esposas, filhas (3) e netas (2) e um grande número de mulheres das quais tenho sido amigo, professor ou consultor, costumo declarar com autoridade:

– Olha aqui, tchê: pra poder ser mulher, tu tens que ser muito macho! 

De fato, com sua baixa resistência à dor física, dor para a qual as mulheres são treinadas desde menininhas, se o homem menstruasse, como sugere Gloria Steinem, seria certamente na UTI de um hospital. E, se tivesse que suportar a dor do parto, afirmo-o eu, com certeza iria exigir seu sagrado direito à eutanásia. Em compensação, a população do mundo teria se estabilizado, há milênios, em 5000 pessoas somente e não teríamos problemas como superpopulação, poluição e aquecimento global.