terça-feira, 25 de novembro de 2014

TE PERDI ! 
MILTON MACIEL  
Versão em português de meu poema TE PERDI, de 2/10/2013, em espanhol (*)

Fez-se inverno de repente
Em minha alma.
Se me parou o tempo
E se afundou minha vida...

Tormentas geladas caíram
Sobre o nosso amor.
E, no gelo do ontem...
Te perdi!

E me perdi!
Não soube viver
Sem ti.
Não pude,
Me perdi!

Andei em círculos,
Nem sei mais por onde.
Em murmúrios,
Em suspiros
E gemidos...
Me perdi!

Quantos anos? Não sei!
Se me parou o tempo,
Se me acabou a vida...
Te perdi!

Não sei por onde andei.
Por aqui. E por ali...
Quem sabe?
Eu não sei,
Me perdi!

E o tipo que agora vejo
Ao espelho...
Quem será?
Não sei.
Aquele que eu era,
Eu perdi!

A pureza, a alegria,
A esperança que eu sentia,
Onde estarão?
Eu não sei.
A vida que eu vivia...
Eu perdi!

Então eu vago sozinho,
A luz é escuridão.
E de tudo o que eu soube
Não resta nada ao final,
Senão a dura verdade:
T E   P E R D I  !...

(*) Poema original em espanhol em:





segunda-feira, 24 de novembro de 2014

HISTÓRIA DE PESCADOR 
MILTON MACIEL 

– Pois aí vai, acredite se puder, Seu Aristides. Painho me contou ontem à noite de uma pescaria danada que ele fez na represa de Avaré. Pois ele pegou e puxou sozinho um tubarão, uma enorme arraia de 80 quilos e mais de 20 bacalhaus da Noruega. Verdade painho?

– Mas esses bichos não são de água salgada, Marcelo?

(Só um minutinho, por favor: Antes de prosseguir com nossa legítima história de pescador, vamos voltar só um pouquinho no tempo, para entender o contexto):

Estamos na região rural de Bastos, município paulista que é o maior produtor de ovos do país. Ali, na Granja Fujiyama, seu proprietário, o venerável japonês Takeo Toshiyuki, 77 anos, jaz entrevado por causa de um derrame cerebral, que o deixou sem movimentos e sem fala. Os médicos acreditam que ele apenas vegeta, sem contato com o mundo exterior, capaz apenas de se alimentar com as papinhas que colocam em sua boca.

Mas seu filho adotivo, Marcelo, um jovem mulato nordestino de 25 anos, não liga pra isso. É ele que cuida amorosamente do velhinho, troca suas fraldas, dá-lhe banho e comida. O mais notável é que ele conversa com “painho”, como ele o chama, como se o velho comprendesse tudo – e também responde no lugar dele, como se o velho estivesse entendendo e falando.

Titular de fato da Granja e seus negócios, leva painho todos os dias para a lavoura de milho e soja, no grande trator de cabine climatizada. Exatamente como, quando ele era criança, o pai adotivo fazia com ele. O jovem Marcelo é dotado de um bom humor impagável e está sempre brincando e pilheriando com seu painho. Como neste dia, quando recebem a visita da jovem Dra. Helena Fumiko e de Seu Aristides, taxista de Bastos, que chegam para o almoço:

Colocado à mesa em sua cadeira alta, seguro por duas correias, Takeo Toshiyuki, conhecido pelo pessoal do local como Seu Chiquinho – Toshiyuki é um nome danado de ruim de se falar, sô! – mais parece um pacotinho mirrado, um tiquinho de gente, que só consegue movimentar os olhos. Mas, para Marcelo, é como se ele andasse por todos os lugares, com toda normalidade. Inventava mil histórias cujo herói era sempre Seu Chiquinho.

Chegados os visitantes, Marcelo ergueu-se rapidamente, puxou uma cadeira para que Helena sentasse e iniciou uma animada conversa sobre os pratos que iam ser servidos no almoço – o principal, um delicioso surubim, que ele mesmo havia pescado na noite anterior.

Isso deu vez a que ele contasse toda a pescaria, caprichando na palhaçada para tentar descontrair a moça. 

Contou como tinha ido atrás de Seu Chiquinho, que era o maior pescador de toda a região, para suplicar que ele não acabasse com todos os peixes do rio. A contragosto, Seu Chiquinho tinha concordado por fim, devolvendo para a água nove peixes enormes, todos com mais de 30 quilos cada um, que ele tinha pescado nos primeiros dez minutos.

– Pescador como Painho não tem no Brasil. É o maior, não é painho? Olhem só, ele é modesto, não diz que sim nem não, não fala nada, o sacana. Mas é o maior mentiroso, também. Porque não pode existir pescador sem mentira de pescador.  Quanto maior o pescador, maior a mentira. Sabe qual é a última de painho, Seu Aristides?

– Não sei, mas fico sabendo se você me contar.

– Pois aí vai, acredite se puder, Seu Aristides: Painho me contou ontem à noite de uma pescaria danada que ele fez na represa de Avaré. Pois ele pegou e puxou sozinho um tubarão, uma enorme arraia de 80 quilos e mais de 20 bacalhaus da Noruega. Verdade painho?

Caiu na gargalhada, piscou para o velho, deu-lhe um piparote debaixo do braço. Imóvel, o velho voltou para ele aqueles olhinhos felizes de adoração. Helena podia jurar que eles, os olhinhos, estavam rindo.

– Mas esses bichos não são de água salgada, Marcelo?

– Claro que são, Seu Aristides! Por aí é que se vê a grandeza de painho pescador. E contou:

"Primeiro ele isolou uma pontinha da represa e mandou jogar lá dentro mais de cem carretas de sal. Aí ele trouxe os peixes e as arraias, tudo filhotinho.

E foi deixando a bicharada crescer e criar. Aí, no tempo certo, ele vai lá e pesca um pouco de bicho, pra não dar problema de superpopulação. Só que os bacalhauzinhos cresceram numa parte que ficou com sal demais; por isso, quando se pesca, eles já saem salgados e secos.

E  também aconteceu que o tubarão que ele matou foi um que andou pulando do cercado de painho pra dentro da represa e começou a gostar de água doce. E aí começou a devastar os outros peixes e a crescer rápido demais. E antes que ele virasse um monstro de filme americano de tubarão, painho resolveu dar um fim naquele desabusado.

Pulou de calçãozinho na represa, levando só o canivete de escoteiro dele, que tem pra lá de cem lâminas. O pessoal que viu diz que foi uma luta terrível.

O tubarão mordia painho, engolia ele inteiro, e painho cortava a barriga do bicho com o canivete, saía dela e ia se jogar, com toda a coragem, na boca do bruto de novo. Aí era mastigado, engolido, a coisa toda se repetia e ele abria outro buraco na barriga do monstro e saía de novo.

No fim o tubarão acabou morrendo, de tão furado que ficou no baixo ventre.

– Notável – falou animada a moça Helena, que agora já estava rindo – mas se o tubarão mordeu tanto o Seu Chiquinho, como é que ele conseguiu sair com vida e não ficou todo rasgado?

– Ah, mas a moça não faz ideia de como é grosso e duro o couro de painho! Quando ele terminou de içar o tubarão morto pra fora d’água, o pessoal todo viu, contou, recontou e confirmou: o tubarão não tinha um único dente inteiro! Tinha quebrado tudo contra o couro duro de painho.

Já painho tinha um único corte feio na altura do ombro, mas isso ele acabou me confessando que foi ele mesmo que fez com o canivete. Afinal, justificou, era uma vergonha se ele saísse daquela luta tremenda sem nenhum arranhão. E também tinha aquele monte de mocinha do lado de fora e ele queria impressionar as garotas com um ferimento grave.

Painho é que contou tudo isso, gente. Mas pescador é sempre mentiroso... Não é, painho? – e lá veio a sonora risada.

Aquele, de fato – pensou Helena Fumiko – era um homem de bem com vida... Não seria ela que iria botar minhocas na sua cabeça, revelando quem ela era na verdade: a neta ignorada de Takeo Toshiyuki.

(Adaptado do 3º capítulo do livro “DRA. FUMIKO,Um Amor que Vence o Não e a Vida Exorta” – Milton Maciel -  Idel, 2014




sábado, 22 de novembro de 2014

O FILHO DA EMPREGADA    
MILTON MACIEL

Pouco antes das seis da manhã, ainda cheirando a fumaça da lareira, coloquei o silenciador na arma. Entrei de novo no quarto do meu irmão, que ressonava alto. Envolvi a ponta da arma no pano espesso que tinha levado para recolher os resíduos de pólvora, encostei-a no peito daquele ladrão corrupto e ganancioso que dormia. E comecei a lembrar de tudo, desde nossa infância em casa:

“Moleque é bicho do diabo!” Tio Damião estava certo, a gente era mesmo bicho do diabo, um par de moleques endiabrados e loucos para aprontar – como, aliás, todos os moleques da nossa idade. Eu, 9 anos, meu irmão 10. Aí apareceu o filho da empregada, de 5. Um prato cheio para nós.

Não lembro o nome do moleque, só sei que a mãe dele, a empregada, o chamava sempre pelo apelido: Sossôra. Era branco, pálido, transparente, no que tinha saído à mãe. O filho de Rosa tinha, no entanto, duas características muito próprias: enormes e profundas olheiras; e um olhar triste, parado, sorumbático. Tudo isso num menino magrinho, com não mais que cinco anos.

A gente não sabia por que cargas d´água nossa mãe tinha aceitado que a empregada trouxesse o filho para morar com ela no quartinho dos fundos. Era nos tempos em que havia empregadas domésticas a dar com pau e era comum que elas dormissem no emprego. O fato foi que nós dois não gostamos daquela invasão do nosso espaço infantil. A gente não queria outro moleque pela casa. Ou, talvez, tenha sido mais uma coisa de maldade mesmo, algo de que as crianças em geral estão sempre cheias, enquanto morrem de rir dos adultos que falam da inocência das crianças.

A gente era bicho do diabo, de inocente não tinha nada e destilamos todo o nosso arsenal de maldades contra o pobre do Sossora. É que o infeliz do moleque nos irritava, com aquele seu jeito de songamonga, aqueles olhos de coruja e os constantes choros pelos cantos da casa. O porcaria era um chorão, manteiga derretida, chato. A gente conclui logo que ele era um nojento! E, como tal, merecia nosso repúdio e reação.  

Começamos logo a aprontar todas pra cima dele: dar sustos, atiçar os cachorros pra latirem contra ele, esconder as poucas coisinhas que ele tinha. Na verdade, o que a gente queria é que aquele pateta fosse logo embora da nossa casa. Mas sabíamos que isso implicava em conseguir que a mãe dele fosse despedida do emprego. Então passamos a agir contra filho e mãe.

Roubamos dois anéis de estimação da nossa mãe e escondemos no quarto da empregada. O sumiço foi imediatamente acusado pela dona. Como era natural, a suspeita foi a empregada. No mesmo dia, à tarde, meu irmão chutou nossa bola de futebol contra a vidraça dos fundos e eu, na maior desfaçatez, coloquei junto com a bola e os cacos de vidro um pé do chinelinho do Sossora, que eu tinha afanado. Foi a gota d´água: Nossa mãe resolveu mandar a empregada embora e, ao fazer a revista das coisas dela, encontrou os anéis sumidos. Aliás, a bem da verdade, nós dois é que, ajudando a revistar, localizamos os anéis escondidos dentro de uma roupa íntima da Rosa, justamente onde a gente tinha colocado.

Nossa mãe ficou furiosa e disse que só não chamava a polícia porque tinha pena do molequinho, que ia ficar só no mundo, se a mãe “ladrona” dele fosse presa. Rosa chorou, jurou inocência, mas não tinha defesa possível. As provas plantadas contra ela e o menino eram conclusivas, indiscutíveis. Sempre chorando muito, ela arrumou suas trouxas sob o olhar vigilante da ex-patroa, deu a mão ao filho e foi embora. 

Nós dois, os bichos do diabo, estávamos esperando pela saída deles no portão pequeno do jardim. Queríamos saborear a nossa vitória, fazer umas caretas feias pro Sossora. Mas Rosa nos surpreendeu. Parou no portão, voltou para nós seus olhos vermelhos de choro e tristeza e falou:

– Eu gostava de vocês, apesar de ver que vocês não gostavam do meu filho. Mas o que vocês fizeram hoje foi uma coisa muito má. A mãe de vocês tem muito bom coração, foi a única patroa que me aceitou com meu filho. Mas vocês não deixaram. Eu sempre fui honesta, mas vocês vão fazer que todo mundo me chame de ladrona. Vocês acabaram comigo e com meu filho, nós vamos ter que ir embora desta cidade, nunca mais eu consigo emprego aqui. Deus permita que vocês possam se curar de tanta maldade. Senão, vocês vão ser adultos muito ruins, vão fazer muita gente sofrer.

Disse as últimas frases olhando bem dentro dos meus olhos e foi embora. Deixou totalmente meu irmão de lado. Ele macaqueava, fazia caretas, ria e dava de ombros. Não estava nem aí, gozava sua vitória.

Mas eu acusei o golpe. Não tinha, é claro, com meus nove anos de pura maldade, imaginado as consequências para a empregada. Estava contente por me livrar da peste do filho dela, mas comecei a me sentir muito mal pensando no que ia acontecer com a pobre da Rosa.

Os olhos de Rosa não me saiam da cabeça. A toda hora eu os via, avermelhados, úmidos, imensamente tristes, derrotados. Incomodava-me a sua passividade, sua incapacidade de externar sua revolta com gritos, palavrões, uns bons tapas, como a gente merecia. Ao contrário, ela era toda dor e derrota. Sossora, como a mãe, tinha os olhinhos baixos, turvos, com lágrimas. Ambos tinham olhos verdes muito claros, de uma cor muito rara de ser ver. Rosa devia ter sido uma moça bem bonita, mas já estava precocemente marcada no rosto magro pelos vincos do sofrimento, sua vida de mãe solteira muito pobre certamente fora uma longa sucessão de desgraças. 

Dois dias depois não aguentei a pressão e tentei convencer meu irmão que devíamos contar a verdade a nossa mãe. Ele ficou uma fera, me chamou de fraco, de maricas e disse que, se eu contasse, ele me dava a maior surra. Apesar de ter só um ano mais do que eu, ele era muito mais desenvolvido e mais forte. Ele me fez lembrar que, se a gente contasse a verdade, nosso pai ia nos desancar no laço, a gente ia apanhar surra de criar bicho. Claro, ele sabia que eu era covarde, morria de medo de apanhar.

Mas nem isso adiantou. Na semana seguinte eu não aguentei mais, procurei minha mãe e contei tudo, tudo mesmo. Que a ideia do roubo e ocultação dos anéis fora de meu irmão, mas a ideia de quebrar o vidro com a bola e colocar ali o chinelinho do menino tinha sido minha. E contei as muitas outras maldades que a gente tinha aprontado com o Sossora. 

Ela ficou horrorizada. Uma, porque percebeu a grande injustiça que tinha feito com uma pobre mulher honesta, contra quem ela já tinha espalhado a fama de ladra. Mas acho que mais horrorizada ela ficou quando percebeu como era mau o caráter dos seus dois filhos. Correu a fazer o relato completo para nosso pai. Este, com certeza, ficou uma fera: nossa atitude contrariava tudo o que ele nos ensinava diariamente!  Mas, como era do seu feitio, não nos puniu na hora. Marcou o castigo para as seis horas da tarde; íamos, como de hábito em casos graves, apanhar de palmatória, com ele deixando previamente especificado duas dúzias de bolos para meu irmão e uma dúzia para mim. Foi a primeira vez que travei contato com uma delação premiada, minha pena tinha sido reduzida ao meio.

Naquele dia apanhei do nosso pai, no dia seguinte apanhei do meu irmão. Que apanhou de novo outras duas dúzias, por ter batido em mim daquela forma tão brutal. Depois a coisa toda passou, a vida seguiu, a gente cresceu, estudou, foi trabalhar, constituiu família, se deu bem na vida.

Fizemos Direito, os dois. Depois fizemos carreira na Polícia Federal. Mas o desejo de Rosa, que Deus permitisse que nós dois nos curássemos de tanta maldade, não funcionou. Nós viramos adultos muito ruins e fizemos muita gente sofrer. Mas isso não era uma coisa que nos incomodasse, porque nós éramos somente corruptos, os que nós fazíamos sofrer eram criminosos e sonegadores, de quem nós extorquíamos dinheiro. E também o povo em geral, quando dávamos cobertura a empresários e políticos que faziam grandes maracutaias com o dinheiro público. Quer dizer, a gente não fazia sofrer assim na lata, olho no olho, era tudo na manobra sórdida. Enriquecemos.

Meu irmão muito mais do que eu. Como já mencionei, eu sou covarde. Ele, ao contrário, é arrojado ao extremo. Dessa forma ele participou de esquemas e golpes muito maiores do que os meus, subiu mais alto na carreira, seus políticos eram muito mais graúdos que os meus. Mas não posso me queixar, ainda assim cheguei aos 44 anos com um bom pé de meia. 

A Primeira Ministra
Um dia, estranhamente, o diretor geral nos designou para fazer a segurança da Primeira Ministra. Devíamos protegê-la, especialmente na residência oficial, depois que ela sofreu o segundo atentado contra sua vida.

Maria Amália Jardim era uma mulher incomparável. Ia fazer 39 anos e já estava no seu terceiro ano como Primeira Ministra. Tinha ampla maioria no Congresso, depois de vencer e desbaratar as quadrilhas de senadores, deputados e funcionários corruptos. Fez uma limpa total na casa. Muita gente perdeu o mandato e foi presa, pois também no Supremo Tribunal Federal tínhamos uma outra mulher de desassombro e coragem, que fazia tudo andar depressa dentro do novo rito imposto sob sua égide. 

Empresários, militares e até mesmo os intocáveis banqueiros foram condenados e presos. Em três anos de mandato, depois de triunfar sobre quatro tentativas de voto de desconfiança no parlamento, mais de 60 homens e alguma mulheres foram parar atrás das grades. Novas regras para concorrências e sistemas rígidos de controle foram implantados. Com isso, várias centenas de funcionários de segundo, terceiro e quarto escalão, ladrões convictos de longa data, foram também enquadrados, expropriados de seus bens, engaiolados. Foi a maior limpa que o país já viu.

Maria Amália Jardim tornou-se um verdadeiro ícone, um ídolo nacional. Ainda mais depois de escapar milagrosamente a duas tentativas de assassinato. Para completar, era uma mulher bonita, delgada, de olhos verdes claros, cabelos loiros cacheados. E fizera carreira liderando movimentos feministas e de luta contra a discriminação a minorias em geral. 

Neste momento ela é praticamente uma unanimidade nacional. Seu governo é o primeiro na história que, no terceiro ano de mandato, tem mais de 90% de aprovação nas pesquisas. E eu, confesso, estou ainda mais encantado com essa mulher fabulosa, ao ver como ela trata a mim e a todos, do mais graduado ao mais humilde, com a mesma afabilidade, paciência e doçura. Maria Amália não é uma chefe, é uma Líder! Ela nos conquista e subjuga a todos, docemente. Sua simples presença é como uma espécie de bálsamo, que anima, eletriza e entusiasma as pessoas. 

Em mim o seu efeito é estranhíssimo. Sendo o corrupto que sempre fui, sua presença e sua ação me fazem desejar ser honesto, apagar todo o meu passado de ganância e desonestidade. É como se a honestidade dela fosse contagiosa, o exato contrário da tal maçã podre que põe o cesto a perder.

A bomba!
Estava eu nesse meu encantamento quando, um dia, caí das nuvens. Meu irmão veio me mostrar, madrugada alta, o que ele tinha descoberto no cofre particular da Primeira Ministra. Ladrão velho quase cinquentão e tira de oficio, meu irmão nunca perdia uma oportunidade de descobrir segredos das outras pessoas, segredos esses que lhe poderiam valer boas somas em dinheiro. Fuçou e fuçou, com equipamento de arrombador, até que conseguiu descobrir o segredo do cofre. E o que ele encontrou ali era dinamite pura. Uma bomba!

Ele chegou no meu aposento e me acordou esbaforido. Esperou que eu estivesse bem desperto e sentado à mesa. Então espalhou sobre ela aquele monte de fotografias, cartas, documentos, recibos e exames médicos, ante meus olhos sonolentos. E disse, quase gritando:

– Maria Amélia Jardim é o Sossora!
­– É quem? – protestei eu, que não lembrava há décadas daquele nome.
– O Sossora, o filho da empregada, da Rosa, aquele lesma nojento que a gente expulsou de casa, lembra? A armação dos anéis roubados, esqueceu?
– Tá, tô lembrando desse Sossora, mas ...o que o moleque tem a ver com a nossa Primeira Ministra?
– Tem tudo, seu tapado. Ele É a Primeira Ministra!
– Mas que absurdo, cara. Ela é mulher. E um mulherão, por sinal!
– Ela é homem, seu idiota. Fez cirurgia de mudança de sexo. Era a maior bichona antes. Mudou de sexo e passou a usar documentos FALSOS!
– O que?! Nossa Ministra usa documentos falsos? Era homem e mudou de sexo? Cara, você bateu com a cabeça ou voltou a cheirar pó mais uma vez?
– Ah, é? Pois então me acompanhe no exame das provas, estão todas aqui em cima da mesa. Veja esta foto: quem é esta mulher branquela?
– Meu Deus, é a Rosa! A Rosa, como é que pode? ...
– Pois então, veja agora estas cartas, trocadas entre mãe e filho. O moleque está com oito anos, já escreve bem, está num internato para crianças indigentes. A mãe está num hospital público. Vou lhe adiantar a história toda, pra você não perder tempo, faz dois dias que eu examino essa tralha toda: a mulher morreu pouco depois, de câncer, deixou o carinha órfão.
– Que barra! E aí?
– Aí que ele continuou na instituição, cresceu mais, virou seminarista, você precisa ver as notas do cara! Um verdadeiro gênio, só dez e nove e meio.
– Quem diria, aquela lesma ranhenta...
– Pois é, e ele virou a maior bichona também. Aliás, já tinha toda a ferramenta desde pequeno, não é?
– Bem, de macho é que ele não tinha nada; pensando bem, só podia dar no que deu. Mas como é que você ficou sabendo...
– Ah, olha aquela livrinho de capa preta. É um DIÁRIO, mano velho! Um diário onde o veadinho conta tudo, dia a dia, tim-tim por tim-tim. Olha esta foto aqui: é o padre Manoel José. Saca só a dedicatória. Era o amante do Sossora.
– Santo Deus! Um padre...
– Só que descobriram tudo, o padre foi mandado embora para uma paróquia distante. Pois o veadinho largou o seminário e foi atrás do seu homem. Quer dizer, homem... Você vê aí essas fotos dos dois de mãos dadas, dentro de uma mata.
– O Sossora até que ficou um rapaz ajeitado... Praquela lesma ranhenta que ele era...
– Mas a coisa terminou mal: o padre morreu numa emboscada, defendia os sem-terra, os fazendeiros mandaram fazer o serviço nele. Claro que ninguém foi condenado por isso, aquilo era Mato Grosso.
– E o veadinho fez o que, depois disso?
– Primeiro fez um monte de poesias, um monte de escritos falando do sofrimento dele. Depois foi embora para o Rio de Janeiro. Acontece que o padre era de família rica, tinha dinheiro e propriedades, deixou tudo para o Sossora; tinha testamento, porque temia justamente ser assassinado.
– Veado de sorte! Era pobre como um rato de sacristia, virou viúva rica, viúva alegre.
– Bem, pelo que se pode ver aí, logo a seguir, no Rio, ele tratou da cirurgia dele e foi fazer o serviço lá na Itália. Na volta, ele/ela procurou um falsário e lavraram certidão de nascimento em um cartório de uma cidadezinha do interior do Rio. Desde então ele é Maria Amália Jardim. Com esse nome fez as provas de Supletivo, depois passou em primeiro lugar em dois vestibulares: engenharia química e economia. Pois a maluca fez as duas faculdades ao mesmo tempo, estudando de dia e de noite. Aqui tem cópias dos dois diplomas, que são autênticos. De falsa, só a certidão de nascimento.
– Meu Deus, eu estou de queixo caído. Isso acaba com a carreira dela, acaba com ela pra qualquer coisa. É o fim da Ministra, da política, da líder, da unanimidade nacional.
– Que se dane ela. O que eu quero agora é a fama. A imensa fama que virá para quem descobriu e revelou toda essa longa história, esse logro nacional.
– Irmão, será que vale a pena? Tá certo, a fama vai ser sua e só sua, eu não quero nada com isso. Mas fico pensando: será que vale a pena, por um minuto de fama, acabar com o melhor governo que este país já teve em toda a sua história? É prejudicar todo um povo só pra você se pavonear e...
– Que se pavonear, o que, seu primário! E a grana? Você não consegue enxergar a enorme grana que eu vou arrancar dos inimigos dela, dos caras que ela botou na prisão, dos caras que perderam milhões por causa dela? Qualquer um deles pode pagar milhões para se vingar, para destruir esse veadão. Vou ficar ainda mais rico.
– Mas irmão, por favor... Considere... Será que vale mesmo a pena? Você já é tão rico.
– Seu frouxo! Você não tem jeito mesmo, rapaz, sempre foi assim, meio molengão. Não me diga que está com pena da sua Primeira Ministra, você que é tão encantado com ela que até já me falou que quer aprender a ser honesto, daqui pra frente. Você é um tonto mesmo. Ora, vá se catar, deixe eu juntar aqui minhas provas e hoje mesmo, de manhã, vou fazer uns telefonemas, para começar o meu leilão milionário.

Uma atitude
Não consegui dormir mais aquela madrugada. Fiquei acordado, remoendo, remoendo, pensando como era injusto que meu irmão detonasse a nossa política mais honesta e perfeita de todos os tempos. E aí de repente, sem mais nem menos, me reapareceram na lembranças olhos de Rosa, os olhos vermelhos de Rosa. E ouvi suas palavras dentro da minha mente, uma por uma. Sim, eu tinha prejudicado Rosa e seu filho demais. Eu era um moleque do diabo, quem sabe ela não tinha morrido de câncer por minha culpa e do meu irmão. Ela era honesta. Ladrões viramos nós dois. A gente não prestava mesmo, desde criança. 

Eu não valho nada. Mas meu irmão é muitíssimo pior. Sempre foi. É o pior rato que eu conheço. Ah, Rosa, eu devo essa pra você. Sossora...

Sossora tinha virado uma mulher. Uma linda mulher. Era mulher, sim! Tinha feito a operação, não era mais homem. E uma mulher com M maiúsculo, a maior liderança, a mais honesta liderança que este pais jamais teve. Pode um rato de esgoto como o meu irmão acabar com a carreira, com a vida dessa mulher impressionante? Posso eu permitir que ele prejudique outra vez o menino Sossora, que agora é nossa líder inconteste Maria Amália?

Não, definitivamente não. Eu não posso permitir isso. E tomei a minha decisão! Foi menos difícil do que eu pensei. Não tinha outro jeito, um rato como aquele não muda nunca. Ou, se muda, só muda pra pior, como agora.

 Às cinco e meia entrei pé ante pé no quarto dele e apanhei todos os documentos e fotos que ele tinha colocado dentro do grande envelope de volta, ali em cima da mesinha. O ratão sempre teve sono muito pesado, estava roncando pra variar.

Levei tudo para fora, fui para a lareira, que é só uma peça de decoração neste pais tropical. Levei álcool, fiz fogo, foi rápido. Não sobrou nada. Que loucura de Maria Amália, conservar aquelas lembranças tão perigosas. As pessoas perdem todo o bom senso quando se trata de sua vida sentimental. 

Corrigi o erro da Primeira Ministra: tudo virou pó e cinza dentro da lata que eu levei para a lareira. Depois tratei de dar um sumiço na lata. O erro da Maria Amália estava corrigido. Mas o erro de meu irmão seria claramente incorrigível, era imperioso que eu o impedisse de cometê-lo.

 Mesmo sem as provas, ele ia fazer um pandemônio e, com ajuda de outros colegas tiras, ia fazer uma varredura no país e fora, dele atrás de outras evidências da passagem de Sossora, Padre Manoel José, testamento, viagem, cirurgia de mudança de sexo na Itália. E o pior: evidências de que Maria Amália Jardim nunca tinha existido antes, era uma identidade falsa – falsidade ideológica! 

Pouco antes das seis, ainda cheirando a fumaça da lareira, coloquei o silenciador na arma. Entrei de novo no quarto do meu irmão, que ressonava alto. Envolvi a ponta da arma no pano espesso que tinha levado para recolher os restos de pólvora, encostei-a no peito daquele ladrão corrupto e ganancioso que dormia. Em sonhos, ele riu. Na certa estava feliz com sua nova armação, ia detonar a Primeira Ministra mais competente da história do país e ganhar uma grana preta dos seus desafetos.

Não tive nenhuma hesitação. Era ele ou o país, ele ou Maria Amália. Não podia haver dúvida. Por um instante lembrei ainda dos olhos de Rosa, dos olhinhos inocentes e chorosos de Sossora e pensei: Você tinha razão, Rosa, a gente era moleque do diabo, não tivemos cura. A gente não prestou. Mas, ao menos agora, eu vou lhe fazer justiça: seu filho, sua filha, não vão ser destruídos por um de nós. Que sobre mim recaia a maldição de assassino, de assassino do próprio irmão. E o atenuante de ser o assassino de um ladrão imundo, de salvar uma pessoa muito digna e de salvar um país inteiro.

Então apertei o gatilho. A coisa foi instantânea. Coração, direto. O cara nem acordou.

Agora estou fazendo a parte seguinte do plano, me livrando desta arma que apanhei no estoque das aramas frias, para dar flagrante, que meu irmão sempre tinha no armário dele. Tudo sem registro.

E a vida continua
Às sete vou sair para buscar a Primeira Ministra no aeroporto, viajou com outra escolta, meu trabalho com ela é só aqui na capital. E vou ter que contar tudo pra ela. Senão, o dia em que ela abrir o cofre para reviver suas saudades, vai entrar em pânico, achando que alguém roubou o material e vai chantageá-la ou entregá-la. 

Quando entrarmos na residência oficial, é bem provável que já tenham descoberto o assassinato do meu irmão. Pois que investiguem, deem tratos à bola, o cara tinha um montão de inimigos, justo entre traficantes, contrabandistas, empresários e políticos. Qualquer um pode ter mandado alguém apagar o desafeto. E é claro que eu vou ganhar o direito de chefiar a investigação da morte do meu irmãozinho querido. Vai morrer tudo na praia!

Ah, ali vem ela, mais linda do que nunca! Que sorriso!

– Bom dia, Ministra. Fez boa viagem?
– Bem razoável, Luiz. Onde está seu irmão?
– Deve ter se atrasado, como sempre. A senhora que ir direto para casa? Podemos ir?
– Sim, Luiz, vou no carro com você e seus colegas. Ainda tem muita gente querendo acabar comigo.
– Oh, se tem, Ministra! Mas, se depender de mim, ninguém jamais vai botar as mãos na senhora.
– Tenho certeza disso, Luiz. Confio inteiramente em você, obrigada.

Pensei: Sim, pode confiar cegamente, Ministra. Você nem sabe ainda, mas seu segredo está guardado para sempre comigo. Acabo de matar meu único irmão para resguardá-lo.

Sentei no banco de trás, ao lado dela e, pela primeira vez, pude observar detidamente aquele par de olhos de um verde claro tão extraordinário. Sim, a mesma cor tão rara dos olhos de Rosa, dos olhinhos de Sossora.

Ela sorriu para mim com enorme simpatia, senti que ela de fato gostava de mim como seu segurança e ajudante. Que bom. Ao seu lado, me sentindo o legítimo salvador da pátria, eu tive certeza:
Que ironia, eu amava aquela mulher! – como, aliás, a maioria das pessoas do país. Ela cativou meu coração: eu servirei o garoto Sossora pelo resto dos meus dias, enquanto Maria Amália assim o quiser.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

 NEGRA VELHA  
MILTON  MACIEL

     Sempre, no Dia da Consciência Negra, torno a postar este meu poema regionalista, que me é particularmente caro ao coração. Nele presto tributo a uma figura real, a TIA BELA, uma parteira e ama de leite que trouxe ao mundo e amamentou um grande número de crianças em Santana do Livramento, Rio Grande do Sul, na minha infância – inclusive dois primos meus. A mãe deles, branca racista convicta, de peitos murchos sem leite, abria uma exceção para essa negra notável, dizendo, com a maior desfaçatez: "Ela é negra, mas tem a alma BRANCA". Que horror! 

     E presto homenagem também a todas as inumeráveis gerações de Negras, que, enquanto escravas, por séculos e séculos se doaram em amor, alimentando do seu peito e cuidando do seu coração seus sinhozinhos brancos. Para, no geral, deles receberem, depois, a mais amarga e cruel ingratidão.

NEGRA VELHA 

Paro a lida pra te olhar, negra velha amiga,
Ver como avanças pouco, no teu passo lento,
Despacito nomás, a mão tateando ao vento.
Hay névoa nos teus olhos e muita mágoa antiga.

Teu peito encarquilhado, que pra frente se curva,
Esconde a vida que ele deu pra tanta gurizada...
Pois quanto piá amamentastes nesses seios então fartos,
Filhos de brancas sem leite de quem fizestes partos!
Mas que hoje te esqueceram, na tua pobreza turva,
Porque, qual vaca velha, tu fostes descartada.

Quantos homens de importância trouxestes tu ao mundo
E quantos deles só viveram pelo leite no teu peito?
Quanto piazito faminto foi no teu seio escuro aceito,
Porque ali dentro batia um coração de amor profundo!

Mas hoje chego aqui e te descubro nesta baita solidão:
Tua velhice desamparada e trôpega, cheia de tristeza.
Essa vista turva, esse abandono cruel, essa pobreza...
E de todos os que por ti passaram... nenhuma gratidão!

Vem, negra velha amiga, vem comigo, apóia no meu braço.
Não mamei do teu leite, mas conheço uma a quem salvastes:
Uma que hoje é a mulher da minha vida e a quem amamentastes.
Vem comigo, nobre negra, tu vais viver conosco, dá um abraço! 

terça-feira, 18 de novembro de 2014

UMA FORÇA DESMEDIDA  

MILTON MACIEL

Se, por causa destes sonhos, eu me vejo assim levado,
Se, andando nestes passos, sigo só pelos caminhos,
Quero crer que sigo em frente, meu destino está traçado:
Sigo o rumo desolado
Dos corações mais sozinhos,
Dos seres mais comezinhos,
Que arrastam seu duro fado.

Quero crer que sigo em frente por meu próprio desatino,
Pelos carreiros do mundo sou mais um homem perdido,
Que se arrasta inutilmente, pra cumprir o seu destino:
Ante a vida só um menino,
Como um pássaro ferido,
Para o vórtice atraído,
A gemer o último trino.

E, no entretanto, eu continuo assim.
Pelas estradas... levantando pó,
Pois meu destino é ser um homem só:
Jamais parar até que chegue o fim.

Quero crer que sigo em frente, minha vida não tem volta,
Vou tangido pelos ventos, como uma folha caída,
Não tem dor, não tem soluço, não tem ai, não tem revolta:
Solitário sem escolta,
Uma força desmedida
Me faz resistir à vida
E a vida... não tem volta!

Miami, 18/09/2013

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

ASSINTO  QUE VOCÊ PARTA  
MILTON  MACIEL

Assinto que você parta.
Ah, sinto você de mim tão farta!

(Assente fique que eu compreendo).
Ah, sente meu coração, sofrendo,
O acento lúgubre de sua ausência.
Assento então a minha resistência:

Hei de sobreviver...
Mas, não, viver.

Não mais vir ver
Seu rosto amado
Será meu fado,
Meu desencanto,
E tudo quanto
Eu receber
Será inclemência.

Assinto que você parta!
Assente fique que eu compreendo...

domingo, 16 de novembro de 2014

QUE NOS ACUDA NERUDA  
MILTON MACIEL   

Tudo muda, tudo passa.
Desdita vira ventura,
Ventura vira desgraça;
Do honesto vem a trapaça,
Do bruto vem a ternura;
Do círculo, a quadratura,
Da paz a discórdia grassa.

Tudo passa, tudo muda.
Do estável vem a surpresa
Com que o inesperado exsuda
A dor que o peito desnuda.
Esvai-se qualquer certeza...
Então, talvez, nos acuda
Um poema de Neruda:

“El cinturón ruidoso del mar ciñe la costa.
Surgen frías estrellas, emigran negros pájaros.” 

“Hice retroceder la muralla de sombra,
anduve más allá del deseo y del acto.”